O rap na linha de frente: as rimas diretas e poéticas de Hot e Oreia

Da ancestralidade ao agora: uma análise do álbum “Rap de Massagem”, novo trabalho da dupla mineira, e um bate papo exclusivo com Hot

Créditos: Paulo Abreu

A história do rap anda de mãos dadas com as particularidades do contexto social, cultural e artístico em que respiram os jovens da periferia. É importante notar (e exaltar) o papel do gênero na vida de milhares de pessoas pelo Brasil afora e as questões que o rap traz à tona, desde a sua criação, sendo um dos mais relevantes canais de disseminação de arte (e protesto) de muitos artistas desde os anos 80.

Décadas se passaram e, hoje, inegavelmente o rap está na linha de frente contra opressões políticas e sociais. Com rimas sinceras e diretas (e até algumas brincadeiras irônicas para quebrar o gelo), a dupla mineira Hot e Oreia desmascara todos os signos e hipocrisias da nação brasileira. O novo álbum, Rap de Massagem”, é um ode à democracia brasileira.

Além das batidas eletrônicas, forte elemento do rap, o álbum traz, em diversos momentos, elementos de ancestralidade: o próprio álbum começa com uma reza (Eparrei) à Iansã, para iluminar os caminhos e o futuro dos artistas e suas comunidades (e até a própria trajetória que o ouvinte terá com o álbum).
O tema ancestral volta em “Xangô”, música que tem colaboração dos doces e iluminados vocais de Luedji Luna.

A dupla também se aventura em diferentes flows e formatos, deixando as rimas com mais melodias e batidas mais dançantes. Com ajuda dos músicos Marina Sena, Rafael Fantini e LG Lopes, cada música reflete uma identidade diferente, mostrando diferentes dinâmicas e habilidades da dupla de rappers.

Mas o clímax do álbum é “Eu Vou”, música com as rimas mais afiadas e batidas potentes que trazem um videoclipe ácido sobre os principais acontecimentos atuais sociais brasileiros, inspirado no filme “O Alto Da Compadecida” (2000). A participação especial fica por conta de Djonga, rapper mineiro que já conquistou o Brasil inteiro. A direção do vídeo é de Bello Melo e Vito Soares.

Temos esperanças na história que vai ser contada e “Rap de Massagem” conta a história sem devaneios. É um álbum emocionante, que fala a verdade em linhas retas e rimas poéticas. Esse álbum deveria ser estudado da mesma maneira que estudamos “Tropicália ou Panis et Circenses” (1968), de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé. Podem tentar converter a história, mas ninguém muda a arte. O rap é livre e ninguém pode pará-lo.

Confira uma entrevista exclusiva com o rapper Hot, feita pelo curador musical do MECA, Dimas Henkes:

Elementos ancestrais estão cada vez mais presentes na música contemporânea, seja no rap ou no funk. “Rap de Massagem” começa com “Eparrei” e em diversos outros momentos a ancestralidade volta nas letras e nas batidas, principalmente em “Xangô”. Como foi o processo de criar usando temas ancestrais no contexto contemporâneo do rap?

Na verdade, o tema ancestral acontece no nosso trabalho muito porque sou iniciado no candomblé, minha mãe carnal também é iniciada há muitos anos e esse é um universo que conheci quando criança e faz parte da minha trajetória. Depois de um tempo, eu chamei o Oreia para colar e a gente fez um jogo de búzios no terreiro que eu frequento em BH. E foi numa fase que nós dois estávamos deprimidos, pouco antes da minha iniciação.

Estávamos pedindo respostas, tentando entender por que não estávamos conseguindo dar um passo a frente no nosso trabalho e o que estava travando a gente. E as respostas foram extremamente importantes para conseguirmos concretizar o disco. Mudaram bastante a perspectiva do Oreia sobre a espiritualidade e a gente não podia deixar de tocar no assunto.

Por isso a gente abre o disco com “Eparrei”, que fala desta situação que passamos, das lembranças, dos perrengues e das correrias no trajeto. E tem Xangô, que é uma chamada de força, com a participação da Luedji Luna que também é iniciada no candomblé — e que nós admiramos muito e está agora nas correrias internacionais da carreira dela, graças aos orixás.

Nas rimas, vocês são bem diretos sobre os problemas sociais e políticos do país. Vocês abrem as feridas pra todo mundo ver e sentir. Então, por que o nome
“Rap de Massagem”?

O “Rap de massagem” é isso também: é pegar nos pontos mais tensos da pessoa que está sendo massageada e mesmo que doa de inicio, depois vai ficar melhor [risos].

E é isso. A gente pega em alguns pontos tensos da situação do Brasil pra ficar melhor, pras pessoas enxergarem. É muito a nossa função também. É uma coisa instintiva nossa, não pensamos antes de escrever “Eu vou”, por exemplo. A gente escutou o beat, estávamos conversando sobre o assunto umas semanas atrás e foi natural. A gente já queria falar disso do nosso jeito, sabe?!

É interessante ver o grande número de colaborações nas músicas, assim podemos ver mais flexibilidade no som e mais melodia nas rimas, mostrando ainda mais o talento e habilidade de vocês. Como foi o processo de criação coletiva do álbum?

O curioso é que ninguém colou com a gente no estúdio. A gente teve a oportunidade de trabalhar com o Henrique Stanio, o Fantasmatik, que foi o diretor musical do disco e ele que guiou a parada. Tem instrumentistas que são nossos parceiros, mas eles colaram com o Henrique e a gente nem precisou estar presencialmente, ficávamos acompanhando.

A mesma coisa com a galera que colocou voz. Por exemplo, com o Djonga eu mandei pra ele e falei: “Irmão, essa é aquela track que a gente tava esperando, que a gente gosta de fazer, tipo DV Tribo né, e a gente falou do Bolsonaro, mas eu queria que você falasse da gente.” Isso por celular e ele em turnê, numa correria danada, mas saiu. Em “Xangô” também foi assim. O Djonga me apresentou a Luedji, ela ouviu a música, pirou e já disse: “vamos gravar”. A gente ainda nem se conheceu, o que é o mais louco.

Então, basicamente o processo de criação foi entre eu, Oreia, Giffoni, o Henrique e o Macaco, que são as pessoas que estavam com a gente no estúdio, os amigos que fizeram a mixagem, e a galera colando só para gravar.

O rap é, inegavelmente, o estilo musical que está na linha de frente contra o sistema desde o sua origem. Nas rimas de vocês, fica claro que o papel do rap continua o mesmo. O que mudou dos anos 80 pra cá no rap?

Eu acho que a forma, sabe, tipo geometria mesmo. Antes a coisa era ou quadrada ou redonda. A realidade nua e crua ou simplesmente festa. Hoje em dia fala-se de realidade e festa na mesma música. Hoje se satiriza, se coloca drama — da perspectiva da dramaturgia. Hoje em dia, tem espaço para LGBTI, para crianças, sabe?

Vocês cantam sobre o passado e o presente de vocês. O que vocês esperam do futuro?

A gente espera ter dinheiro, viver da parada, sabe? Viver da parada sem passar perrengue. Para ter filhos, para poder sismar de jogar bola terça-feira a tarde. Viver da parada para sermos livres.

Essa matéria feita pelo nosso curador musical Dimas Henkes. Segue a gente no Instagram? E no Twitter também?

--

--

MECA
MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca