População mais pobre morre mais por Coronavírus em São Paulo

Bernardo Loureiro | Medida SP
MedidaSP
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6 min readJun 11, 2020

Analisamos microdados do DATASUS na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) para entender como os óbitos de Covid-19 estão distribuídos com relação a renda. Observamos que residentes de áreas mais pobres da região estão morrendo mais devido à doença, mesmo quando controlamos para o tamanho da população em cada faixa de renda e idade.

Mortes por idade e renda

Analisamos 3.959 registros de óbitos devido à Covid-19 confirmados na Região Metropolitana de São Paulo, registrados até o dia 18 de maio. Mapeamos o CEP das pessoas falecidas para obter a renda por local de residência; além disso, dividimos os óbitos em grupos por idade, um fator que conhecidamente afeta o risco de morte por Covid-19.

O mapa mostra uma maior quantidade de mortes fora do centro expandido, mas não permite uma leitura clara da relação entre óbitos, idade e renda. Para facilitar essa comparação, fizemos uma mapa de calor (disponível abaixo) relacionando as variáveis anteriores.

Observamos que a maioria das mortes se concentra nas pessoas mais velhas (acima de 50 anos) e mais pobres (menos de 3 mil reais de renda domiliciar média no local de residência).

Mortes confirmadas por Covid-19 por idade e renda, mapa de calor

Mortes entre jovens

Também chama a atenção um número elevado de mortes entre pessoas jovens de menor renda, especialmente em comparação com os jovens e mais ricos. No grupo de pessoas com 30 anos ou menos, só houve 1 morte por Covid-19 no período, nos locais com renda média acima de 6.500 reais. Em comparação, em locais com renda abaixo de 6.500 reais foram 52 mortes confirmadas no mesmo período.

Nota: Como ler o gráfico acima?

Na vertical, dividimos os óbitos em faixas de renda; na horizontal, em faixas de idade. Cada célula representa o número de mortos naquele cruzamento entre renda e idade. O diagrama abaixo explica como ler o gráfico:

Como ler o gráfico mapa de calor acima

Considerando o tamanho da população

Sabemos que o tamanho da população varia de acordo com a renda e idade, então fizemos uma segunda análise para levar em consideração o tamanho da população.

Somamos o número de mortes por faixa de idade (ignorando a renda). A seguir, distribuímos as mortes considerando somente o tamanho da população em cada faixa de renda. Isso nos permite aproximar o número de mortes “esperadas,” caso a renda não tivesse impacto nas chances de morrer devido à Covid-19.

Exemplificando: imagine que tivéssemos 100 mortes na faixa dos 31–40 anos e, na mesma faixa de idade, 7.000 pessoas mais pobres e 3.000 ricas no total da população. Se a renda não fizesse diferença nas chances de morrer, esperaríamos que 70 mortes ocorressem na faixa de renda menor e 30 na maior. Subtraindo esse número esperado do número real de mortes, podemos ver melhor o impacto da renda na mortalidade.

Essa análise, resumida no gráfico abaixo, mostra o impacto significativo da renda no número de mortes por Covid-19. O número em cada célula indica o número de mortes acima ou abaixo do esperado (em negativo) para cada faixa de idade e renda.

Por exemplo, na faixa de idade entre 71–80 anos e com renda menor ou igual a 3 mil reais por domicílio, observamos 100 mortes a mais do que o esperado. Na mesma faixa de idade e renda entre 3 mil e 6,5 mil reais observamos 63 mortes a menos do que o esperado.

Mortes além do esperado por Covid-19 por idade e renda, mapa de calor

Covid-19 vem afetando cada vez mais os mais pobres

Por último, analisamos as mortes por renda e data da notificação. Observamos que as vítimas vêm, ao longo do tempo, sendo cada vez mais pessoas residentes em áreas de menor renda. A mediana da renda média domiciliar no local de residência era de quase 4.000 reais no começo de março. enquanto no começo de maio ela já estava próxima dos 2.200 reais.

Mortes confirmadas por Covid-19 por data e renda

Baixa renda como um fator de risco?

Apesar da renda não ser diretamente um fator de risco, a renda pode estar relacionada a uma série de outros fatores de risco, como por exemplo:

  • Acesso à saúde
  • Disponibilidade de espaço para fazer isolamento (como apontamos nesta outra análise)
  • Necessidade de continuar trabalhando e capacidade de trabalhar remotamente
  • Exposição à poluição e outros fatores de risco ambientais
  • Predisposição a ter outros fatores de risco, como diabetes e problemas cardíacos

Em um texto no The Guardian, a escritora Rebecca Solnit resumiu esses pontos no seguinte título: “O coronavírus discrimina sim, porque os humanos discriminam.” O New York Times fez uma matéria sobre os bairros mais afetados na cidade e sobre as disparidades do impacto racial do vírus (mais sobre isso abaixo).

Acreditamos que a justiça ambiental seja uma perspectiva relevante para tratar dessas questões. Assim como diferentes populações estão expostas a diferentes riscos ambientais (em decorrência de processos históricos e descriminatórios), essas populações também correm riscos diferentes durante a pandemia. Esta série de textos curtos traça paralelos entre justiça ambiental, climática e a pandemia.

Para piorar ainda mais o cenário, exposição a certos fatores ambientais combinados pode aumentar os riscos de morrer devido ao coronavírus. Por exemplo: se você mora em uma área mais exposta à poluição, se você tem mais chances de ter uma doença pré-existente não controlada, menos acesso à saúde, e mais necessidade de sair para trabalhar, todos esses fatores de risco serão somados.

Limitações

Óbitos e não casos

Optamos por analisar óbitos e não os casos da doença por acreditarmos que o fenômeno da sub-notificação tende a ser inferior para óbitos. Além disso, há provavelmente um fator relacionado à renda na sub-notificação, ou seja, pessoas mais ricas provavelmente têm mais chances de serem testadas. Isso pode significar que as pessoas mais pobres estão mais sub-representadas nos dados devido a esse impacto desigual da sub-notificação.

Análises por cor / raça

Análises que apontem relações entre cor e risco de morte são essenciais para entendermos o impacto desigual da doença (como foi feito nesse artigo do New York Times). No entanto, mais de um terço dos óbitos da base que utilizamos não tinha o campo “raça / cor” preenchido, o que torna praticamente impossível fazer uma análise nesse sentido. É essencial que esse dado seja coletado para não invisibilizar essa questão nas discussões sobre a pandemia.

CEP e endereço

Utilizamos o CEP para georreferenciar a residência das vítimas, e sabemos das limitações que isso implica. Pessoas que moram em habitações informais, geralmente mais pobres, muitas vezes não têm um CEP; o serviço de georreferenciamento do Google não funciona tão bem nessas áreas; moradores de rua não têm um CEP de residência. Todos esses fatores podem significar que estamos sub-representando as pessoas de renda mais baixa nos dados.

Renda por localização

Usamos dados mais recentes do Censo (2010) para atribuir a renda pelo CEP de residência da vítima. Sabemos que a renda média do entorno não é necessariamente igual a renda da vítima, mas acreditamos ser um dado representativo, além de ser o dado mais granular disponível atualmente.

Metodologia

Toda nossa metodologia está disponível em código aberto aqui. Os microdados do DATASUS que utilizamos são agora divulgados com menos informações, não incluindo mais o CEP de residência das vítimas (como apontou aqui o LabCidade). No nosso repositório incluímos uma cópia dos dados que utilizamos.

Se você quer ajudar com doações ou outras ações, a Folha fez um compilado de fundos e entidades e como ajudar #FiqueEmCasa

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Bernardo Loureiro é urbanista, especializado em mapeamento, análise e visualização de dados. É criador do laboratório de visualização urbana Medida SP.

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