O papel do médico na sociedade de classes

Fer
Saúde Camarada
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8 min readMay 29, 2020

Ao questionar qualquer estudante de Medicina, principalmente calouros, sobre o motivo para escolha do curso ou, em outras palavras, qual a função/importância do médico/do ser médico para ele, logo vêm as respostas românticas: curar, salvar e tantas outras. É lógico que um médico tem capacidade, não apenas por ser médico, de atuar intensamente acerca da saúde dos pacientes que atende. Porém, não somos formados para isso, nosso aprendizado não é planejado para isso, não exatamente. Somos ensinados, principalmente nos estágios do internato, a acreditar que sabemos mais sobre o corpo do outro do que ele próprio, que o mais importante é quantas condutas conseguimos aprender e executar, que o conceito de saúde e de doença aceitos atualmente são inquestionáveis, bem como toda a forma com que imaginamos a Medicina. Assim, toda a escuta ativa, determinação social do processo saúde e doença e educação em saúde do começo do curso se esvaem cada vez mais. Há inclusive estudos que demonstram o quanto a consciência política geralmente estimulada no início do curso é substituída por tecnicismo ao longo dele graças à estrutura social, a forma que o currículo se organiza e também o currículo oculto que nos influencia e limita. Voltando à minha pergunta inicial, mais importante do que nos perguntarmos para que serve o médico é nos perguntarmos para quem serve o médico? E se pretendemos servir a este interesse também.

Para isso, vou apresentar um curto caso clínico, que mesmo quem não for da área vai entender.

Paciente, 38 anos, sexo masculino, cobrador de ônibus, morador do bairro do Pinheiro (Maceió — AL), etilista (alcoolista crônico) e tabagista (“viciado” em cigarro), sem histórico de Hipertensão Arterial Sistêmica, chega no Pronto Socorro com crise hipertensiva aferindo 220x150mmHg de pressão (ou, em bom português, 22 por 15). Na anamnese (entrevista), o paciente, que estava muito nervoso, afirmou irredutível que cursava com um infarto, pois sentia “uma dor em aperto no peito que irradiava para ambos os braços”. Tipicamente, os médicos notaram que o pico hipertensivo foi causado por uma crise de ansiedade e medicaram combinando nitroglicerina (para a pressão) e rivoltril (para a ansiedade). O paciente seguiu monitorado e necessitou do dobro da dose inicial para iniciar a melhora lenta. Após estabilização, foi mandado para casa.

Não percebeu nada de errado? Os profissionais de saúde na situação também não. E não é incomum. Está muito relacionado à forma que ensina-se os médicos a serem médicos, desde o currículo formal universitário até a vivência no mercado de trabalho, isto é: de forma centrada na pessoa do médico em detrimento da equipe, na produtividade e na suposta certeza de que o médico entende o que é melhor para o paciente sempre. Para além disso, há duas origens mais profundas para o erro imperceptível. Primeiro, a visão de saúde como um processo individual e apenas um pouco influenciado pelo “aspecto social”. Ao enxergarmos assim, a análise deste “aspecto” toma uma proporção menor em relação às condutas e diretrizes focadas no “aspecto biológico” e no “aspecto comportamental”, tão atreladas à prática médica como a conhecemos. Segundo, isto se dá porque o médico, como todas as outras profissões, está inserido numa organização social e tem posturas bastante influenciadas (ou até determinadas) por ela. Com essa perspectiva, o médico, mesmo os que não notam, toma decisões que mantêm a coesão social. Logo aprofundo isso.

O trabalhador na sociedade capitalista, e isto intensifica-se cada dia mais com os avanços do neoliberalismo, não tem posse dos meios de produção, portanto, vende exaustivamente sua força de trabalho em situações precárias e de subemprego muitas vezes. Isto, logicamente, não é uma escolha, pois ninguém escolheria trabalhar num serviço precário, sem condições mínimas, estressante e até com risco de vida; as pessoas trabalham assim porque é o possível para elas; é isto ou morrer de fome, em muitos casos nem isto, apenas morrer de fome. Dependendo do lugar no consumo e na produção (trabalho) ocupado pelo trabalhador, este tem acesso a mais ou menos criações humanas, como medicamentos, lazer, arte, atividades físicas, água limpa, transportes individuais, alimentação saudável, etc. Isto torna o indivíduo mais ou menos, dependendo do lugar ocupado, capaz de modificar suas causas de adoecimento e morte. Para facilitar a didática do texto, chamarei este lugar ocupado pelo indivíduo na sociedade de classes de lugar social.

É neste cenário de retrocessos, desemprego massivo e subempregos sendo a única alternativa de muitos, que nos últimos 7 anos registramos 17 mil mortes e 4,5 milhões de acidentes de trabalho no Brasil. Estes dados obviamente repousam principalmente sobre trabalhadores de categorias específicas, que têm insalubridade elevada. Porém, não necessariamente estes trabalhadores recebem a insalubridade e, mesmo que recebam, o que leva um trabalhador se sujeitar a um emprego que lhe traz riscos à vida? Riscos estes que muitas vezes não estão controlados, que não há EPIs ou um planejamento de redução de riscos. Não estamos falando do risco de um radiologista, mas sim de pedreiros de trabalham em altitudes elevadas, por exemplo. Porém, num lugar social bem diferente, até o radiologista está sujeito a um risco e vende sua força de trabalho, ou seja, também é um trabalhador explorado. Enquanto isso, o dono da rede de empresas de saúde (vulgo rede de “hospitais” privados) o que faz? Este é o ponto: aqueles que detém os meios de produção e exploram a classe trabalhadora em todos os estratos sociais têm acesso a um lugar social totalmente diferenciado, podendo modificar absurdamente mais suas causas de adoecimento e morte. Ou seja, o adoecer é uma questão de classe.

O tipo de Medicina demandada também é uma questão de classe. Em suma, trata-se do cuidado com o corpo, mas por quê? O corpo numa sociedade capitalista tem função de trabalho; porém, nem todos da mesma forma. Para um trabalhador de estratos sociais altos, vulgo “rico”, o discurso de foco na qualidade de vida cabe mais neste cuidado, pois este detém capital o bastante para acessar muitos serviços neste sentido, pode ter acesso a serviços de saúde de forma cotidiana e preventiva, e é menos exposto a situações insalubres. Porém, não há interesse na qualidade de vida de um trabalhador braçal por parte da indústria da saúde ou da do trabalho, mas sim em que ele produza até a exaustão. Este trabalhador ao se sujeitar a este trabalho que é danoso a ele, adoece, mas não tem acesso fácil a serviços de saúde que contemplem suas demandas e, quando acessa algum serviço, é apenas de forma emergencial, quando já não aguenta mais. E pouco se faz por ele. A lógica do cuidado não é para todos.

Isto não é uma ideia qualquer nem uma análise marxista aleatória; é uma ideologia firme e hegemônica que serve para vários propósitos. Serve, por exemplo, para que os trabalhadores de estratos sociais mais elevados não se reconheçam como tal e, assim, sintam-se melhores do que outros mais obviamente explorados. Uma cisão de classe que impede a organização entre as diversas categorias, principalmente as categorias como a médica, que prefere fechar os olhos para a realidade da classe, vive na ilusão de que são majoritariamente profissionais liberais e, pelos salários elevados e reconhecimento social, tem como prioridade manter o status quo da profissão, inclusive apoiando agendas políticas e políticos que evidentemente visam agravar mais a saúde dos trabalhadores, os médicos inclusos.

Outro propósito, este mais prático, é que ao produzir a ideia de que há uma “classe médica”, desloca-se a ideia de unidade com o resto da classe trabalhadora para uma ideia de superioridade. Com isso, a categoria médica estranha o trabalhador que atende e vê em suas queixas processos individuais. Ao ver oposição ao governo, protestos ou qualquer movimento minimamente de oposição/questionamento à ideologia dominante, não percebe que os interesses defendidos pelos trabalhadores também são os seus. Os supostos mais instruídos, ditos doutores, também são uma das categorias mais alienadas da sociedade brasileira.

Da diferença de demandas, motivadas pela cisão de classe, surgem duas Medicinas. Uma focada de fato em qualidade de vida, que os “ricos”, que vivem em boas casas, com lazer e saneamento e trabalham com pouco risco físico, procuram com custos que geralmente não fazem faltar comida na feira. Já a outra é focada em negligência, pois o trabalhador não tem tempo de ir ao médico, nem possibilidade de manter em sua rotina qualquer tratamento com plenitude, ainda mais se for multidisciplinar. Uma falta no trabalho desgastante para se cuidar? Nem pensar. Psicoterapia, arte, hobbies, esportes, alimentação saudável, acesso à cidade, morar num lugar seguro, se endividar menos. Nem pensar.

Ao ser exposto a uma rotina de trabalho que não lhe respeita, gastando horas em pé no transporte público lotado, sem ter estabilidade no emprego, sofrendo pressão para produzir mais, temendo a demissão, fumando e bebendo para amenizar seu estresse, o trabalhador chega a seu limite e finalmente vai ao médico. Mal é examinado, recebe um paliativo medicamentoso, uma terapêutica que não tem condições de seguir (o médico perguntou se teria?) e um atestado de alguns dias que talvez nem cumpra inteiro para evitar problemas com o patrão. O problema foi resolvido? O sintoma é a pressão alta ou o trabalhador?

Retornando ao nosso paciente ansioso, vê-se que a postura do médico diz muito. Logicamente, uma crise de ansiedade precisa de uma causa, então apenas medicar e liberar para casa é o mesmo que aumentar o tempo para a explosão de uma bomba. Não é importante levar em consideração que a função do paciente no trabalho pode ser extinta (e trocada por uma máquina) e ele ser demitido, nem o fato de ele morar num bairro com risco de desabamento. Será que tem para onde ir? Como ele se sente sobre isso? E sua família? Ele não foi cuidado. Foi remendado e mandado de volta para o sistema que o adoeceu.

Com estas provocações, que serão aprofundadas num próximo texto, é essencial perceber que este paciente não traz consigo questões individuais. Seu fumo, seu etilismo e nem mesmo sua ansiedade são individuais. São questões coletivas, pois quantos mais, igualmente, estão adoecidos pela sociedade e pela forma com que precariamente inserem-se no mercado de trabalho e de consumo? Mas não somos ensinados a enxergar isto na Faculdade de Medicina, não há porque questionar a ideologia dominante, isto não é importante. Importante é o sintoma seco, a diretriz, a conduta. Pressão alta mais ansiedade, medico, avalio, dobro a medicação, reavalio, libero o leito, que venha outro. Eis que torna-se cada vez mais evidente qual a função do trabalho médico na sociedade capitalista.

Parafraseando Guilherme de Albuquerque em sua dissertação de mestrado, o trabalho médico numa sociedade de classes tem apenas uma função principal: reabilitar um trabalhador que foi explorado até seu limite e finalmente procurou ajuda, para que novamente torne-se viável para ser explorado até um novo limite. Um ciclo vicioso onde a variável principal é o quanto o trabalhador aguenta antes de desenvolver problemas psicológicos/psiquiátricos ou orgânicos que serão postos sob a culpa de estilo de vida (que ele escolheu?) ou falta de cuidado com a saúde (que ele escolheu?) que o façam ser impedido de trabalhar em sua função, e na outra, e na outra, e, finalmente, em qualquer função. Neste momento, sem possibilidade de emprego, é refém da bondade da família ou da insuficiência do programa de aposentadoria, que a cada retrocesso piora.

Realmente podemos afirmar que a função do médico, na sociedade de classes, é salvar vidas?

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