Inteligências artificiais estão se tornando capazes de produzir conteúdos cada vez mais parecidos com a linguagem humana. O jornalista Nathan Fernandes investiga que rumos isso pode tomar

Foto: Divulgação

Em 1970, o pesquisador japonês Masahiro Mori já previa o desconforto que as pessoas sentiriam ao se depararem com robôs muito parecidos com seres humanos. Apesar da familiaridade observada nas máquinas poder despertar simpatia, à medida que essa aparência aumenta, pode virar desprezo. É o que Mori chamou de ‘Vale da Estranheza’ (ou ‘Uncanny Valley’), o ponto em que a semelhança humana encontra o abismo perturbador.

Todo mundo que já jogou games ultrarrealistas ou se emocionou com a Elis Regina cantando em um comercial de carro passou por essa sensação esquisita. Ultrapassar esse vale, ou seja, convencer as pessoas de que o robô (ou a imagem digital) é, de fato, um ser humano, ainda é um desafio. Mas nem tanto para as inteligências artificiais (IAs) generativas.

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Em 2022, uma ilustração criada a partir do Midjourney pelo designer Jason Allen levou o primeiro lugar em uma competição de artes nos Estados Unidos. No começo de 2023, o designer Ammaar Reshi escreveu, editou e publicou um livro infantil inteiramente escrito utilizando o ChatGPT, em menos de 72 horas. À medida que essas ferramentas se tornam capazes de produzir conteúdo indistinguível da linguagem humana, a linha que separa o humano do artificial fica borrada.

Ilustração: Jason Allen

Para criar, as IAs generativas se alimentam de bancos de dados com informações que já existem. Em 2016, por exemplo, uma IA da Microsoft chamada Tay, treinada para responder usuários do Twitter, precisou ser desativada depois que começou a postar ideias nazistas e conspiratórias, influenciada pelos próprios usuários. Desde o episódio, isso virou uma preocupação crescente. O que aconteceria, então, se as informações que alimentam as IAs não fossem infectadas pelos preconceitos existentes na sociedade?

Segundo a pesquisadora Silvana Bahia, idealizadora do PretaLab e codiretora executiva da Olabi, uma das formas de garantir que as IAs não reproduzam os mesmos padrões nocivos passa pela busca de inclusão do público consumidor dessa tecnologia no processo de desenvolvimento. “Se ainda estamos no início, como seria incluir outros pontos de vista nessa criação? Outras perspectivas mais inclusivas não só de corpos, mas de subjetividades”, polemiza a empreendedora.

Foi pensando nisso que a startup norte-americana Anthropic desenvolveu o Claude, um bot rival do ChatGPT, que é orientado por princípios extraídos de fontes como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Mas, além das iniciativas comerciais, a arte também reflete sobre como os preconceitos estão embutidos na linguagem científica. É o caso da artista Giselle Beiguelman, pesquisadora e professora da USP. No projeto ‘Botannica Tirannica’, ela abasteceu um banco de dados com nomes machistas, racistas e antissemitas de plantas — como Judeu errante, Maria-sem-vergonha, Bundade-mulata e Chá-de-bugre — e misturou as espécies com ajuda de uma IA, criando fotos e vídeos de um jardim digital de vegetação fictícia.

A imaginação também é importante, entre outros lugares, na área da saúde. Em 2023, pesquisadores da Universidade de Washington, nos EUA, lançaram um software chamado RFdiffusion. Ele funciona como o Midjourney, capaz de projetar proteínas nunca vistas em 3 bilhões de anos de evolução na Terra, que podem servir de base para vacinas, medicamentos e novas formas de terapias.

Essa imaginação não é imprescindível apenas para a arte ou a ciência, mas para o futuro das próprias IAs. Afinal, como disse a escritora de ficção científica Charlie Jane Anders em uma apresentação do TED Talks: “as pessoas não preveem o futuro, elas o imaginam”. O escritor Alexey Dodsworth, mestre em filosofia e coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Riscos Globais da Unifesp, concorda. “A ficção científica pode ser absurda, como no filme ‘De Volta para o Futuro’, e também pode ser especulativa, que parte de cenários já existentes para projetar o futuro. Não à toa, tantas empresas estão contratando escritores de ficção científica para palestras e oficinas”, conta Dodsworth, reforçando uma tendência que companhias como Microsoft, Google e Apple já fazem há anos. A presença das IAs generativas é sentida em empresas de todos os setores. “Já as políticas públicas não ligam para isso. Os governantes ficam apagando incêndios e lidando com as coisas à medida que surgem”, reafirma o estudioso.

Charlie Jane Anders. Foto: Divulgação

Essa falta de planejamento impede a criação de medidas como uma regulamentação mais efetiva. “Estamos criando IAs que não seguem nenhuma regra ética”, alerta Dodsworth, lembrando que a tecnologia é sempre mais rápida que as normas. “Muitos legisladores não entendem de tecnologia, nem conseguem imaginar essas questões. Por isso, vamos precisar de uma conversa cada vez mais ampla entre as pessoas que criam as leis e aquelas que estão inseridas nessas discussões”.

As bases para a criação de um futuro confortável — para além do ‘Vale da Estranheza’ — estão sendo lançadas agora. “As pessoas falam do futuro como se fosse um país das maravilhas tecnológicas ou algum tipo de churrasco apocalíptico de cocô. Mas a verdade é que não vai ser nenhuma dessas coisas”, enfatiza a escritora Charlie Jane Anders. “Vai estar no meio, vão ser ambos, vai ser tudo. A única coisa que sabemos é que o futuro será incrivelmente estranho. É só pensar no quão bizarro o início do século 21 pareceria para alguém do início do século 20”, diz ela.

3 perguntas para Silvana Bahia, pesquisadora de IAs e idealizadora do PretaLab

Silvana Bahia. Foto: Divulgação

1. Você acredita em um futuro positivo em relação às IAs?

Geralmente, a criação desse tipo de tecnologia está atrelada ao consumo ou à criação de demandas que nem existiam antes. Mas, sob uma ótica positiva, gosto de pensar no que acontece quando a gente coloca pessoas com backgrounds diferentes no processo de criação.

2. De que forma as IAs podem impactar nossos trabalhos?

Em um contexto como esse, a única coisa que a gente pode fazer é conservar a nossa habilidade de aprender. Talvez isso garanta a nossa sobrevivência no futuro. Acho que só existem duas certezas no amanhã: uma é que ele é incerto, outra é que o consumo de tecnologia não vai diminuir, não vamos voltar para o analógico. Então, é preciso manter a curiosidade e a disposição para ouvir, refletir e aprender.

3. O que mais te impressionou em relação às IAs, ultimamente?

O ChatGPT é uma coisa que chamou bastante a minha atenção. Para além de uma aplicação ou uma plataforma, o que se destaca é a nossa necessidade de fugir do presente. Vejo essas IAs que mostram como vamos ser mais velhos, ou como vão ser nossos filhos, por exemplo, como uma grande necessidade que temos de estar sempre pensando lá na frente. Por que temos tanta dificuldade de nos manter no presente? A gente se esquece que o futuro é construído no agora.

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MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

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