Crítica: “Coringa”, direção Todd Phillips

Bruno Burinetti
Me Desculpe, Dave
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4 min readOct 4, 2019

Já faz tempo que o Coringa infesta o cinema com suas diversas encarnações. Temos sua interpretação definitiva com Heath Ledger passando pelo célebre trabalho de Jack Nicholson e também pela esquecível construção cometida por Jared Leto, sem falar na versão pastelão da série dos anos 60 feita por Cesar Romero. Pela primeira vez, contudo, temos um estudo de personagem complexo focado exclusivamente em um dos maiores (o maior?) vilão das Hq's.

Escolhido pra capitanear o projeto, Todd Phillips sempre foi o pé atrás de quem assistia trailers sobre o filme. Poderia o diretor da trilogia "Se Beber Não Case” extrair densidade de um personagem tão controverso? E a resposta para essa questão, felizmente é positiva. “Coringa” (“Joker” no original) tem peso e é dirigido com mãos firmes e mente aberta para absorver uma gama gigante de referências e homenagens.

Acompanhando Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) em sua fase pré palhaço assassino, vemos uma figura triste a afetada pela vida e pelo mundo que o rodeia. Seus graves problemas psicológicos são expostos sem filtro com a intenção de criar maior identificação e empatia com o protagonista. Nossa eterna torcida pelo vulnerável sendo usada contra nós. Ponto pra eles.

Fleck vive com a mãe (Frances Conroy) e se julga bom filho, cruza com a vizinha Sophie (Zazie Beetz) pelo caminho e ensaia algum tipo de interação. Tudo aos tropeços, com muito sacrifício. Talvez o que lhe dê algum fôlego para encarar e tentar mais um dia seja seu tratamento psicológico, que faz em um projeto social, mais precisamente sua pesada medicação. Mas a derrocada de Arthur e nascimento do Coringa é irreversível. A sociedade lhe é cada vez mais hostil e abjeta, seu projeto de stand up comedy é inviável, ele não é engraçado. Seu trabalho como palhaço de lojas não existe mais. Algo precisa ser feito.

Pensando na criação do personagem central, Joaquin Phoenix usa e abusa de todos os recursos de atuação que um ator de seu calibre possui. Sua risada não é aquela de diversão criada por Ledger em "O cavaleiro das Trevas”, ela é patológica, constrange e causa angústia. Closes fechados em suas expressões flagram mudanças repentinas de sentimento e não raro, Phillips confina o protagonista em seu quadro, espremido em objetos do design de produção, evidenciando seu desconforto. Se a mola propulsora da fita se calca no poder de atuação de Phoenix, a montagem e direção ajudam bastante, amarrando rimas visuais belíssimas como a de Arthur subindo escadas no primeiro ato: em frangalhos, curvado, abatido em um dia horrível e chuvoso e no terceiro ato descendo os mesmos degraus em um dia lindo de sol, dançando feliz já trajado como Coringa.

Com uma composição estética e arco dramático perfeitos, o filme talvez derrape ao ter um ponto de reflexão difuso. Temos aqui uma crítica aberta ao capitalismo e sua elite (o que seria plausível, dado a ótima sacada de botar a burguesia no cinema aplaudindo o clássico “Tempos Modernos” de Charles Chaplin)? Mas como um homicida desequilibrado jogaria luz com credibilidade nessa discussão? Seu ponto de reflexão é o padrão de comportamento incel, branco, preconceituoso? Não parece ser. Ou apenas vemos o crescimento desordenado do famigerado “agente do caos”?

Muitas diretrizes, porém a que satisfaz mais talvez seja sobre as armadilhas que a mente pode plantar no caminho de cada um de nós. Nada disso porém atenua o peso e relevância da obra.

Violento e desconfortável, ainda há tempo para homenagear e beber na fonte de Scorsese e seu ótimo “O Rei da Comédia”, dando a Robert deNiro um apresentador de talk show para chamar de seu.

O estrago está feito e o Coringa está vivo, o espectador ri algumas vezes sim, só que de nervoso, não há redenção aqui e a cama é feita para no futuro desse universo existir um encontro com o Batman, e o vigilante de Gotham encontrará lá na frente um rival implacável e sem chance de recuperação moral.

Faça o seguinte: após a sessão tente tirar da cabeça a gargalhada angustiada e terrível do palhaço. Tente.

Mesmo com com tantas encarnações no cinema, o Coringa tem agora mais uma que podemos chamar de eterna.

★★★★ ½

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Bruno Burinetti
Me Desculpe, Dave

Viciado em cinema, futebol e birosca. Pai do Arthur da Maria Clara e do Thor. Marido da Paula e hater de azeitona.