A Determinação Social da pandemia de COVID-19

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Saúde Camarada
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19 min readNov 6, 2020

Por ser impossível aprofundar todos os pontos descritos aqui, deixarei linkados uma série de materiais em alguns pontos. Caso queiram aprofundar-se nestes tópicos, estas são minhas indicações sobre cada tema.

No contexto da saúde na América Latina, surgiu, nas últimas décadas do século XX, uma nova perspectiva de como se dá o processo de saúde-doença, ou seja, o processo em que uma pessoa passa de um estado considerado saudável e evolui para outro considerado doente. Para não estender ainda mais este texto, não será possível destrinchar o que é estar saudável ou doente, porém, será essencial explicar o que é ter saúde. Parece estranho pensar em conceituar algo tão “óbvio” quanto saúde, mas faz todo sentido se observarmos outras culturas não ocidentais ou de nossos povos originários, já que, para eles, saúde pode ser fundamentada em outros conceitos que não os nossos. Além disso, se historicizarmos isto, é possível notar que saúde foi considerada antigamente, na Europa, desde questões religiosas/espirituais até questões puramente biológicas (tudo seria causado por germes). Atualmente, sabemos que a origem direta da maioria das patologias sem precisar de metafísica e também sabemos que nem todas as patologias são causadas por germes, ou seja, nossa concepção de saúde mudou.

O que é saúde?

Com esse questionamento sobre o que é saúde, sempre, principalmente estudantes e profissionais da saúde, vêm com a resposta decorada do conceito da Organização Mundial de Saúde, que em 1946 descreveu:

Saúde define-se como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade.

Parece bom, não é? Bem progressista, cita até o lado social. Porém, isso é suficiente? Uma citação. Graças a este conceito, é vendida a ideia de que o “aspecto social” influencia o processo de adoecimento e cura na mesma medida que os “aspectos” físicos e mentais. A partir daí é possível questionar até que ponto esta perspectiva responde a pergunta. Conforme a conjuntura político-sanitária pré-SUS se tornava mais organizada junto à população e aos movimentos sociais, o Movimento da Reforma Sanitária, na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), chegou a outro conceito, um que com certeza é bem mais avançado e contempla mais a realidade da América Latina:

Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas (Anais da 8a CNS, 1986).

Este, chamado de Conceito Ampliado de Saúde, supera uma perspectiva ainda muito estudada nas Universidades Públicas e Privadas do Brasil e do mundo: os Determinantes Sociais em Saúde (DSS). Este conceito, apesar do nome similar, difere bastante da Determinação Social do Processo Saúde-Doença (DSPSD), aquele que iniciei citando. Para os Determinantes Sociais em Saúde, a saúde é influenciada por fatores biológicos, comportamentais e sociais. Além disso, dentro desta visão o paciente tem grande poder de decisão. Por exemplo, nessa perspectiva, um fumante precisa parar de fumar ou ao menos reduzir seu consumo de nicotina, pois ele, assim, se torna grupo de risco para várias doenças, inclusive COVID-19. Apesar dessa correlação ser inegável, é um erro enxergar o fumo em excesso (qualquer droga em excesso, inclusive remédios) como uma causa-origem das comorbidades, quando, na verdade, é uma consequência da forma com que a sociedade capitalista se organiza. Pode parecer uma comparação extrema, dizer que o vício em nicotina advém do capitalismo, mas, de todo modo, não foi isso que eu disse. Abaixo explico.

O problema está no método de análise, que permite uma visão rasa e fragmentada. Ao enxergar o processo de adoecimento de maneira fragmentada, nossa conduta será limitada, para não dizer inútil, na maioria dos casos. Isto porque o “parar de fumar” não faz sentido se não mexermos no “porquê de fumar”. Apesar de o fumo anteceder bastante o capitalismo, seu uso excessivo como uma espécie de ansiolítico é algo atual. O trabalhador recorre ao fumo por suas propriedades ansiolíticas, embora também tenha potencial de gatilho para crises de ansiedade e pânico em algumas pessoas e doses. Assim, tenta abstrair da realidade caótica que chama de vida. Não se aposentar, desemprego massivo, condições de trabalho precárias, pandemia, incerteza, medo de ficar doente e não ter atendimento, medo de não conseguir ser um bom pai ou uma boa mãe, dívidas, risco de perder a casa, falta de teto, medo da polícia, medo de morrer de fome, medo de morrer de frio, medo de morrer. O fumo, e outras drogas, lícitas ou não, são para muitos trabalhadores uma muleta para aguentar essa realidade. Ao enxergar que é “só” parar ou reduzir, como algo centrado na vontade individual, não se enxerga as causas basais e centra o cuidado e a culpa no indivíduo, quando, na verdade, é um problema estrutural e coletivo.

Um outro modo de explicitar isso é pensando no acesso à saúde, no seu mais amplo conceito. Neste ponto (e não somente nele), irei me utilizar de uma base extraída do artigo “Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde”, de Guilherme Cavalcante e Marcelo Souza e Silva, um dos melhores trabalhos para introduzir a DSPSD.

O que é saúde para um ser vivo qualquer? Para um ser vivo qualquer estar saudável é, basicamente, ter condições de conseguir realizar “o que a natureza lhes apresenta como potencial de realização”. Para uma árvore, é sua capacidade de extrair nutrientes do solo, metabolizá-los, crescer, produzir flores, sementes e outras formas de reprodução. Para um animal, no geral, pode ser a possibilidade de se alimentar adequadamente e ter expectativa de vida similar à média de sua espécie, por exemplo. A realização deste potencial depende fortemente à disponibilidade de recursos no ambiente em que o ser está inserido. Porém, para o ser humano é o mesmo? Sim e não. Para nós, objetivamente estar saudável pode ser considerado isso, porém, as condições para que isto seja possível são produzidas socialmente de acordo com o modo de produção vigente e época histórica.

A potencialidade de realização do gênero humano está diretamente ligada a isso. Ademais, há alguns pontos que explicam essa diferença do ser humano, dos quais explicarei dois, por conta deste ser apenas um apanhado geral.

Um indivíduo sozinho numa ilha não consegue produzir a realidade em que vivemos, pois esta é fruto de uma divisão social do trabalho, em que enquanto um trabalha para construir moradia, outro trabalha para ensinar crianças a ler. É como numa escola: há vários trabalhadores, cada um com uma função; enquanto um ensina, outro limpa a escola, outro faz comida. Sem uma escola limpa, sem comida, o professor não tem como trabalhar bem e os alunos não aprendem bem; ou seja, neste micro-ambiente, uma alegoria para o macro, cada parte da divisão do trabalho tem uma função que é essencial para a outra existir, logo não há uma mais importante. No mundo real, o raciocínio é similar: todos os trabalhadores que laboram para a construção desta realidade são responsáveis e deveriam ter direito a ela, porém, não é isso que acontece.

A partir daí, chega-se ao segundo ponto: a distribuição de recursos limita a potencialidade humana, ou seja, sua saúde, para a maioria da humanidade, os trabalhadores. Enquanto esta maioria trabalha e se desgasta, uma minoria acumula capital de milhões, bilhões e, mais recentemente, trilhão. Apesar dos trabalhadores produzirem ativamente uma gama de conhecimento, técnicas e tecnologias que garantem esta realidade possível, como medicamentos, moradia, livros, ciência, saneamento, esses mesmos trabalhadores não a acessam plenamente, mesmo aqueles “bem remunerados”. Por outro lado, os bilionários da burguesia nacional e internacional acessam imensamente mais tudo isto, mesmo sem trabalhar, e, caso queiram, têm capacidade de produzir mais avanços que respondam às suas vontades e necessidades. Este acesso possibilita uma modificação bem mais fácil do adoecimento e morte, pois torna esta classe capaz de morar em locais com condições sanitárias adequadas, se vacinarem, se alimentarem bem, fazerem terapia, se alimentarem bem, ter acesso à educação, à arte, à cultura e à cidade, não ter preocupações e desgastes sobre possibilidade de despejo por dívidas. Iso para dizer o mínimo, pois isto é o basal, seus luxos obviamente vão além. Porém, este “básico”, te lembra algo? Exato, bem alinhado ao Conceito Ampliado de Saúde, elaborado na 8ª Conferência Nacional de Saúde.

Por fim, supera-se a ideia de uma simples e aleatória má distribuição de renda, pois, na verdade, é sistêmico: o capitalismo se estrutura a partir da super exploração dos trabalhadores, especialmente de grupos étnicos socialmente minoritários, mulheres e população LGBTIA+. Afinal, ao perceber que a péssima distribuição de renda afeta diretamente a saúde humana, muito argumenta-se como se apenas uma distribuição mais justa de renda resolvesse o problema e, apesar desta visão pautada nos DSS contemple minimamente a perspectiva da DSPSD, ignora questões que são sobredeterminadas. Ao pensar o Conceito Ampliado de Saúde, percebe-se que quando se enumera as diversas dimensões de saúde, elas re relacionam como um produto social e histórico, ou seja, não é descolado da realidade que uma pessoa que more em favela tenha mais chance de tuberculose e mesmo assim tenha piores condições de acesso à assistência em saúde e a uma alimentação adequada. O acúmulo de capital e a super exploração de uma classe sobre a outra não ocorre de maneira aleatória ou por coincidência e os interesses de classes antagônicas não são conciliáveis. Logo, é muita inocência pensar que apenas por meio de políticas públicas ou bondade da burguesia, feitas pelo e nos limites do Estado burguês, se resolverão nossas demandas.

A partir da super exploração dos trabalhadores, agravada pelo avanço do neoliberalismo, é fácil responder: quem tem mais saúde, a travesti que precisa se prostituir mesmo no meio da pandemia para não morrer de fome ou o dono de uma multinacional? Ambos os lados, burgueses e proletários, têm desgaste natural por idade, porém, graças à inserção de cada um no mercado de trabalho e de consumo, sofrem desgastes laborais e extra-laborais completamente desproporcionais. Apesar de ambos desgastados, o burguês tem muito menos desgaste e muito mais possibilidades de atenuar este desgaste; já o trabalhador, não. Saúde, então, não é uma abstração individual, mas um produto coletivo da organização social vigente em determinado momento histórico e lugar. Logo, a tarefa dos profissionais de saúde é impossível: com medidas individuais e pontuais pretende-se salvar vidas, quando, na verdade, a saúde que pode ser alcançada com intervenções deste porte é apenas a ponta da geleira. Para entender melhor este ponto, recomendo meu texto “O papel do médico na sociedade de classes”. Para finalizar este ponto, abaixo deixo um vídeo que pode demonstrar mais o conceito explicado e introduz bem o próximo tópico.

Uma (ou milhares de) morte anunciada

A partir daqui, pode-se adentrar no tema da pandemia. Ou sindemia? Recentemente, um comentário de Richard Horton publicado no The Lancet problematizou a abordagem hegemônica frente à pandemia de COVID-19, pois, segundo o autor, esta crise sanitária é bem maior do que aparenta, por incrível que pareça. Sindemia é um conceito quando há interação entre duas epidemias de modo que o efeito negativo de ambas juntas é maior do que considerando o saldo somado de ambas separadamente. É algo que parece abstrato, mas fica mais explícito quando se compara toda a introdução desse texto. Eu diria mais: vivemos uma sindemia constante bem antes da pandemia iniciar. Simultaneamente, temos uma epidemia de fome fome, miséria, HIV/AIDS, obesidade, hipertensão, diabetes, entre outros. Todas estas situações, produtos de uma sociedade adoecedora, se agravam entre si e são mais prevalentes e impactantes em trabalhadores de estratos sociais mais baixos, especialmente em países de capitalismo dependente, como o Brasil. Pode parecer novo, principalmente para quem baseia suas condutas e análises em saúde em teóricos europeus e estadunidenses, mas vários teóricos latinos, como a grande Asa Cristina Laurell, já apontavam para isso há décadas.

A pandemia de COVID-19 não originou nenhuma crise, apenas interagiu e piorou as outras já cotidianas. Constantemente, principalmente pelo caos fomentado pela pandemia, parece-nos que antes da pandemia estava tudo bem, que não se morria 1 trabalhador a cada 3 horas e 40 minutos por acidentes de trabalho, não estivessem passando fome mais de 5 milhões de brasileiros em 2019, não tivessem morrido 135.200 pessoas no Brasil em 2019 por diabetes, não tivessem morrido 338 pessoas por dia no Brasil em 2018 por hipertensão, entre outros. A situação brasileira e mundial, especialmente no sul global, faz risível a postura de buscar um estado de bem estar social pelos países centrais do capitalismo, pois aqui nunca tivemos um estado de mal estar social, que nos desconforta e que faz o Estado se articular visando um estado de bem estar social via políticas públicas. Um parênteses necessário neste ponto é que o Estado nos países centrais europeus apenas se articularam desta maneira por pressão da URSS em combinação essencial com os movimentos sociais classistas, que exigiam isto. Já aqui, e não somente mas de maneira mais explícita, temos um Estado gestor da barbárie, que, em meio a sanções econômicas atuais e potenciais, e uma burguesia subserviente à burguesia dos países centrais e mantenedora da nossa dependência do capital internacional, decide por deixar o campo livre para os empresários, banqueiros e latifundiários fazerem o que for mais lucrativo, em detrimento da nossa saúde.

Dentro da conjuntura latina, as mortes por COVID-19 têm um sentido político ainda maior, pois são países que são afetados fortemente pelos agravos das crises do capital, sejam elas puramente financeiras ou, como nesse caso, com motivação sanitária. Dentro de nosso continente, temos de países com sanções econômicas pesadas (Venezuela) a países com intervenção direta dos EUA (Chile), mas, no geral, o perfil é o mesmo: uma elite descendente de europeus e escravocratas gerem o Estado e agem, por meio dele, violentamente contra a classe trabalhadora. Os povos originários e seus descendentes diretos têm pouco ou nenhum acesso ao poder político; quanto acessam, têm sua participação limitada, então dificilmente as demandas da classe trabalhadora, especialmente dos grupos historicamente oprimidos, serão atendidas pelo Estado burguês. A balança comercial de nossos companheiros latinos não difere muito da nossa, tendo basicamente países focados em tentar agradar o tempo todo os interesses dos EUA e da Europa, além de termos economias baseada em commodities focada em exportação, ou seja, uma produção que expõe muito nossa economia ao risco do mercado internacional. Em momentos de crises, esta conjuntura aperta ainda mais e se culpa a crise, quando na verdade o grau de afetação poderia ser bastante reduzido caso nosso continente fosse organizado para lidar com isso, já que crises cíclicas sempre virão, e não para ficar sob dependência dos interesses e da dinâmica de outros países. Esta mudança de organização não é posta como algo fácil ou simples, porém, não poderá ser aprofundada neste texto.

No contexto de pandemia, a crise está sendo num nível que há muito tempo não víamos e, infelizmente para a maioria dos países do mundo, mostra bem o quanto a determinação social do processo saúde-doença, a perspectiva que levei alguns parágrafos para descrever, é real. Em países geridos por governos socialistas, como Vietnã e Cuba, o número de óbitos (e até de casos, no caso do Vietnã) foi extremamente baixo em comparação com países de capitalismo dependente (como Brasil) ou até mesmo países de capitalismo central (Itália, EUA e outros). Mesmo na China, o primeiro epicentro da pandemia, o número de casos por dia atualmente está controlado e baixo, com praticamente nenhuma morte nos últimos dias. Isto seria uma coincidência?

Ao analisar as medidas na crise feitas pro cada país, o que cada país priorizou, fica evidente que não. Não há porque aprofundar as medidas de cada país, pois, com variações, os países socialistas que lidaram bem fizeram o seguinte: articulação com as associações e movimentos de bairro, divulgação científica por vários meios de comunicação, estímulo para produção independente de testes e EPI nacionalmente, fomentaram condições materiais para que os trabalhadores pudessem cumprir a quarentena sem morrer de fome, testagem massiva, estímulo aos pesquisadores nacionais para estudar prevenção e tratamento, uso de maquinaria de indústrias privadas no território para produção de subsídio para gestão da crise, suspensão das aulas presenciais (ou de todas as formas), políticas públicas para não encarecer alimentos básicos e também não falir agricultores, entre outros.

Se depender do agronegócio, morreremos de fome

Para termos de didática, faz-se necessária uma comparação pelo menos. Como explicado no Conceito Ampliado de Saúde e também na DSPSD, acesso a alimentação adequada é parte essencial para ter saúde. Porém, se alguém não tem isto, não é culpa deste indivíduo e a pandemia deixa isto evidente. No Brasil, há uma classe trabalhadora precarizada e com muitos informais e desempregados, enquanto há uma classe burguesa que, há séculos, acumula capital com nosso suor e sangue. A prioridade do Estado, alinhado à burguesia, é possibilitar o máximo de desmobilização dos trabalhadores e, assim, o maior lucro possível em cada conjuntura para a elite. Assim, não importa se estamos em pandemia ou não, a situação brasileira é de extremo desgaste para nosso povo, que ou trabalha, ou passa fome. Recebe-se o salário mínimo, que é menor do que de fato o mínimo para ter saúde e que minimamente garante a sobrevivência do trabalhador e de sua família, porém, o mais importante: gerar uma necessidade, pois o proletário só tem como escolha a venda barata de sua força de trabalho se não quiser morrer de fome, isso quando tem.

Antes de voltar a falar do Brasil, abre-se um parênteses para explicar, de maneira resumida, a ação do Vietnã sobre alimentação e para além dele. Este cuidado com o setor alimentar vem muito antes da pandemia, pois o país prioriza sua soberania, inclusive a alimentar, com toda uma organização para fixar os preços de alguns itens essenciais para a vida do trabalhador, como grãos e gasolina. Assim, independente da inflação (e das sanções econômicas estadunidenses) o país será menos afetado na mesa e, assim, se garante uma parte importante da saúde: o direito à alimentação adequada. Isso por si só já reduziria bastante o impacto possível da pandemia em relação a países como o Brasil, que permitem que a dinâmica do mercado dite o preço e a qualidade dos alimentos disponíveis para o trabalhador.

Na pandemia, o Vietnã teve alguns pontos importantes que merecem destaque no que tange a alimentação como forma de promover saúde. A primeira, claro, foi fixar os preços dos itens protegidos, o que inclui o arroz, um grão basal da dieta vietnamita. Com isso, mesmo que a crise acentue os custos de produção e a dificuldade de importação e exportação, o trabalhador pode comprar seu alimento. Porém, foram mais além. No Ocidente, viralizaram imagens e notícias sobre as aglomerações nos supermercados, principalmente para comprar EPI, álcool em gel e papel higiênico, mas no Oriente também ocorreu isso; no caso do Vietnã, para comprar comida. A conduta do governo foi uma das melhores. Utilizando-se do exército e outros serviços públicos, o governo decidiu entregar comida de graça para aqueles que permanecerem em casa. Quem pensaria em sair de casa, sabendo que, se permanecesse, receberia sua comida gratuitamente?

Além disso, caso alguém no Vietnã tenha de fato diagnóstico positivo para COVID-19, todo o tratamento é coberto pelo Estado, com direito a uma ajuda de custo para que não seja tão prejudicado pelos dias sem trabalhar. O acesso à alimentação e a ajuda de custo combinados com a gratuidade de testes (massivos) e de tratamento faz com que os trabalhadores adiram à quarentena, se testem e façam o tratamento adequadamente. Por fim, mas não menos importante, uma das medidas que mais se destaca em relação à visão de saúde brasileira: além de os profissionais de saúde conversarem muito com os internados e não somente medicar, fornecem para eles ao menos uma vez por dia sua comida favorita, pois veem nisso uma forma de aumentar a felicidade, o conforto e a esperança dos pacientes, aspectos diretamente ligados à melhora clínica e à promoção de saúde.

Porém, nem todos os países são assim. Aqui no Brasil, o segundo maior produtor de soja no mundo e maior produtor de arroz fora da Ásia, encaramos na pandemia um aumento astronômico do preço de ambos os alimentos e seus derivados (óleo de soja, por exemplo), tendo, inclusive, racionamento para compra destes itens em alguns municípios, mesmo que sejam alimentos sabidamente basais na dieta brasileira. Se produzimos tantas toneladas de grãos, como feijão, arroz e soja, porque cada dia mais de nós passam fome? A lógica produtivista não contempla nossas necessidades, pois, como o próprio nome já explicita, é a lógica do agronegócio. Por ser um negócio, apesar de a grande mídia pintar os latifundiários de ouro como responsáveis por colocar a comida na mesa do trabalhador, é essencial perceber que não. Para eles, tanto faz quem compra seus produtos, o mais importante é que se venda com o máximo de lucro. De maneira resumida, o governo brasileiro, não inocentemente, historicamente diminuiu sua possibilidade de intervenção no setor agrícola industrial, deixando-o nas mãos manchadas de sangue da burguesia.

Nos gráficos a seguir, a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) explicita a diminuição dos estoques estatais de grãos (arroz, feijão e milho respectivamente), que poderiam ser utilizados, por exemplo, para evitar inflação nos preços de alimentos da base alimentar brasileira. Apesar dessa diminuição dos estoques públicos, a produção de grãos, principalmente soja e milho, só aumenta, o que é demonstrado no gráfico do IBGE, também abaixo. Além disso, uma outra demonstração do objetivo da produção agrícola industrial é a exportação do milho, registrada no último gráfico da sequência. Embora a produção industrial esteja aumentando tão fortemente, a maior parte do produzido vai para o mercado externo e especulativo. Nos tornamos uma grande fazenda de produção alimentar para o mercado estrangeiro, alimentando seus trabalhadores e animais, enquanto os nossos morrem de fome.

Brasil: estoques públicos de arroz em toneladas (1995–2019), por CONAB

Brasil: estoques públicos de feijão em toneladas (1995–2019), por CONAB

Brasil: estoques públicos de milho em toneladas (1995–2019), por CONAB

Produção de arroz, feijão e milho em toneladas (1995–2018), por PAM/IBGE

Exportação de milho em milhões de toneladas (2009–2019), por Comextat/MDIC

Na pandemia, este setor tornou-se ainda mais prejudicial à nossa sobrevivência. Com a alta do dólar e os países do exterior com dificuldades produtivas, a lucratividade, para o agronegócio, é bem maior na exportação, mesmo que isso signifique diminuir ainda mais a oferta de alimentos em território nacional. Ao incentivar a dependência da produção latifundiária para nossa possibilidade de se alimentar, o Estado burguês assinou e assina nosso destino à fome e à miséria. Não é como se controle de preços não fosse possível via estoques públicos de grãos porque, por um acaso do destino, não temos estoques públicos; não temos estoques públicos pois este é o projeto de governo que nos mata sem hesitar. Assim, enquanto a burguesia pode facilmente manter seus luxos alimentares independente da conjuntura (até por lucrarem mais nesses momentos), nossa classe precisa decidir se compra o arroz ou o feijão, quando pode.

Nesse sentido, nosso país, que até hoje não tem de fato um combativo Plano Central de Controle da Pandemia, faz com que os trabalhadores tenham maior risco de morrer de COVID-19 e outras causas que já existiam antes da crise sanitária atual. Com 40 milhões de desempregados e com mais de 50% dos trabalhadores empregados informalmente em 11 estados, o Brasil não garantiu possibilidade real de ficar em casa, uma das medidas basais para controle de uma pandemia deste tipo. Pela divisão étnico-racial do trabalho, que configura o processo produtivo brasileiro, postos precarizados de trabalho e sem possibilidade de trabalho doméstico são historicamente ocupados majoritariamente por pessoas negras e periféricas, e são nestes lugares sociais que concentram-se os óbitos, mesmo que, pelo perfil importado inicial da pandemia, boa parte dos casos se concentrassem no começo nos trabalhadores mais remunerados, que trouxeram o vírus da Europa e da Ásia. Dito isso, a alimentação tem tudo a ver com isso.

Para sobreviver, os trabalhadores brasileiros precisam obrigatoriamente vender sua força de trabalho todos os dias, afim de receber uma pequena parcela do que eles de fato produziram. Caso não façam isso, não terão como comprar comida e alimentar a si e sua família. Ao precisar ficar em casa, os trabalhadores têm duas possibilidades. Alguns podem trabalhar em casa, geralmente os melhor remunerados, e, com isso, se protegem mais da pandemia. Outros não têm essa opção, então se arriscam, muitos sem EPI garantido pelas empresas, nas ruas. Apesar de estarem trabalhando e recebendo por seu trabalho, estes proletários que todos os dias lotam metrôs, trens e ônibus não o fazem por querer, mas por necessidade única: se alimentar. E, ainda assim, alguns mal conseguem, pois o aumento dos preços afeta diretamente sua dieta.

Como dito, ambos os trabalhadores seguem trabalhando, tanto os com melhores condições de trabalho, quanto os precarizados. Por isso, ambos têm desgastes pela dinâmica trabalhista, pois, apesar de ambos terem condições de vida distintas, são unidos pela classe: caso fiquem doentes, terão que deixar de trabalhar, poderão perder seus empregos e terão suas vidas prejudicadas. Porém, é óbvio que trabalhadores precarizados enfrentarão maior exposição e, considerando que são majoritariamente pessoas com comorbidades e com pouco acesso ao serviço de saúde, terão maiores chances de agravar e falecer. Isto não é uma coincidência.

Por isso, é preciso enfatizar uma última vez a importância de analisar a totalidade ao invés de fragmentar o estudo da saúde. Caso se analise pela perspectiva dos DSS, nota-se que a população negra e periférica é aquela mais afetada pela pandemia e que aqueles que não puderam ficar em casa foram mais infectados. Também seria possível notar que pessoas com renda mais baixa têm mais riscos de não ter leitos disponíveis ou sequer testes, tendo tratamento tardio. Apesar da possibilidade de ser possível, ainda com DSS, criticar a má distribuição de renda e cruzar alguns dados desses, a perspectiva é bastante limitada por não considerar de fato o processo histórico que levou às condições materiais atuais. Para além de notar, como uma foto estática, que há distribuição de renda e que isto causa adoecimento na pandemia, é preciso perceber a saúde em movimento: a má distribuição de renda não é uma causa ensimesmada, mas sim uma consequência dos processos históricos de acumulação de capital pelas burguesias nacional e internacional. Esta consequência gera outras consequências, que não são isoladas e não podem ser analisadas separadamente.

Da mesma maneira, o acesso a uma alimentação adequada, que perpassa diversas dimensões, não é algo naturalmente como é. A lógica produtivista brasileira pelo agronegócio tem como principal marca proteger a todo custo a venda de seus estoques e seu lucro para quem pagar melhor; o que sobrar vai para o mercado nacional. Outros países, como o Vietnã, já mostraram que é possível mudar esta lógica e pôr as vidas dos trabalhadores acima dos lucros. Enquanto isso, no Brasil os trabalhadores para comer enfrentam riscos e mais riscos, desde a dinâmica de trabalho precarizada e informal até a própria pandemia. Tudo por um grande motivo: tentar ter o que comer amanhã.

Esta realidade na outra classe é bem diferente, pois latifundiários, banqueiros e grandes empresários, caso fiquem doentes podem arcar com todas as despesas basais e quaisquer outras que sintam necessidade. Na verdade, eles são os principais responsáveis pelo caos que convivemos antes, durante e depois desta pandemia. Além disso, não têm o receio de perder tudo, já que com a crise cada dia mais enriquecem mais às custas de nossas saúde e vida. Enquanto do nosso lado, a precarização e o desemprego só aumentam, com a pandemia, os bilionários ficaram cerca de 30% mais ricos, enquanto os trabalhadores cada vez mais desempregados, informais e precarizados. E isto é pura determinação social do processo saúde-doença.

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