Jornalistas e superbobos

A emoção de fazer um frila

Você até esquece que por muito tempo foi preciso derrubar árvores para se fazer jornalismo

Alexandre Secco
DeepContent
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5 min readMay 20, 2015

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Quem tiver paciência, boa sorte: faz tempo que estou mergulhado no digital e havia mais tempo ainda que eu não fazia um frila. Você até esquece que por muito tempo foi preciso derrubar árvores para se fazer jornalismo. Acho que para as denúncias do Pedro Collor contra o irmão presidente chegarem ao público, tiveram que derrubar uma floresta inteira no Canadá. Coisa selvagem. Mas, uma querida amiga pediu, eu achei bem legal a ideia. Fiquei pensando romanticamente no que poderia escrever, na possibilidade de exercitar meu gosto suspeito por relatos de impressões, mais isso, aquilo e bumba: Sim! Eu topo fazer o frila! Primeira impressão: incrível como algumas coisas no jornalismo continuam nos anos 80. Logo te avisam que a verba é pouca, que o prazo é curto e que a matéria vai ser pequena…Claro, e lembram que aquela pauta que pensamos originalmente mudou um pouco…. Sossegado. Nada que já não tenhamos visto antes.
Minha missão era relatar a experiência de uma viagem que eu fizera recentemente. Entre as orientações mais importantes, fui avisado que os “serviços”, endereços traquitanas e URLs de sites eram obrigatórios para todos os locais mencionados. Mas e a web, as redes sociais? As pessoas ainda procuram endereços em publicações de papel?. Deus, dilemas do jornalismo moderno — não tão moderno, diga-se.

Na primeira linha eu topo com um “largo sorriso”

Acho que cumpri minha pauta e ainda por cima entreguei no prazo, o que me deixou bastante satisfeito comigo mesmo. Nesse admirável mundo do frila moderno, o Google vem em nosso socorro para mostrar o que não vimos e revelar o que não nos foi revelado. Lembrei de uma reportagem de Veja que me tomou quase seis meses: O poder dos barões do tráfico. Um retrato dos maiores traficantes do Brasil, que fiz quando só havia o celular — um recurso para ser usado com muita parcimônia naqueles tempos.
Beleza, mas eu estava orgulhoso por ter conseguido descrever impressões que não se encontram no TripAdvisor e julgamentos pessoais que me pareciam úteis para outros seres humanos além do "eu mesmo". Talvez tenha abusado da ironia. Afinal, qualquer sujeito bem avaliado no Enem sabe que, em português, geralmente esse troço não rola. Mas que diabos! Se você não acelera um pouco, com graça, ironia ou até mesmo provocação não há razão para alguém varar no papel um texto igual aos 500 que se descobre pelo Google.

Lembrei daquela crítica de teatro: tudo estava ótimo até levantarem as cortinas.

Tudo estava indo muito bem até que eu recebi meu texto editado. Lembrei daquela crítica de teatro: tudo estava ótimo até levantarem as cortinas. Meu texto editado? Como eu vinha usando apenas as minhas próprias por muitos anos, eu tinha esquecido completamente a sensação de receber sua matéria reorganizada por mão alheias. Na primeira linha eu topo com um “largo sorriso”. Depois, um fulano, descrito no original fazendo uma coisa, apareceu fazendo uma outra em sua versão editada. Entre um desconforto e outro cheguei ao fim com a sensação de que não me reconhecia naquele trabalho. Uau! Você leva um tempo para dizer ao seu editor. Mas eu achei que vinte anos me autorizavam a tal descabimento. E não foi só retórica. As criaturas sobre as quais eu falava eram simpáticas, mas não se apresentavam em largos sorriso em público. Aliás, sabe-se Deus o que é um largo sorriso.
Depois de criar umas dez revistas inteiras, produzir algumas dezenas de reportagens de capa sobre crimes, política, dieta e o diabo…De ter feito entrevistas mais ou menos polêmicas e ter passado pelo pacote completo do jornalismo, da primeira nota como estagiário até o de dono de editora….Ufa, ponderei que tinha o direito de escolher se queria ou não ver meu nome associado a um texto e dirigi essa ponderação para a minha editora. Não sei se meu email traduziu meu constrangimento, mas informei que tal texto "não me representava", que não queria ver meu nome associado a ele e blá-blá-blá…
Não discuto se as reportagens devem começar com sorrisos largos ou estreitos, há tantas alternativas no português que é possível chegar às melhores combinações até quando se parte de elementos precários. Acho até os editores sabem melhor do que ninguém o que fazer com suas publicações. Embora tenha muitas dúvidas sobre isso, pois de um modo geral o jornalismo está muito chato. Chatíssimo. Mas em resumo, na minha escola aprendi que o editor fala e tá falado. Em resposta a minha consideração, meu editor garantiu que estava no domínio da situação e que saberia muito bem o que fazer. Fica frio!

No final das contas, não me reconheci no texto final

Não vi quando a reportagem foi impressa, ninguém me mandou um email, aparentemente o texto não tinha versão digital, nem pontes com as redes sociais. No mundo digital a gente escreve uma bobagem e espera um comentário. Ficamos terrivelmente mal acostumados a esse tipo de relacionamento.
Lembrei que publicações são garrafas de papel no oceano e que jornalistas são auto suficientes e que são pagos para decidir o que o leitor vai gostar e o que não vai. Por formação somos assim, meio anos 50. No final das contas, não me reconheci no texto final, poderia ter escrito coisas piores ou melhores, mas não aquela. Ninguém me deu parabéns, ninguém disse que estava um ruim, ninguém deu um like, ninguém falou obrigado…. Estranho. Diferente das coisas que se escreve sem a derrubada prévia de árvores. As pessoas aparecem, trocam ideias. No final esse episódio foi marcante para mim. Vivi jornalismo por vinte anos. Casei, fiz amigos, tive grandes realizações, prêmios, aumentos, fui processado por políticos ladrões, e tive aquela coisa que o ser humano precisa acima de tudo para viver que é reconhecimento. Eu me diverti muito também. Mas dessa vez senti uma enorme solidão. O jornalismo virou a solidão da grana curta, do prazo apertado, do sorriso largo, do texto publicado aqui que é quase igual ao que sai ali…..qua', quá, quá

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