O Instagram e a Medievalização do Conhecimento Social

A função social da imagem ontem e hoje

Bruno Rosa
Medievalíssimo
6 min readMar 23, 2020

--

Uma visão historicista sobre os eventos e processos formativos e normativos do presente e do passado, onde a história seria formada por continuidades e rupturas é, no mínimo, datada e, para não dizer de forma muito bruta, equivocada.História é uma ciência da realidade social e humana, e como tal essa dinâmica de continuação e descontinuação como única forma para se explicar os processos históricos acaba por simplificar e banalizar a complexidade dos estudos históricos. Pensar a história a parte das questões sociais e da temporalidade é um erra já de saída para aqueles que se dedicam ao seu estudo.

É notável que precisamos colocar no tempo, não apenas fixo e pontual, mas em seu contínuo, aspectos humanos, essa talvez seja a tarefa basal do historiador. E aqui cabe uma pequena alegoria: o tempo histórico é como um lago e qualquer perturbação causa um conjunto de ondas que reverberam até perderem sua força ou encontrar uma barreira definitiva.

Exemplo imagético de como a mitologia e mentalidade cristã eram transmitidas através de imagem: há de tudo nesse tríptico, a abundância do número 3, anjos, Jesus como figura central do poder temporal e secular, etc.

Isso significa que o processo histórico é caótico, contínuo e sem sentido, cabendo ao historiador e ao professor de história tentar, ao menos, ordenar, temporizar e significar esse processo, e a partir desse choque surgem essas simplificações, principalmente por motivações pedagógicas e comunicativas.

Isto posto, é preciso pensar uma característica que o presente e o período dito medieval apresentam em comum: o uso da imagem como forma de comunicação e instrução. Tanto no tempo presente quanto no medievo a imagem possui uma potência enorme, ao ponto de termos criado um chavão repetido aos borbotões: “uma imagem vale por mil palavras”. Durante o milênio medieval, principalmente com o advento da arte românica e posteriormente com a arte gótica, isso não poderia ser mais verdadeiro.

Exemplo de uso codificado de imagem: essa imagem resume a vida de Jorge da Capadócia sem precisar se utilizar de nenhum signo letrado

Durante o período em questão a imagem passa por uma transformação para além da representação simbólica da realidade, a imagem adquire o sentido de “imago”, ou seja, passa a ser uma composição de signos codificados e, como em toda cifra, formada por dois agentes: codificadores e decodificadores. A imagem, principalmente aquelas ligadas ao sagrado, assumem uma função pedagógica, catequética e exegética: é pela imagem que a Palavra se revela e inspira a congregação.

Podemos nos questionar o que surge primeiro: uma sociedade iletrada ou o conceito de imago? Em síntese, acreditamos que ambas acontecem concomitantemente e acabam por se retroalimentar, a sociedade iletrada demanda o conceito de imago, e esse daquela. Devemos nos perguntar como a mesma civilização que significou a leitura para os nosso termos, se afastando de uma função de ferramenta para a memorização e passando a ter um caráter mais subjetivo e pessoal, foi se iletrando e se tornando cada vez mais imagética?

Exemplo de apropriação do tempo presente do conceito de imago medieval

Aqui precisamos nos ater à história das mentalidades e das ideias: qual instituição comandava e circulava as ideias em boa parte do período medieval? A resposta não deve ser segurada dos lábios do leitor: a Santa Sé de Roma. Também precisamos nos lembrar que o homem medieval tinha um objetivo nesse plano de existência: garantir a salvação de sua alma imortal para a posteridade. Ou seja, a Igreja de Roma chancelava a Redenção das Almas e também garantia quais ideias circulavam. Dessa forma, o papa decidia o que ler e quem poderia ler, dessa forma a literatura escrita quase desapareceu, sendo mais representada na oralidade, principalmente na poesia e no teatro, pois apenas os homens da Igreja, portanto iluminados pela luz da graça e sabedoria cristãs, poderiam fazer uso dessa leitura. Isso, entretanto, gera um problema: como educar seu rebanho nas crenças e dogmas do cristianismo? Não podemos nos esquecer que Cristo se revela pelo Verbo da Palavra. A resposta à pergunta vem através do conceito de imago. A imagem passa a servir como forma de educar o rebanho pois a leitura da Bíblia, uma das poucas leituras chanceladas, era restrita a um círculo muito pequeno.

O conceito de imago acaba por ser uma contradição latente da Idade Média Central. tal como no presente, onde vivemos tempos de hipertextualização, poucas vezes tivemos um tempo com tanta produção e circulação textual — se vivêssemos nas maioria absoluta dos tempos pretéritos tanto eu quanto você não teríamos acesso ao texto escrito, leitor — e ao mesmo tempo temos a explosão de uma comunicação imagética, como por exemplo através da principal ferramenta de comunicação existente hoje: a internet.

Não podemos, muito menos devemos, ignorar a internet, principalmente como fenômeno sociológico e histórico. Como profissionais de história, seja como professores ou pesquisadores, uma de nossas premissas é entender o tempo social no qual vivemos e comungamos. E um dos traços significantes do tempo presente é justamente a presença de uma ferramenta de comunicação jamais vista pela civilização. Como fenômeno sociológico, a internet impactou tão profundamente a humanidade que o próprio paradigma civilizacional acabou por se alterar. Tal como o período entre as quedas dos impérios romanos vivemos um tempo muito distinto tanto da Modernidade quanto da Antiguidade, e o ritmo de estranhamento apenas acelera, buscando seu teto. São tempos verdadeiramente excitantes para se viver e conviver!

Claro, como historiadores não devemos tentar julgar o presente, porém é difícil não esconder certa positividade e esperança num tempo em que tantas, e tantas, barreiras foram postas ao chão.

A Era da Internet é uma era do texto, nunca antes tivemos uma taxa tão alta de letramento entre a população, e principalmente entre as camadas mais pobres da sociedade, como o agora. A comunicação pela internet é, basicamente, por texto ainda, porém testemunhamos o ressurgimento do conceito de imago, principalmente através dos memes e das redes sociais, notoriamente o Instagram e o YouTube. Cada vez mais vemos a imagem tomar o lugar da letra como cifra de comunicação absoluta, ou seja, é a imagem retomando seu caráter imagético-comunicativo-pedagógico por conta de sua facilidade de transmissão, assimilação e reprodução. Não é incomum encontrarmos exemplos de pessoas que hoje fazem boa parte de sua comunicação não oral através de memes, gifs, emoticons e emojis. Aliás fica uma reflexão e um exercício filosófico: como os arqueólogos que escavarão nossa civilização dirão dos emojis? Retornando, apesar de toda tecnologia, de todo letramento, somos muito mais medievais do que gostaríamos de admitir.

Para desespero de renascentistas e iluministas, além de outros detratores, o período medieval insiste em lançar sua luz e suas raízes sobre a civilização e o tempo presente. A questão do imago é um exemplo, a onipresença da oralidade e da música é outra, a sociedade de privilégios é outra, as estruturas mentais de salvação e danação outra, entre tantas outras. Devemos, portanto, entender a Idade Média por-si e também em como reflete o presente no qual vivemos, além de nos ajudar entender aspectos bem definidos os quais vivemos.

Conheça a campanha de financiamento coletivo do Clio: Historia e Literatura no Catarse, lá a partir de R$ 5,00 você já ajuda o Clio a se financiar e produzir cada vez mais e melhores conteúdos para você.
Acesse agora
www.catarse.me/clio e conheça as faixas de contribuição e recompensas

Financiadores desse artigo
Alexandre Athayde, Bruno Machado, Cristina Lima, Daniela Dias, Fabiana Jimenez, Gabriel Bastos, Gui Aschar, Hannah Lima, Luiza Athayde, Natália Castilho, Paula Guisard, Rosana Vecchia, Rosi Marques, Suzana Athayde
Para todos vocês nosso muito obrigado!

Você também pode nos financiar via PicPay. Gostou desse texto e quer doar qualquer quantia? Procura a gente em @cliohistoriaeliteratura no app e faça já a sua doação!

--

--

Bruno Rosa
Medievalíssimo

Professor e historiador por profissão e vocação, escritor e fotógrafo por amor, palmeirense sofredor, além de humanista ateu convicto e ecossocialista.