Como era a saúde na RDA?

Fer
Saúde Camarada
Published in
10 min readNov 7, 2022

Essa sequência de textos (e vídeos, no YouTube) retratará um panorama da Saúde construída nas experiências socialistas ao longo da história. Antes de adentrar na Saúde em si, vou sempre abordar um pouco do contexto em que aquela experiência aconteceu, para que fique mais justo. Não sou estudante ou professor de história, então peço perdão caso em alguma das produções acabe cometendo algum equívoco de análise em questões que extrapolem meu conhecimento básico. Em todos, deixarei referências de pessoas que realmente estudam o tema para quem quiser aprofundar. Vamos começar!

A República Democrática Alemã

A RDA foi uma experiência que infelizmente durou pouco tempo, sendo construída após a Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha perdeu a guerra e foi dividida entre 4 Zonas de Ocupação (ZO). Cada ZO era de responsabilidade de uma das potências aliadas, os vitoriosos na Guerra. Isto foi feito, supostamente, para desnazificar a região e seria feita em 4 eixos:

  • Desnazificar, retirando todos os nazistas de posições relevantes e punir criminosos de Guerra;
  • Desmilitarizar, desarmando e desmantelando a indústria bélica alemã;
  • Descentralizar, destruindo a concentração do poder econômico nas empresas monopolistas;
  • Democratizar, reestruturando a vida pública dos alemães.

Porém, este acordo só foi realizado firmemente na ZO Soviética, enquanto nas ZOs de potências capitalistas houve o cumprimento parcial. As potências ocidentais viam os nazistas como entededores da questão alemã, então não houve punição severa para muitos. Pelo contrário, muitos ex nazistas foram absorvidos pela máquina pública em posições relevantes. Além disso, empresários que contribuíram para o avanço de Hitler não foram expropriados no lado capitalista. Enquanto isso, no lado Soviético, a desnazificação ocorreu com seriedade, algo esperado já que a URSS foi a potência mais empenhada na vitória da Segunda Guerra e já que os camaradas tinham noção de que o fascismo nada mais era do que a expressão mais intensa do liberalismo. Era justo e estratégico desnazificar de fato a Alemanha.

A divisão em dois estados, contrariando o desejo popular de uma Unificação Democrática da Alemanha, ocorreu por conta das potências capitalistas, que uniram esforços para formar o governo fantoche da Alemanha Ocidental (RFA). O povo alemão, especialmente articulado a partir da ZO Soviética (mas também tendo representantes das outras ZOs), se organizou intensamente como forma de resistir a esta manobra suja e imperialista, porém, foram perseguidos e, por fim, mesmo com esta resistência, houve a divisão.

Ao contrário do que se é disseminado no senso comum, a URSS não exportou o socialismo soviético na sua ZO. Os comunistas alemães receberam da URSS o poder de construção de um Estado Democrático e Antifascista. Ainda que os comunistas recebessem essa missão, por exemplo, os primeiros ministros do Governo Provisório da RDA não foram apenas camaradas: seu primeiro presidente foi Wilhelm Pieck, presidente do Partido Socialista Unificado da Alemanha e conhecido militante operário. Já os Ministros foram 14: 6 membros do Partido Socialista Unificado da Alemanha, 3 membros da União Democrática Cristã, 2 membros do Partido Liberal Democrata, 1 do Partido Democrático Camponês, 1 do Partido Nacional Democrata e 1 sem partido.

Esta organização foi feita em meio aos ataques imperialistas aos desejos do povo alemão, pois o retirado na Conferência de Potsdam e respeitado apenas pela URSS era apenas para manejo provisório. Posteriormente, o povo alemão deveria se responsabilizar por si e novamente se inserir na política nacional e internacional como pátria pacífica. Graças aos imperialistas, em nome de seus lucros e da Guerra Fria, não foi isso que ocorreu.

Vou deixar aqui os artigos onde vocês poderão aprofundar o estudo da história desse período alemão, de ZO à fundação da RDA, pois este não é nosso objetivo.

A Saúde na RDA: conceitos

Não iremos trabalhar na análise da Saúde de maneira seca. Sou marxista e acredito que muitos que vocês também são. Vamos trabalhar então a partir de uma análise aprofundada de Saúde, mais do que um serviço ou que um aspecto biológico, mas como uma expressão dinâmica, histórica e coletiva do impacto de um modo de produção sob uma comunidade.

Sendo assim, importante enfatizar alguns aspectos da breve sociedade socialista alemã. Os camaradas da RDA tinham como pressuposto de que o pleno emprego é um direito humano e a melhor política social, sendo o trabalho uma parte indispensável de sua dinâmica social. Porém, o trabalho socialista, bem diferente do lado de cá, tem como origem a demanda social coletiva (e não do Capital) e tem como fim a melhoria social coletiva (e não o lucro do burguês).

De acordo com a própria Constituição da RDA:

“Todo o cidadão da República Democrática Alemã tem direito a trabalhar. Ele tem direito a um emprego e a escolhê-lo livremente de acordo com as necessidades da sociedade e as suas qualificações pessoais.”

O empenho no meio sindical era intenso, demonstrado pelos incríveis 98% de trabalhadores da RDA que eram membros da Federação Sindical Livre Alemã. Graças a este esforço coletivo, acordos e melhorias foram conquistadas ao longo das décadas de existência desta experiência. Exemplos disso são garantias de cuidados de saúde e apoio social, definições de condições de trabalho, estímulo para desenvolvimento intelectual, cultural e desportivo, formação e educação continuada etc.

A Educação e a Saúde eram gratuitas, além de haver muita disponibilidade acessível de cultura, lazer, esporte e recreação. Tudo isso é um ótimo indicativo da qualidade de vida vivenciada nesta experiência. E há mais.

Quando se fala de direitos das mulheres, 92% trabalhava e quase 50% estava na Universidade. Isso é mais avançado do que muitos países da atualidade, mesmo tendo ocorrido no século passado. Havia medidas sociopolíticas para conciliação de família e trabalho, mesmo que de forma heteronormativa, como licensa maternidade, um dia de folga para tratar das questões de casa, assistência estatal ao parto, a assistência integral à criança e à educação.

E por falar em crianças, na RDA eram acessíveis ou gratuitas: jardins de infância, assistência pós escolas, refeições nas escolas, acampamentos de verão e atividades esportivas.

Agora… Vamos à Saúde.

Saúde socialista alemã

Saúde era um direito constitucional isto era firmemente levado a sério, ao contrário de em países capitalistas que têm o mesmo na Constituição. Por isso, todo o cuidado de Saúde era gratuito, inclusive Oftalmologia e Odontologia. Todos os medicamentos com receita também eram gratuitos e os serviços de Saúde tinham foco na APS, com abordagem multidisciplinar e combinação de recursos preventivos, diagnósticos e terapêuticos.

Em termos de estrutura, a Saúde socialista alemã era baseada principalmente em Policlínicas e Pronto Atendimentos (PAs), além de Hospitais maiores, que existiam em menor número do que os anteriores.

As Policlínicas alemãs tinham no mínimo 6 Departamentos de Saúde Especializados, Unidade de Radiografia, Laboratórios e Farmácia. Geralmente, contavam com 20 a 40 médicos e até 200 outros trabalhadores, como enfermeiras, técnicos de laboratório e pessoal administrativo.

Os PAs, serviços de menor porte e para atendimentos mais agudos, eram igualmente multidisciplinares e contavam com clínicos gerais e especialistas.

Evitava-se a burocracia de ter que buscar um Hospital de tratamentos complexos para tudo, solucionando a maior parte das demandas de saúde com atendimento preventivo e facilitado em Policlínicas e PAs.

Para os trabalhadores do hospital, o sistema de turnos tinha possibilidade de ser de 8h e não de 12h, pela grande quantidade de profissionais contratados para alternar.

A saúde nas áreas rurais era territorial. As vilas eram vinculadas à Policlínica da cidade mais próxima e tinham uma enfermeira responsável pela população daquele território. Ela tinha autonomia para diagnósticos e tratamentos rotineiros e, caso o paciente mesmo assim precisasse de atendimento médico, ela contatava a Policlínica, que enviaria um. A formação desta enfermeira era diferenciada das enfermeiras comuns, era abrangente e continuada.

Um parênteses importante é que praticamente todas estas profissionais perderam o emprego após a unificação capitalista alemã, pois a Alemanha Ocidental era medicocentrada, o que fazia com que estas enfermeiras tivessem restrições enormes de campo de trabalho. Há até hoje, e era ainda pior nos primeiros anos de reunificação, uma falta de médicos nos interiores alemães, pois estes não querem ir para lá, algo que não era vivenciado desta maneira nos anos socialistas.

Uma vez por semana um pediatra da Policlínica vinha às creches locais para checar a saúde das crianças e vaciná-las. As creches tinham vínculo permanente com alguma policlínica, o que ajudava na prevenção de doenças e na detecção de maus tratos.

As casas senhoriais desapropriadas da burguesia eram utilizadas como casas de reabilitação e repouso para aqueles com doenças crônicas ou afecções que, apesar de não necessitarem de hospitalização, não pudessem ser tratadas em casa.

Após a unificação, quase todas as policlínicas orientais foram fechadas e a saúde transicionou para o modelo de consultórios, bastante medicocentrado, fragmentado, individualista e pago, por quem podia, pelo seguro nacional que havia na RFA.

A Cultura na Alemanha Socialista

Saúde, especialmente para marxistas, não pode ser vista como um aspecto deslocado da vida cotidiana dos trabalhadores. É no cotidiano e em ambientes distantes dos Serviços de Saúde que se constrói a Saúde de um povo. Por isso, agora falaremos de arte e depois de esporte na Alemanha Oriental, como forma de abrir um parenteses breve sobre a vivência comum de seu povo.

O povo nesta época participava ativamente da produção cultural do país e tinha mais acesso à cultura do que em boa parte dos países capitalistas. Por exemplo, havia lá mais teatros per capita e mais orquestras em relação ao tamanho da população do que em qualquer outro país do mundo.

O povo alemão da RDA tinha 3x mais acesso à música de orquestra ao vivo do que os trabalhadores da RFA, 7,5x mais do que os dos EUA, 30x mais do que do Reino Unido. Afinal, a RDA contava com 90 orquestras profissionais e gastava mais do que o dobro financiando cultura do que a RFA, mesmo com suas limitações de recursos.

Havia incentivo junto às escolas para que os estudantes fossem ao teatro periodicamente, algo que não era difícil já que toda cidade com pelo menos 30.000 habitantes tinha seu teatro e seu cinema.

Mais expressões do povo na arte se via nas Casas de Cultura, que eram prédios com função de produção comunitária de oficinas, festas, comemorações, apresentações de peças e de músicas locais, de folclore etc. O Estado, as autoridades locais e as empresas também apoiavam grupos culturais de trabalhadores ao mesmo tempo em que foi fundada a Associação Cultural, uma organização nacional alemã com objetivo de construir uma cultura humanista e antifascista.

Esportes:

A promoção do Esporte também foi documentada na Constituição da RDA e todos os trabalhadores tinham direito à licença para prática esportiva caso não tivessem como praticar fora do horário de trabalho.

Walter Ulbrivht lançou um famoso slogan em 1959:

“Todos em todos os lugares — pratiquem esporte uma vez por semana”.

Na escola, os jovens tinham de 2–3h destinadas a práticas esportivas, pois era parte do currículo e podiam praticar fora do horário da aula também. Para aqueles jovens que se destacassem mais, o governo mantinha escolas específicas voltadas para o estímulo esportivo e formação de atleta. Mesmo nas faculdades, era obrigatório por no mínimo 1 ano.

Havia 11.000 clubes de esporte amadores e, assim, era incentivada coletivamente a prática desportiva e a competição.

Queda

Essa é a primeira Experiência Socialista que abordamos nessa série de vídeos e, infelizmente, é uma das que não existe mais. Se as experiências que ainda existem são difamadas pela mídia burguesa, mesmo com a realidade sendo distinta do contado pelos capitalistas, imaginem o que fazem com experiências findadas. É tudo facilmente deturpável, afinal as gerações que nascem depois dificilmente terão como acessar facilmente um contraponto. Há um investimento robusto em destruir qualquer imagem dos comunistas. Por exemplo, após o fim da Alemanha socialista, foi-se criada a Fundação Federal para o Estudo da Ditadura Comunista na Alemanha Oriental, em 1998 pelo parlamento alemão. O objetivo desta organização é basicamente financiamento de pesquisas sobre a RDA desde que a retratem como um Estado criminoso (o nome já deixa isso explícito), e não uma experiência histórica com avanços e também contradições.

Após a reunificação, um dos maiores ataques à classe trabalhadora alemã, foi a destruição de todas as estruturas da RDA, uma forma de apagamento do legado comunista. O mesmo modo de produção capitalista que teve supostas dificuldades para desnazificar a Alemanha com seriedade, não teve nenhuma dificuldade para tentar “descomunizar” sua história, cultura e a vida de seus trabalhadores. Foi criada uma Instituição estatal para privatizar 8.500 empresas públicas que empregavam mais de 4 milhões de trabalhadores. A economista Birgit Breuel, responsável por esse processo, admitiu ao Washington Post: “podemos tentar nos explicar às pessoas, mas elas nunca nos amarão. Tudo o que fazemos é difícil para elas. Cada uma das 8.500 empresas será privatizada, reestruturada ou fechada. Em todos os casos, as pessoas perderão seus empregos”. Nesse período privatizador, 70% das mulheres alemãs ficaram desempregadas e um inquérito parlamentar em 2009 expôs uma intensa escala de corrupção e clientelismo neste processo.

Meu objetivo com estes textos e vídeos sobre a Saúde nas Experiências Socialistas definitivamente não é fingir que não houve contradições. Houve, especialmente no que tange à imaturidade do sistema recém fundado em meio à Guerra Fria, ainda mais sendo, ele próprio, intensamente afetado por ser estratégico por ambas as potências em disputa e tendo. Porém, é inegável o avanço social e político que a RDA e seus pares tiveram, nos provando que outros caminhos são possíveis, alcançáveis e superáveis.

--

--