O Imaginário Medieval Em Westeros

Uma leitura crítica de George R.R. Martin a partir de Jacques Le Goff

Bruno Rosa
Medievalíssimo
8 min readJul 10, 2019

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O Rei da Noite

Uma leitura um pouco mais atenta dos bons títulos do gênero nos mostra que a maioria dos escritores de literatura de fantasia parte do mundo real, esse em que comungamos, entendemos e sentimos, para criar seus universos literários e suas histórias, de acordo com seus estilos, intenções e desejos. São raros aqueles que simplesmente criam um mundo do nada absoluta, admitindo a possibilidade que em arte algo é criado do nada absoluto, e tão raros quanto são aqueles que não se utilizam de eventos, personagens, estruturas, narrativas da realidade concreta para moldar e forjar seus contos e romances. Isso, obviamente, tem uma função literária: é muito mais fácil fazer a supressão da descrença com cenários que conhecemos do que naqueles que nos são totalmente novos. Um mundo sem paralelos ao nosso também implicaria uma falta total de empatia com o mesmo, seria uma construção literária totalmente ilegível e inteligível, além de potencialmente vazio em termos emocionais, ficando assim sem sentido e significado algum.

Podemos pegar, por exemplo, a obra de Robert E. Howard ou de J.R.R. Tolkien como exemplos: as histórias do primeiro se passam em nossa Terra só que em tempos ancestrais e imemoriáveis, uma pré-história da nossa pré-história, porém se utiliza de alguns mitos e lendas que nos são palpáveis, como Atlântida; o segundo se utiliza de narrativas de povos nórdicos e germânicos, além de celtas, para construir tanto a sua Arda quanto suas mais diversas línguas. Tanto em Howard quanto em Tolkien o caminho é sempre o mesmo: parte-se do real para se chegar à fantasia, num movimento semelhante a sair do particular para se chegar ao universal.

George R.R. Martin

Em termos estruturais um dos melhores exemplos da utilização da realidade para uma construção fantástica se dá por George Lucas e seu Star Wars: partindo de um estudo profundo de mitologia antropológica Lucas conseguiu aplicar na sua história sobre a Força, Skywalkers, Han Solo, Império e Rebeldes as teorias semióticas de Joseph Campbell, fazendo assim que uma história totalmente farsesca fosse lida e interpretada mais facilmente por gerações de fãs devotos, afinal Campbell consegue sintetizar em sua obra a estrutura narrativa geral do mito, principalmente através do conceito do monomito e de sua jornada do herói.

Em As Crônicas de Gelo e Fogo, magnus opus do estadunidense George R.R. Martin, erroneamente alcunhado de “Tolkien ianque”, e vamos entender o porquê do equívoco por parte da crítica especializada em outro texto futuro, não foge muito a esse tipo de percepção e fazer literário. Sem as diversas influências da realidade histórica boa parte das intrigas palacianas, da mitologia, das estruturas e a própria concepção de Westeros e Essos não poderiam existir. A história de Westeros nada mais é do que uma releitura fantástica de boa parte da história da Inglaterra, desde os primórdios do povoamento, passando pelas conquistas romanas, pelas migrações germânicas até a Guerra das Duas Rosas e o estabelecimento da Dinastia Tudor. Isso fica ainda mais evidente quando olhamos para o mapa do continente: uma junção formal das ilhas da Grã-Bretanha e da Irlanda.

E não apenas em aspectos de inspiração, Martin também recheia sua narrativa com uma política, uma economia, uma mitologia, uma sociologia e até uma história reais e calcadas na realidade material tal como nós conhecemos, ou seja, uma realidade plenamente funcional e plausível. Tal escolha acrescenta camadas de verossimilhança para uma história onde dragões voam e mortos voltam à vida. Essas camadas de “realismo” ficam ainda mais acentuadas porque Martin consegue imprimir em sua escrita, além da psicologia dos personagens, um fator a parte e não cabe nesse pequeno texto, um imaginário e uma mentalidade típicos daquilo que supomos ser o imaginário e a mentalidade do Ocidente medieval europeu.

Entretanto há um porém nesse quesito: as múltiplas crenças presentes em As Crônicas de Gelo e Fogo, e sua adaptação televisiva Game of Thrones. Essa diversidade de crenças e religiões, algumas inclusive afastadas da institucionalidade formal, se afasta muito do imaginário e da mentalidade do homem medieval, dominados pelos dogmas, símbolos, ritos e mitos do cristianismo católico romano. Ao pegarmos algum bestiário produzido no período, principalmente após a instituição das Cruzadas, conseguimos perceber como todo simbolismo medieval é amalgamado e significado pelo cristianismo, como por exemplo é o caso do unicórnio: durante os primeiros séculos do cristianismo medieval o unicórnio não era um cavalo e sim um peixe, sua transformação em cavalo se deu muito por conta do advento da cavalaria como uma potência política e social, além da ruralização da civilização do Ocidente medieval, porém o sentido do simbolismos do peixe continuava o mesmo no cavalo com um único chifre: a representação de Cristo, da renovação em Cristo.

Jacques Le Goff

Em termos de imaginário não há apenas a criação de seres mitológicos ou fantásticos, imaginário também é um conceito que une das palavras: imaginação e imagem, ou seja, tem haver com signos e significados, com simbolismos. É necessário ressaltar que o Ocidente medieval foi uma civilização basicamente iletrada por boa parte de sua existência, a forma mais comum de pedagogia e de leitura era o imago, símbolos que eram de conhecimento comum que ressaltava uma característica ou outra; bom uso do imago pode ser apontado nas iluminuras e miniaturas produzidas pelo período, geralmente um misto de texto escrito e imagético, escrito para o clero e imagético para a massa campesina, além dos vitrais e esculturas na arquitetura gótica religiosa. Em termos formais podemos apontar que imaginário são as imagens simbólicas que um determinado grupo social pode produzir, revelando assim muito de sua mentalidade e de sua psicologia. A leitura do imaginário possibilitou, por exemplo, o surgimento de um novo ramo na ciência histórica: a história das mentalidades, que se afasta ao mesmo tempo da história da arte, das ideias, intelectual, social, porém, ao mesmo, tange e dialoga com as mesmas.

Com isso em mente partamos para o que nos importa: é possível aproximar o imaginário westorosi com o imaginário do Ocidente medieval? A resposta não poderia ser mais positiva…

Para corroborar nossa ideia imaginemos um dos principais plot de As Crônicas de Gelo e Fogo: a luta dos vivos contra os mortos que trazem o medo, a noite e a morte. Um dos elementos mais presentes no imaginário medieval era justamente a morte, principalmente na Baixa Idade Média após as Cruzadas, a Peste Negra e a Guerra dos 100 Anos, porém esse movimento imaginativo começa a surgir já com as invasões de escandinavos e mongóis tardios a partir dos séculos 9 e 10.

A morte, o medo da morte, seja pela fome, pela espada ou pelo ambiente, é extremamente presente na mentalidade medieval e feudal, ele se encontra nas novelas de cavalaria, nas canções de gesta e nos romans típicos do período. Isso pode ser sentido quando pegamos uma das heranças mais vivas da cultural medieval para posteridade: os contos de fada. Escritos, ou melhor compilados, a partir do século 19, principalmente pelos irmãos Jakob Ludwig Karl e Wilhelm Carl Grimm, os contos de fada nos mostra como a ideia do medo da morte se encontra plasmado no folclore europeu, e a raiz desse medo é justamente o Ocidente medieval.

Quadro Åsgårdsreien (A Caçada Selvagem de Odin, em tradução livre), do pintor noruguês Peter Nicolai Arbo, datado de 1872

A utilização da morte, ou melhor do medo da morte, como um elemento motriz do enredo e da narrativa por si só, em um universo de fantasia medieval, já colocaria Martin duma posição de destaque, porém a utilização do exército dos mortos coloca-o ainda mais em destaque. O medievalista francês Jacques Le Goff, um dos proponentes da história das mentalidades e grande estudioso do imaginário medieval, compilou em Heróis e Maravilhas da Idade Média — link para compra com desconto na Amazon aqui — uma série de lendas, mitos e contos populares, admitindo que é possível se pensar tanto em cultura popular e literatura durante o Ocidente medieval, do período que ainda se encontram de alguma forma, mesmo que metamorfoseado, no nosso imaginário. E o que une, então, Martin e Le Goff?

A resposta é um dos personagens chaves do Carnaval: o Arlequim . O tema do folclore conhecido como Caçada SelvagemWild Hunt, em inglês, e Wilde Jagd, em alemão — é um dos temas mais conhecidos da mitologia ocidental: um bando de fantasmas caçadores em uma perseguição insana e sem fim. A Caçada Selvagem influenciou de Tolkien, durante o episódio onde Aragorn convoca os mortos em seu auxílio, até músicas country, a clássica Ghost Riders in the Sky (ouça versão cantada por Johnny Cash aqui). E onde mais encontramos um bando de fantasmas enlouquecidos em perseguição infinita? Justamente no Rei Prá-Lá-da-Muralha, chamado de Rei da Noite em Game of Thrones, os White Walkers e seu Exército dos Mortos. E onde entra Arlequim aqui? O Arlequim surge justamente como uma ressignificação desse líder de bando, porém seu nome foi se alterando, talvez muito por conta da oralidade presente na cultura medieval, e de líder de um bando de caçadores fantasmas passou a ser um dos líderes da folia de Momo.

Le Goff nos mostra no capítulo 13 do livro acima citado a história do Bando Hellequin, de como ele seria uma crítica à sociedade feudal, e ao mesmo uma história de lealdade e companheirismo entre um bando e seu chefe. Não há como saber se Martin conhecia ou não a história da caçada selvagem, ou se leu o texto de Le Goff, para se inspirar ao criar o seu exército dos mortos, mas ao fazê-lo mostra uma imaginação sensível sobre a mentalidade medieval, sobre o imaginário feudal, e o quanto certas imagens do passado ainda podem ter força para explicar o presente, afinal vivemos em uma época onde o medo atômico se arrefeceu um tanto quanto possível, porém o medo da morte pela mão de terroristas se faz presente e atuante.

A barbárie, o medo, a morte, são dos elementos mais pujantes e transversais na nossa história, seja aqui ou em Westeros, presentes na longa duração histórica e no nosso imaginário, a morte e o medo da morte se fazem presente tão forte hoje quanto eram nos idos dos séculos 10, 11 e 12, mostrando assim que somos muito mais próximos da mentalidade medieval do que gostaríamos de admitir.

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Bruno Rosa
Medievalíssimo

Professor e historiador por profissão e vocação, escritor e fotógrafo por amor, palmeirense sofredor, além de humanista ateu convicto e ecossocialista.