Um dos destaques do filme “Bacurau”, no qual interpreta o cangaceiro queer Lunga, Silvero Pereira acumula 20 anos de uma carreira dedicada à arte e visibilidade às minorias na pele da drag queen Gisele Almodóvar, seu alter ego

Nascido no sertão do Ceará, na pequena cidade de Mombaça, Silvero Pereira teve seu primeiro contato com o teatro na escola, aos 17 anos — e foi paixão à primeira vista. Aos 37, o ator e diretor dedicou as últimas duas décadas à arte, especialmente ao teatro. Seu coletivo artístico As Travestidas reúne talentosos atores e atrizes transexuais e travestis, com espetáculos que já ultrapassaram as fronteiras de Fortaleza. Sob o alter ego da drag queen Gisele Almodóvar, ele provoca, questiona e desconstrói preconceitos. E foi na pele de Lunga, o cangaceiro queer de “Bacurau”, que Silvero ganhou ainda mais projeção nacional. Em um bate-papo com o jornalista Felipe Seffrin, ele fala sobre arte, desejos e memórias.

O que você gostaria que sumisse do mapa?
“Toda essa política que está acontecendo agora. É um desperdício para a democracia e para um estado laico. Conseguimos avançar nos últimos anos e agora, em tão pouco tempo, a gente só teve retrocesso. Queria realmente que isso saísse do mapa.”

Para que serve a arte?
“A arte é para provocar. Não acho que temos que responsabilizar os artistas por transformações sociais. A transformação social é um fenômeno que acontece entre artista e espectador. A principal função da arte é provocar, e a partir daí termos reações na sociedade. Um mundo sem liberdade é… É uma desgraça. A gente tem que pensar na felicidade, que está muito vinculada à liberdade das pessoas. Sem liberdade no mundo, só existe aniquilação.”

No que você pensa antes de dormir?
Durmo e acordo pensando em trabalho. Tenho muita dificuldade de relaxar. É um constante processo, seja no teatro, na TV ou no cinema. Estou sempre pensando nos meus próximos projetos.”

Como foi a primeira vez que você viu uma peça de teatro?
Foi uma das coisas mais mágicas que já aconteceram na minha vida. Naquele dia eu decidi que queria fazer arte. Lembro que anunciaram uma peça no meu colégio e eu não estava muito a fim. Eu não gostava de arte até então, porque nunca tinha visto ela feita por pessoas que gostam de fazer arte, professores que são artistas. Quando tive essa experiência, entendi o que era arte e imediatamente me matriculei na aula de teatro.”

O que tem no sertão brasileiro?
Tem mandacaru. Gosto de dizer isso porque aparentemente essa é uma planta que está morta, mas é de onde brotam as flores mais bonitas do sertão. Temos a caatinga, que é uma vegetação que parece morta, mas basta chover que floresce e fica tudo verde. As pessoas precisam entender que o sertão está sempre vivo.”

Como você se identifica hoje?
“Eu não me identifico, na verdade. Não gosto de nenhuma nomenclatura. Não me considero masculino ou feminino, e sim um ser livre. Eu gosto de transitar. Ser drag queen é… Uma identidade artística. Um ato de liberdade, de gritar para as pessoas o que se pensa e o que se quer através da música e da performance.”

Armário ou espelho?
“Espelho, completamente. Agora, é fundamental olhar para o espelho e prestar muita atenção aos detalhes. Chega um momento em que a sua imagem começa a desaparecer e virar outra coisa na sua frente. Esse é o momento mais importante do espelho: quando você se enxerga de verdade.”

Aonde a comunidade LGBTQ+ pode chegar?
“Gostaria que a gente chegasse a um lugar onde a gente não precisasse se esconder. Onde ninguém se sinta violentado ao entrar no mercado, ao andar na rua. Onde as pessoas olhem pra gente e enxerguem que fazemos parte da sociedade, e não que estamos à parte dela.”

Se você pudesse viajar no tempo, para onde iria?
Eu iria para a minha infância, ter contato com o Silvero criança. Diria para ele ter mais calma, ficar mais tranquilo, que as coisas vão dar certo. Basta ele seguir com os pensamentos que ele tem, que todas as angústias vão passar.”

O que precisamos aprender com o Lunga?
Que a gente não pode esquecer o lugar de onde a gente veio. A gente pode até não concordar com aquilo e se afastar por um tempo. Mas sempre deixar claro: ‘Eu estou por perto. Se precisar, eu volto’”.

E que conselho a Gisele Almodóvar daria para os mais jovens?
“‘Não se sintam cansados.’ Tenho ouvido muito da juventude algo como “tenho 20 anos e estou cansado de ser maltratado”. O Lunga fala isso, ‘cansado o caralho, eu tô é com fome’. A juventude tem que entender que a gente precisa ter menos cansaço e mais fome!”

Esta entrevista faz parte da edição #028 do MECAJournal e foi realizada
pelo editor Felipe Seffrin. Segue a gente no
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MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

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