COVID-19 não é uma pandemia, por Richard Horton (traduzido do Lancet)

Fer
Saúde Camarada
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5 min readOct 31, 2020

O texto a seguir é uma tradução literal do texto original de Richard Horton, publicado na revista The Lancet e denominado “COVID19 is not a pandemic”. Este texto, publicado em 26 de setembro de 2020, vai na contramão de muitas abordagens hegemônicas sobre a pandemia do Sars-CoV-2, o tão falado coronavírus de 2020, e apesar de não poder ser considerada uma abordagem revolucionária em si mesma, merece um destaque pela publicação ter sido feita numa das maiores revistas científicas em saúde do planeta. As notas de tradução, adicionadas em espaços em que sinto que a tradução pode perder alguma nuance do texto original, estarão no fim do texto, que será postado na íntegra como na Revista. Nos próximos dias, postarei meus comentários considerando a conjuntura da América Latina em relação a essa perspectiva e adicionando a Determinação Social do Processo Saúde-Doença, a perspectiva contra-hegemônica que de fato estudo. A partir daqui, segue o texto traduzido:

“Conforme o mundo se aproxima de 1 milhão de mortos por COVID-19, nós devemos enfrentar o fato de que nós estamos adotando uma abordagem muito rasa e limitada para lidar com o surto do novo coronavírus. Vimos a causa desta crise como uma doença infecciosa. Todas as nossas intervenções foram focadas em conter a cadeia de transmissão viral, controlando, assim, a propagação do patógeno. A “ciência” que tem guiado os governos tem sido impulsionada principalmente por epidemiologistas e especialistas em doenças infecciosas, que compreensivamente enquadram a emergência de saúde atual em termos já forjados por séculos em pragas anteriores. Porém, o que nós aprendemos até agora nos diz que a história da COVID-19 não é tão simples. Duas categorias de doenças estão interagindo entre populações específicas: infecções como síndrome aguda grave por coronavírus (SARS-CoV-2) e uma série de doenças não transmissíveis (DNT). Essas condições estão se concentrando em grupos sociais de acordo com padrões de desigualdade que são profundamente enraizados em nossas sociedades (NT1). A correlação dessas doenças em um contexto de disparidade social e econômica exacerba os efeitos adversos de cada doença separada. Por isso, COVID-19 não é uma pandemia. É uma sindemia. A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos significa que uma abordagem diferenciada é necessária se quisermos proteger a saúde de nossas comunidades.

A noção de uma sindemia foi concebida pela primeira vez por Merrill Singer, um antropólogo e médico americano, na década de 1990. Escrevendo no The Lancet em 2017, junto com Emily Mendenhall e colegas, Singer argumentou que uma abordagem sindêmica revela interações biológicas e sociais que são importantes para o prognósticos, o tratamentos e a políticas em saúde. Limitar os danos causados pelo SARS-CoV-2 exigirá muito mais atenção às DNT e à desigualdade socioeconômica do que tem sido admitida até agora. Uma sindemia não é apenas uma comorbidade. As sindemias são caracterizadas por interações biológicas e sociais entre condições e estados, interações que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa a prejudicar ou piorar seus resultados de saúde. No caso do COVID-19, atacar as DNT será um pré-requisito para uma contenção bem-sucedida. Como nosso recém-publicado “NCD Countdown 2030” mostrou, embora a mortalidade prematura por DNT esteja caindo, o ritmo da mudança é muito lento. O número total de pessoas que vivem com doenças crônicas está crescendo. Abordar a COVID-19 significa abordar a hipertensão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas e câncer. Prestar mais atenção às DNTs não é uma agenda apenas para nações mais ricas. As DNTs também são uma causa negligenciada de problemas de saúde nos países mais pobres. Em sua “Lancet Comission”, publicada na semana passada, Gene Bukhman e Ana Mocumbi descreveram uma entidade que chamaram de “Poverty NCDI”, acrescentando lesões a uma série de NCDs — condições como picadas de cobra, epilepsia, doença renal e doença falciforme. Para o bilhão de pessoas mais pobres do mundo hoje, as DNTs representam mais de um terço de sua carga de doenças. A Comissão descreveu de que maneira a disponibilidade de intervenções econômicas e econômicas durante a próxima década poderia evitar quase 5 milhões de mortes entre as pessoas mais pobres do mundo. E isso sem considerar os riscos reduzidos de morte do COVID-19.

A conseqüência mais importante de ver a COVID-19 como uma sindemia é sublinhar suas origens sociais. A vulnerabilidade dos cidadãos mais velhos; das comunidades étnicas negras, asiáticas e minoritárias; e dos trabalhadores essenciais (NT2) que são comumente mal pagos com menos proteções de bem-estar apontam para uma verdade até agora mal reconhecida — a saber, que não importa o quão eficaz seja um tratamento ou vacina protetora, a busca por uma solução puramente biomédica para COVID-19 falhará. A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas da COVID-19. Como Singer e colegas escreveram em 2017,

“uma abordagem sindêmica fornece uma orientação muito diferente para a Clínica Médica e a Saúde Coletiva, mostrando como uma abordagem integrada para entender e tratar doenças pode ser muito mais bem-sucedida do que simplesmente controlar doenças epidêmicas ou tratar pacientes individuais.”

Eu acrescentaria mais uma vantagem: nossas sociedades precisam de esperança. A crise econômica que se aproxima de nós não será resolvida com um medicamento ou uma vacina. Nada menos que um avivamento nacional é necessário. Abordar a COVID-19 como uma sindemia irá convidar a uma visão mais ampla, abrangendo educação, emprego, habitação, alimentação e meio ambiente. Ver a COVID-19 apenas como uma pandemia exclui esse prospecto mais amplo porém necessário.”

Notas do tradutor:

NT1: Neste ponto, é importante notar que o enraizamento destas desigualdades não são por acaso, como se pode perceber nos dados de morbimortalidade para grupos étnicos e sociais oprimidos em diferentes países capitalistas.

NT2: Os trabalhadores essenciais descritos aqui não são uma referência apenas aos trabalhadores da saúde, apesar deles também o serem. Esta é uma referência a todos os trabalhadores que não podem ou não puderam parar, uma determinação que ocorre segundo o modo de se organizar da sociedade: Por exemplo, em todos os países trabalhadores da saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, porteiros de hospitais, nutricionistas e outros) são essenciais na pandemia, sendo necessário que continuem seus trabalhos. Porém, no Brasil, um país de capitalismo dependente, tanto por conta do receio de ir a mercados quanto por conta da desigualdade que impera sobre estes trabalhadores, os entregadores (de aplicativo principalmente) não puderam parar, tendo inclusive sua demanda aumentada. Porém, no Vietnã, um país socialista asiático, isto não ocorreu, pois o governo, após ver as grandes aglomerações em super mercados para estocar mantimentos, se articulou para que cada morador recebesse seus mantimentos em casa, evitando, assim, a aglomeração. Por isso, trabalhadores essenciais são um termo com diferente conotação de acordo com o país, sua cultura, seu modo de produção e, por conseguinte, suas políticas públicas frente à pandemia (ou sindemia?).

Referências:

Publicado em: 26 de setembro de 2020

DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32000-6

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