Leonado da Vinci gostava de fazer o quê?

Fazer o que gosta é um conselho enganador.

Alexandre Secco
DeepContent
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4 min readMay 20, 2016

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Steve Jobs não foi o único a falar disso, mas ajudou a popularizar a ideia com seu famoso discurso sobre marinheiros e piratas, em Stanford, em 2005. Ele recomendou o seguinte: “you’ve got to find what you love”, ou seja, você tem que encontrar o que ama. E assim colocou meio mundo para pensar na vida.

É engraçado porque ninguém sabe o que Jobs realmente gostava de fazer: ganhar dinheiro, tipografia, mudar o mundo, humilhar subordinados, construir computadores, sistemas operacionais, ou os dois? Será que seu negócio era superar Bill Gates, ou o que ele gostava mesmo era da adrenalina de estar entre os competidores pelo título de mais rico do mundo…

E na área do “fazer o que gosta“, que tal Elon Musk, dono da Tesla e do projeto SpaceX, ele gosta mais de fazer foguetes, naves espaciais marcianas, ou é de fabricar carros elétricos que superam modelos da Ford e GM? E, já que chegamos aqui, é inevitável falar de Leonardo da Vinci. Segundo a Wikipedia, destacou-se como cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico! (Steve, Musk, vão encarar!?). Do que gostava esse Leonardo?

Apple 1

Quem precisava ralar 14 horas por dia na frente de um tear a vapor, ou na ponta do cabo de uma foice, não tinha tempo para se preocupar com isso, mas nós da classe média urbanizada podemos avaliar e reavaliar constantemente se gostamos, ou não, do que estamos fazendo. Adoramos fazer isso. Adoramos nos infernizar com esses pensamentos. O problema é que também nos ensinaram que temos a obrigação de ser felizes. Existe uma enorme e vibrante indústria da felicidade que não tolera a ideia de nos ver entediados. Qualquer coisa que abale a convicção de que estamos na senda da alegria nos deixa culpados. É por isso que meio mundo fica com a pulga atrás da orelha quando ouve esse tipo de conselho. “Você precisa fazer o que gosta”.

Eu mesmo fiquei um pouco perturbado quando prestei atenção a este assunto pela primeira vez. Na verdade, entrei em pânico quanto tocou o sino:

— ­ Você precisa fazer o que gosta!

— Eu? Eu estou fazendo o que eu gosto? Estaria eu perdendo tempo? Jogando minha vida fora? Deveria sacar da gaveta e colocar em prática o devaneio de ser oceanógrafo, advogado criminalista, viajante… Eu seria vítima de um complô organizado pelas minhas próprias fraquezas a fim de me afastar daquilo que eu realmente gosto só para padecer em sofrimento quando, no fim da linha, não tiver mais opções?

SpaceX

O diabo é que você só descobre se gosta de vinho, cerveja, ou coca-cola depois de experimentar. Portanto, nessa busca, partimos do escuro. Procurar fazer o que gosta, seguindo ao pé da letra a recomendação de Steve Jobs, pode nos levar a dar voltas e mais voltas sem destino algum — afinal não sabemos o que é. E eis que a coisa toda fica ainda mais enrolada. Quem procura, como diz a sabedoria milenar, só encontra quando sabe o que está procurando, o que faz sentido. Vivemos essa contradição de não saber o que queremos e ao mesmo tempo ter que saber o que é para pode encontrar.

Aparentemente, gastamos tanta energia nessas indagações que não reservamos tempo para aprender a tirar mais satisfação do que estamos fazendo agora, das pequenas e grandes coisas. Não me refiro a coisas estruturalmente insuportáveis como descascar cebolas, claro. Além disso, suspeito que muita gente ainda nem percebeu que, no fundo, gosta mais do que faz do que imagina. Cortar cebola é chato, mas preparar o cozido é bacana. Então, noves fora as lágrimas, corta cebola é divertido! Nesse caso, detestar e gostar é uma questão de perspectiva. Os quem têm filhos sabe que mesmo o amor incondicional precisa atravessar trocas de fraldas, noites sem dormir, manhas e malcriações. Tem a parte que é para curtir e as outras que é só para tolerar.

No mais, creio que, na acepção stevejobsiana, pouca gente que hoje apenas tolera o que faz saberia dizer o que realmente gostaria de fazer. Outro emprego, projeto de vida… Respostas genéricas como “ser reconhecido“, “curtir mais a natureza“, “viver em paz com meus semelhantes“ e outras do tipo não valem. Quero ver quem consegue formular um projeto objetivo, acompanhado de um bom plano executivo. Quero ver quem tem a coragem de se lançar no escuro. Aí a roda pega. Normalmente, a imagem dos nossos desejos vem empacotada em papel de presente. Quem sonha com uma casa com varanda pensa apenas nas tardes de sol, não conta com o frio e a chuva.

Precisa de muita coragem para encontrar. Enquanto isso, entre fazer o que gosta e o desencontro, acho que o bom mesmo é fazer alguma coisa.

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