O desconforto é inevitável para impulsionar a criatividade?

Para Charles Watson, sim. Mas isso não significa sofrer. Confira o bate-papo com o especialista e entenda porque estar em contato frequente com problemas difíceis pode nos ajudar a encontrar resoluções

Foto: Divulgação

O que faz você querer estudar a criatividade?

Como estudei em uma escola de arte no Reino Unido antes de vir para o Brasil, desenvolvi um ritual de manter um caderno no qual fazia anotações todas as noites depois de sair do meu estúdio. Foi uma forma de me distanciar do meu trabalho para conseguir vê-lo com mais objetividade. Mantive esse hábito por toda a minha vida e isso me ajudou a entender os obstáculos auto-impostos que se interpunham entre mim e meu próprio trabalho criativo. Além disso, ainda na Universidade, li um livro sobre o processo criativo escrito por Arthur Koestler, que me marcou. A partir de então, fiquei curioso sobre o assunto e passei a, volta e meia, ler artigos em revistas de ciência e psicologia. Mas foi no início dos anos 1990, quando decidi desistir de trabalhar como artista, que isso se tornou um interesse primordial e comecei a ler vorazmente sobre o assunto. Foi também nessa época que iniciei os projetos educacionais internacionais que ficaram conhecidos como Dynamic Encounters. Desde então, realizei 62 projetos para 30 cidades em quinze países diferentes, onde acumulei 1800 horas de entrevistas filmadas com mais de 100 criativos sobre seus processos. Inicialmente, essas entrevistas eram predominantemente com artistas e curadores, mas, mais recentemente, passei a incluir indivíduos de outras atividades como neurociência, psicologia, genética e física.

Ócio dissipador, alienante, que faz com que nos sintamos vazios, inúteis, nos faz afundar no tédio e nos subestimar”.

Como podemos exercer o verdadeiro ócio criativo?

A maioria das pessoas que me pergunta sobre “Ócio Criativo” nunca leu o livro de António Damásio com este mesmo nome, nem entende o que significa a expressão. Então, só para esclarecer, “ócio criativo” não significa simplesmente não fazer nada ou esperar passivamente que coisas aconteçam. Tampouco significa preguiça, inatividade ou o que Demasio chama de “ócio dissipador, alienante, que faz com que nos sintamos vazios, inúteis, nos faz afundar no tédio e nos subestimar”. Em outras palavras, não é maratonar por 8 horas na Netflix. O ócio criativo ao qual ele se refere é o envolvimento, em horas livres, com atividades que trazem significado para a vida do praticante, mas que não são normalmente associadas ao dia a dia do trabalho obrigatório. Eu sou velejador e isso é uma atividade importante para mim. Até pouco tempo, eu também trabalhava muito com marcenaria naval (já construí cinco barcos a vela) e ensinei a prática no meu estúdio durante cinco anos, onde os alunos terminaram três barcos nos quais estão até hoje velejando. Há anos também pratico natação, meditação transcendental e leio muito. Todas estas atividades são o que classifico como “ócio criativo”Sempre as realizo com um caderno ao meu lado, inclusive, um caderno à prova d’água quando estou nadando, pois é justamente nestes momento que o cérebro é capaz de criar novas conexões entre ideias. Vale dizer que, quando se trata de desempenho criativo, essas atividades paralelas (“ócio criativo”) só fazem sentido quando associadas a um verdadeiro investimento em sua atividade principal.

O que você entende da palavra criatividade?

Em uma era de narcisismo crônico e gratificação instantânea, em que ‘criatividade’ se tornou uma palavra tão promíscua, esgarçada pelo uso, pode ser difícil entender o seu verdadeiro significado e os sacrifícios que todo desempenho criativo demanda. Quando falo sobre criatividade me refiro à criatividade que tem consequências que vão além da esfera pessoal, fazendo algum tipo de contribuição, pequena que seja, a um domínio existente ou atividade como literatura, música, arte, dança mas também ciência, tecnologia e empreendedorismo, assim como em muitas outras áreas de exploração humana. Implica a luta com materiais, conceitos, ou palavras que são necessárias para trazer sua ideia a algum tipo de fruição, mas que geralmente resistem às suas melhores intenções. Então, ao invés de ideias esporádicas que nos surgem de vez em quando, estou me referindo à criatividade de médio a longo prazo, à uma vida de comprometimento com a produção de fatos criativos que têm algum valor para o contexto cultural onde eles são criados. Em raros casos isso pode até mesmo envolver a inauguração de um novo campo de estudo, como no caso da Evolução Darwiniana. (Darwin não apenas fez uma contribuição para evolucionismo — ele inaugurou uma disciplina que até então não existia).

Estamos ficando sujeitos a uma espécie de ejaculação precoce mental, extraindo conclusões precipitadas de informações incompletas.

Como anda a criatividade hoje em dia?

Estamos atravessando uma nova pandemia, desta vez de pensamentos precipitados, em que as pessoas reagem, ao invés de refletir, às informações que recebem de mão beijada. Estamos ficando sujeitos a uma espécie de ejaculação precoce mental, extraindo conclusões precipitadas de informações incompletas. Isso não é um bom caminho para o pensamento criativo por razões óbvias — existem muitos assuntos cujo nível de complexidade não se presta facilmente ao pensamento binário e simplista.

Como sustentar a criatividade de longo prazo?

A melhor maneira de sustentar a criatividade a longo prazo é se envolvendo com uma atividade que traga verdadeiro significado à sua vida: uma atividade que possa ser ainda mais importante do que você mesmo e à qual você está disposto e apto a dedicar longas horas, meses e anos do seu tempo. Isso, claro, envolve comprometimento e persistência. Comprometimento para reunir a energia necessária e persistência para ajudá-lo nos momentos de desconforto e baixa autoestima, que inevitavelmente acompanharão sua escolha.

Problemas sempre geram desconforto. Então, o desconforto é parte integrante da experiência. Se você tem interesse por criatividade, é melhor se acostumar com ele. E isso não melhora conforme você avança. Porque quanto melhor você se torna naquilo que está fazendo, mais exigente você também fica.

Por que você diz que o desconforto é inevitável em qualquer atividade realmente criativa? A criatividade precisa ser tão dolorosa?

Não estou falando sobre dor. Estou falando sobre um desconforto natural que todo mundo sente ao se confrontar a problemas difíceis. Algumas pessoas prosperam com problemas; outras fogem deles. Mas todos nós sentimos desconforto quando uma ideia nova ameaça a integridade daquilo em que acreditamos. Isso se chama dissonância cognitiva. As pessoas criativas trabalham por definição no limiar entre o familiar e o desconhecido, e isso significa estar em contato frequente com os problemas difíceis. Problemas sempre geram desconforto. Então, o desconforto é parte integrante da experiência. Se você tem interesse por criatividade, é melhor se acostumar com ele. E isso não melhora conforme você avança. Porque quanto melhor você se torna naquilo que está fazendo, mais exigente você também fica. Você está navegando em direção ao horizonte, mas quando chega lá o horizonte continua no horizonte, certo? Na melhor das hipóteses, você se acostuma com o desconforto e começa a vê-lo como um aliado ao invés de um inimigo; ele pode até se tornar o seu melhor amigo. Ele lhe diz que você está no lugar certo. Dizem que a melhor forma de garantir um casamento duradouro é não se divorciar. Todas as atividades valiosas e exigentes, tanto casamento quanto desempenho criativo, estarão repletas de problemas. O que importa é a sua capacidade de persistir em meio a essas dificuldades. E para fazer isso é importante amar o que faz. Em um relacionamento, você sempre pode se divorciar ou trocar de parceiro quando as coisas ficam difíceis, mas depois de um tempo, chegará um momento em que você perceberá que o único fator comum em todos esses casamentos decepcionantes é você. Bem, é assim com a criatividade: você sempre pode abandonar os problemas quando as coisas ficam difíceis, mas não vai muito longe criativamente (ou em termos de crescimento pessoal).

Hoje incentiva-se bastante a criação de equipes multidisciplinares. Seria essa a estratégia mais eficiente para chegarmos a soluções inovadoras? Por que?

Existem inúmeras estratégias criativas, mas todas precisam de consideráveis investimentos de energia. Toda importante criatividade depende do que chamo de “promiscuidade criativa”, “fronteiras permeáveis” e um estado de “transigência permanente” e, para isso, precisa haver um fluxo constante de informações de dentro para fora do sistema, mas também de fora para dentro. Em termos de biologia, membranas celulares são uma analogia perfeita para isso. Ao mesmo tempo que contêm e protegem o conteúdo das células, permitem a passagem de informações importantes de fora para dentro e vice versa. A célula bacteriológica faz isso pelo que é chamado de transferência genética horizontal — onde esta é capaz de transferir informações genéticas para outras. Assim, a membrana tem uma dupla função: conter e filtrar informações, enquanto as transmite e as recebe.

Seja o que for a criatividade, certamente envolve a criação de vínculos improváveis entre ideias aparentemente antagônicas e, para que isso aconteça, essas ideias precisam, em primeiro lugar, estar lá. Assim, a maioria dos criativos, além de estarem profundamente envolvidos com sua atividade primária, muitas vezes possuem interesses secundários aos quais também dedicam seu tempo e que, de tempos em tempos, podem fomentar ideias na sua atividade principal. Essas tendências interdisciplinares geralmente ajudam a detectar semelhanças estruturais profundas entre duas ou mais ideias desconexas (deep analogy). Isso é conhecido como fertilização cruzada interdisciplinar e é uma forma de encorajar caminhos menos previsíveis de pesquisa.

Teoricamente, grupos multidisciplinares deveriam oferecer vantagens semelhantes, oxigenando o sistema com informações externas e, no melhor dos cenários, criando novas possibilidades. Mas os grupos são organismos complexos. E isso só será possível se seus membros forem capazes de enxergar o problema como mais importante do que suas afirmações individuais e próprias crenças. A melhor forma de isso funcionar é dentro de um contexto de “metas superordenadas” (problemas coletivos cuja solução depende do grupo como um todo).

Quais são as tecnologias mais recentes que jogam uma nova luz sobre mecanismos de inovação?

Tecnologia e criatividade sempre andaram de mãos dadas. Mas acredito que não é a tecnologia que lança luz sobre a inovação, e sim o contrário. As tecnologias são o resultado de pessoas criativas que olham para o mundo como todos nós, mas extraem conclusões diferentes. Tubos de chumbo para tinta a óleo foram inventados na segunda metade do século XIX, mas apenas poucos artistas (os impressionistas) conseguiram enxergar as vantagens imediatas da invenção (como a pintura ao ar livre, longe do ateliê). Quando a tecnologia digital começou a ser disponibilizada ao público na década de 1980, poucos puderam ver até onde isso poderia ir. Temos algumas ferramentas extraordinárias à nossa disposição, mas isso não significa que uma proporção maior de pessoas seja mais criativa — há, inclusive, evidências que sugerem o contrário.

O que pode falar sobre inovação?

Inovação não acontece só porque você decorou seu espaço de trabalho com bolas de plástico coloridas e um pufe, ou porque participou de algumas reuniões de brainstorming no escritório. Inovação acontece porque um problema real, merecedor de sua atenção, está martelando em sua mente. Você vai dormir com ele e acorda na manhã seguinte com ele. Ele entra e sai de sua consciência periodicamente ao longo do dia. Mesmo quando você está descansando, ele cutuca a porta da sua consciência.

A criatividade e seu desdobramento, a “inovação”, não consiste em dar saltos quânticos rumo a um futuro desconhecido. Ela é uma extensão suplementar de possibilidades já existentes pontuadas por bifurcações repentinas e às vezes inesperadas. Nesse sentido, ela é um pouco parecida com o modelo de equilíbrio pontuado da evolução darwinista proposta pelo paleontologista Stephen Jay Gould. Na história da evolução, os peixes não acordaram um belo dia com pernas, os elefantes com trombas e as girafas com pescoços compridos, mas tudo isso é um processo muito lento de cópias fiéis com erros raros, aliadas a avanços mais rápidos ocasionais que podem ou não ser favorecidos por um ambiente em contínua mudança.

A criatividade e seu desdobramento, a “inovação”, não consiste em dar saltos quânticos rumo a um futuro desconhecido. Ela é uma extensão suplementar de possibilidades já existentes pontuadas por bifurcações repentinas e às vezes inesperadas.

Pode desenvolver um pouco mais?

Vamos imaginar que você acabou de terminar algo em que vem trabalhando há muito tempo. Você acha que isso representa um avanço significativo do seu trabalho, uma inovação, e até mesmo, quem sabe, uma contribuição para o seu campo de trabalho. Só que você está perto demais do problema para vê-lo com clareza. Talvez esteja experimentando a miopia que esse tipo de proximidade muitas vezes supõe. Seu trabalho parece novo. Parece bom, mas você simplesmente não tem certeza. Precisa de uma opinião. Então, você mostra o trabalho para várias pessoas em cuja opinião confia. Elas dizem que está muito bom, talvez o melhor que tenham visto você produzir em algum tempo. Mas pense um pouco. Quais são exatamente as chances de a sua ideia ser inovadora de verdade? Você conseguiu aprovação imediata. Conseguiu consenso. Mas se a ideia for de fato inovadora, você realmente espera consenso? Essa avaliação é tão consensual quanto uma pesquisa de mercado, que no fim das contas é uma mostra do que já existe na mente das outras pessoas.

Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Ao falar sobre sua trajetória como um provocador comediante de stand-up, o britânico Stewart Lee afirmou: “Decidi escrever comédia como se estivesse querendo ser demitido.” O que ele quer dizer? Não está dando um tiro no pé? Não é uma afirmação meio masoquista, ou até suicida? Eu não acho. Acho que é apenas uma baliza para medir o quanto ele está trabalhando no limite das suas capacidades. Vamos virar isso: “Decidi escrever comédia como se eu estivesse querendo manter o meu emprego." Desse jeito, ele deve preencher as expectativas do seu chefe e, fazendo isso, manter seu emprego. Mas criatividade e inovação não são tanto sobre preencher as expectativas de chefes ou qualquer outra pessoa. É exatamente o ponto em que o seu trabalho diverge das suas expectativas em que estamos interessados aqui. É por isso que erros não são apenas tolerados, eles são provavelmente também uma pré-condição para a atividade criativa. Se você está trabalhando em novos territórios não tem absolutamente jeito nenhum de você evitar cometer erros. É melhor se acostumar com isso. E, se você tiver muita sorte, um desses erros pode abrir a porta para uma nova descoberta. Em uma tentativa de encontrar uma nova rota para a Índia, você pode descobrir as Américas.

✍ Natália Albertoni

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MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

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