Quando a arte revela seu caráter transformador e sua capacidade de adaptação: enquanto expressões artísticas analógicas flertam cada vez mais com novas tecnologias, em um processo sem volta ampliado pela pandemia, a arte digital se difunde, se multiplica e nos convida a ampliarmos nossos horizontes.

Obra "Animals Of Flowers Symbiotic", de quando se ainda podia visitar museus, exposta fisicamente no Building Digital Art Museum, no Japão. (Crédito: Divulgação/Mori Building Digital Art Museum).

Em tempos analógicos — ou nem tanto assim –, o poeta baiano Waly Salomão cunhou: “Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.” A singela frase do poema Câmara de Ecos, de 1993, é uma representação da vida, das relações humanas e da arte. Vivemos paradoxalmente em um mundo de fronteiras invisíveis e em uma sociedade hiperconectada — ainda mais durante a pandemia do Covid-19 –, onde tecnologia e expressões culturais se fundem, confundem, entrelaçam e transbordam. Como no mais apertado dos abraços que por ora não podemos dar.

Se a indústria cultural foi uma das mais afetadas com o coronavírus, a mesma cultura serviu de refúgio para todos nós. E a arte digital, que sempre foi meio avessa a rótulos e fronteiras, — e que o galerista e estudioso alemão Wolf Lieser conceituou como “obras que por um lado têm uma linguagem visual especificamente mediática e, por outro, revelam as metacaracterísticas do meio” — , ganhou novo significado.

Na internet, o número de buscas por “museu virtual” aumentou 1300% nos últimos três meses em inglês — e 1000% em português. Com o contato físico restrito a vídeo-chamadas e muitas atividades limitadas a algumas paredes, a cultura reassumiu seu papel relevante no espetáculo da humanidade em versão mais tecnológica.

“A arte pode nos iluminar, trazendo beleza e alegria, ou apertar nossos botões mentais, nos tirando do conforto das nossas ideias e ideais. A arte faz crescermos como seres humanos questionadores e esclarecidos”, enaltece a artista digital franco-israelense Vanessa Louzon. Mesmo pensamento tem a artista plástica paulistana Gisela Motta: “Acredito que a arte é uma linguagem necessária e essencial, que consegue mover as pessoas ao falar de forma mais direta, política e poética, sobre a vida.” E se a arte analógica já flertava com o digital, a pandemia veio para acelerar transformações culturais e tecnológicas.

A porosidade das fronteiras

Foi no Japão que surgiu, há dois anos, o primeiro museu de arte digital do mundo. O Mori Building Digital Art Museum nos transporta para um universo mágico de luzes e cores através de projeções, espelhos, holofotes, câmeras 3D, realidade aumentada e outras combinações tecnológicas. “Queremos que os visitantes entendam como a tecnologia digital pode expandir a concepção de arte e como essas técnicas podem liberar a arte de um sistema de valores baseado apenas em materiais físicos”, compartilha o teamLab, grupo interdisciplinar responsável pelas exposições.

Em seu primeiro ano de existência, o museu recebeu 2,3 milhões de visitantes. “Acreditamos que o domínio digital pode expandir as capacidades da arte e que a arte digital pode criar novos relacionamentos entre as pessoas, a natureza e o mundo”, afirmam os criadores do teamLab, por meio do diretor de relações públicas Kazuna Takahashi. Não por acaso, o museu adota o conceito “borderless” (sem fronteiras). Por lá, as linhas de Waly Salomão também se romperam. E a iniciativa japonesa inspirou novos museus digitais pelo mundo, como o Atelier des Lumières, em Paris, e o MIS Experience, em São Paulo.

Multiplicar o acesso ao acervo de mais de 2 mil museus, desafiando os limites entre analógico e digital, é uma das missões da plataforma Google Arts & Culture. “Queremos criar maneiras novas e surpreendentes de interação com arte e cultura. Já atraímos milhões de pessoas com experiências interativas, museus em realidade aumentada ou dinossauros em realidade virtual”, destaca Fernanda Guzzo, gerente de comunicação do Google Brasil. Entre as preciosidades da coleção digital estão o projeto “Portinari: o Pintor do Povo”, dedicado ao modernista brasileiro, e um tour virtual pelo Museu Nacional antes do trágico incêndio de 2018.

Outras instituições recorreram ao digital por novos laços com o público. O Museu da Imagem e do Som de SP (MIS) está compartilhando seu riquíssimo acervo no YouTube, a centenária Pinacoteca de SP abriu sua primeira exposição online de filmes e vídeos, e o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) digitalizou sua mostra sobre o Egito Antigo. Expressões artísticas como música e teatro também migraram para o digital, das plataformas de streaming às peças na íntegra na internet. Pelo revés do tempo, nossa memória cultural se fortifica através dos pixels.

O digital como extensão humana

Para Paula Perissinotto, cofundadora e organizadora do Festival Internacional da Linguagem Eletrônica (FILE), há 21 anos em São Paulo (SP), a tecnologia é uma extensão social, política, econômica e artístico-cultural da humanidade. “Assim como as pessoas a partir dos anos 1990, muitas obras de arte já nasceram digitais. Com a rapidez dos processos tecnológicos, diversos artistas fazem um uso transgressor dessas ferramentas”, destaca.

Já a artista multidisciplinar norte-americana Kristin McWharter destaca a porosidade dessa sociedade digital. “Vemos várias performances físicas, do teatro às reuniões corporativas, adaptando-se a um formato virtual. Me impressiona como o virtual nos mantém juntos neste momento. Dificilmente conseguiríamos coordenar trabalho e entretenimento com a mesma eficácia sem webcams.”

Mas Kristin vai além: “Esse mundo cada vez mais digital também expõe uma retórica enganosa sobre o que queremos dizer com ‘conexão’. A adaptação do formato físico para o formato online me parece um feito atlético. As mesmas desigualdades estruturais que nos separam no mundo físico afetam nosso acesso online — e são ocultadas pelo design e branding das redes que mediam nossa vida virtual.” Conscientemente ou não, estamos em meio a uma revolução digital e ainda é cedo para apontar resultados. Acelerada pela pandemia, a arte analógica migrou para o online e a arte digital se instalou em nossas casas. Em um cenário onde o contato físico nos deixa vulneráveis, o digital assumiu protagonismo nas águas cíclicas da história. E, nesse mar de infinitas possibilidades, o caráter inventivo e democrático da arte é o nosso grande amuleto.

Múltiplos caminhos // A arte digital pode assumir inúmeras facetas:

Bioarte e genética

"Sugababe" de Diemut Strebe. (Crédito: Divulgação)

A artista alemã Diemut Strebe já recriou a orelha de Van Gogh a partir de genes da família e produziu uma boca robótica de silicone, criada com inteligência artificial e que rezava sem parar, exposta no Centro Georges Pompidou, na França, antes da pandemia.

Ancestralidade e política

Comunicador indígena fundador da Rádio Yandê, Anápuáka Tupinambá idealizou a exposição “RePangea”, uma experiência sensorial tecnoxamânica em Realidade Virtual que nos instiga a repensar nossa relação com a Terra e entre nós, que esteve em cartaz no Museu do Amanhã no ano de 2019. CriptoArte

O mercado de arte aderiu ao blockchain, tecnologia de registro e comercialização de criptomoedas, para dar mais segurança às transações. Pessoas que não querem deixar seus Bitcoins na rede podem comprar obras físicas com QR codes especiais e que funcionam como carteiras offline para o armazenamento de valores.

Flerte revival: iniciativas brasileiras de arte com um crush digital

A reinvenção, a solidariedade e a celebração da cultura guiam projetos surgidos durante a pandemia.

Arte por Solidariedade

Servidores e estudantes do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) em Olinda criaram um leilão virtual pelo Instagram para vender obras de arte em vários formatos e ajudar famílias em situação de vulnerabilidade na região. São obras em diversas técnicas e estilos, de artistas que cederam talento e cores para o bem.

Museu do Isolamento

Primeiro museu brasileiro online criado para difundir arte em tempos de isolamento social. Idealizado pela relações públicas paulistana Luiza Adas, o projeto divulga e reverbera o trabalho de diversos artistas prejudicados pela pandemia, além de inspirar e comover quem, como nós, ama arte . Para participar, basta se inscrever.

“CROPPED”, de Edu Barros

O artista carioca saiu da favela da Rocinha para pintar afrescos na Sé Galeria, em São Paulo. Mas, dois dias depois de ele chegar lá, o isolamento começou. Diante da galeria fechada e da mostra física cancelada, Edu, O Profeta, transformou-a na mostra digital “CROPPED”, com a transmissão online do seu processo revolucionário e pós-apocalíptico.

Leia na íntegra a edição #29 do jornal mais carinhoso e brilhante de todo o Brasil ❤:

Esta reportagem faz parte do MECAJournal #29 e foi escrita pela repórter Débora Stevaux. Segue a gente no Instagram? E no Twitter também?

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Débora Stevaux
MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

repórter de cultura & social media do @mecalovemeca que escreve porque acha que a arte é transformadora o suficiente para gerar impactos sociais positivos