Perceval, ou o Romance do Graal (Chrétien de Troyes)

Bruno Rosa
Medievalíssimo
Published in
6 min readJan 3, 2019

Para nós, leitores modernos, é estranho, no bom sentido, lermos um texto que é tão obviamente moralista e evangelizador. A moral — aquela filosófica, não esse arremedo de vigiar os costumes do próximo — é um tema tornado secundário com a modernidade, sendo gradativamente substituída pela ética, o que pra mim é estranho, pois todas as revoluções comportamentais que passamos nos últimos 50 anos justificariam uma revisão sobre o bem e o mau.

Enfim, não é sobre isso que pretendo escrever. Meu intento é escrever sobre um texto inacabado do século XII sobre a Demanda do Graal. Publicado no Brasil pela Martins Fontes, dentro da Coleção Gandhāra, Perceval ou o Romance do Graal, clássico da literatura medieval francesa, narra as aventuras do cavaleiro da Távola Redonda Perceval, o Galês, em busca do Santo Vaso e da Lança que Sangra sem Nunca Secar.

Iluminura de cerca de 1330 contendo uma cena do “Romance do Graal” de Chrétien de Troyes

A história, em si, é bem conhecida de todos, por isso não entrarei profundamente nela. O que me importa nela são as características expostas no primeiro parágrafo. Sou um grande entusiasta sobre o medievo da cristandade, principalmente no tocante da cultura dita cortês. Desde de tenra idade gosto das histórias que envolvessem cavaleiros, damas, reis e rainhas. Por conta da minha formação e da minha leitura entretanto havia criado um modelo pronto de mentalidade e sociedade do período. Ler as aventuras de Perceval me mostrou o quanto engano eu estava. Aqui cabe sempre um elogio à heurística, leitura e hermenêutica de fontes históricas, mesmo a historiografia moderna tendo afastado o conceito de verdade histórica, as fontes nos abrem os olhos para uma realidade diferente daquela interpretada e analisada por seus estudiosos, vale a pena nos lembrar a função primeira do historiador é justamente ser crítico em relação a qualquer realidade posta como cristalina e impassível de qualquer juízo crítico.

Feita a digressão historiográfica, voltemos à análise do Perceval, em toda a história, em primeiro lugar, há uma forte intenção de evangelizar o leitor, não o moderno, mas sim aquele contemporâneo de quando a obra fora escrita, sempre aproximando a Demanda do Graal, que nós, modernos, erroneamente temos a aproximar mais a uma cultura “pagã” e “celta”, muito por causa do surgimento de religiões e crenças, e posterior interpretações místicas que a Matéria da Bretanha tomou, se apregoando de um renascimento da cultura pré-cristã de áreas como a Gália ou a Bretanha, do que cristã. Para o leitor moderno causa certo espanto aos olhos ver como a Demanda do Graal fora usada a todo o momento como uma alegoria às virtudes católicas.

Aqui nós historiadores, e os medievalistas mais especificamente, precisamos nos perguntar: o que há de estranho nisso? Ao lermos textos que nos são separados temporalmente precisamos nos fazer certas perguntas, sendo algumas como para quem, quando e com qual intenção aquele documento fora produzido, isso sem entrar na questão de sua preservação, são as primeiras a vir à mente. Dessa forma precisamos, se queremos obter melhor entendimento e apreciação do romance posto, nos perguntar quando e para quem Chrétien de Troyes escreveu sua versão dessa história. Chrétien escreve essa novela de cavalaria aproximadamente da década de 1180, em nome do conde Felipe de Flandres. Ou seja, escreve já no final do século XII para uma classe privilegiada, a nobreza.

Tapeçaria atribuída a Edward Burne-Jones, de cerca de 1835, contendo as figuras de Bors, Galahad e Percival conquistando o Graal

Ora, não seria um dos pilares da nobiliarquia ser parte e protetora da fé cristã católica romana? Perceval é retratado como um cavaleiro puro, que gradativamente vai abandonando todos os pecados, entendidos evidentemente sob a óptica do espírito do tempo no qual a obra foi produzida, não podemos nos esquecer que o Ocidente medieval cristão é um período marcado por um louvor ao ascetismo, até Perceval se tornar o Guardião do Graal, ou seja, traça um paralelo com o ideal da vida que um bom cristão deveria levar. É uma história basicamente catequética, ou seja, de ensinamento, de iluminação, tendo inclusive passagens da Bíblia como base para esses ensinamentos de cunho moral.

Outro fator que pula aos olhos é o papel que é atribuído às mulheres. Elas são retratadas de maneira secundária, com somente Brancaflor, esposa de Perceval, que aceita esposá-lo porém não consumir o matrimônio, o que é uma tônica dentro do amor dito cortês, essa separação entre o prazer carnal e o casamento, basta nos lembrarmos de Heloísa e Abelardo, Jerônimo e Agostinho, além da fonte primária dessa concepção, Paulo de Tarso, para perceber o quão presente estava essa relação entre matrimônio e concupiscência, tendo algum destaque. Outra personagem feminina que salta aos olhos é a mãe de Perceval, porém apenas no começo da história. Nem a rainha Guinevere é relevante para a narrativa, apesar do rei Arthur aparecer diversas vezes, o nome de sua consorte não é mencionado nenhuma vez. Aqui não há Morgana, a Fada, a Dama do Lago, ou qualquer outra personagem feminina, exceção à Brancaflor, de peso e profundidade. Temos aqui um exemplo literário da concepção teórica de Georges Duby sobre a “máscula Idade Média”, a leitura de seus ensaios Idade Média, idade dos homens, Heloísa, Isolda e outras damas do século XII e Eva e os padres, além dos livros sobre a mulher medieval de Régine Pernoud, se fazem fundamentais para entender a relação entre os sexos no longo milênio da civilização medieval.

É interessante como as leituras contemporâneas da Matéria da Bretanha alterou seus significados, sentidos e o próprio cerne da história, dando um tom místico e mitológico para algo que era puramente teológico e moralizante, não moralista. Por possuir um tom mais refino e dialogar profundamente com a teologia e a filosofia, a interpretação medieval sobre o Graal é para mim muito mais cara e próxima. Ver autores como Dan Brown e Marion Zimmer Bradley tentando dar contornos místicos pagãos para a Demanda do Graal me causa certa repulsa, pois em sua totalidade o Ciclo Arturiano é muito mais complexo e, por que não, agradável aos olhos do que um misticismo barato em nome de certo revisionismo dito histórico. Não preciso nem entrar na seara de que tal interpretação mais mística nos mostram claros sinais de uma época pouco racional na qual compartilhamos a existência.

Aquarela “Como sir Galahad, sir Bors e sir Percival foram alimentados pelo Santo Graal; porém a irmã de sir Percival morre no caminho” de Dante Gabriel Rossetti, data de 1864

O que temos então? Temos o retrato de uma sociedade basicamente masculina, violenta, afinal todos os conflitos são resolvidos na base do duelo e do combate, e às franjas da consolidação do poder eclesiástico. Perceval passa de um ser totalmente ignorante e pagão, aqui usado no sentido de não fazer parte da fé cristã, até se tornar monge e Guardião do Graal, e ser referenciado quase como um santo. Ou seja, uma pura demonstração de como a fé em Cristo e na sua Santa Igreja leva o homem, não como espécie, como gênero, para um mundo melhor, ideal e sem a dor e o pecado.

Conheça a campanha de financiamento coletivo do Clio: Historia e Literatura no Catarse, lá a partir de R$ 5,00 você já ajuda o Clio a se financiar e produzir cada vez mais e melhores conteúdos para você.
Acesse agora www.catarse.me/clio e conheça as faixas de contribuição e recompensas

--

--

Bruno Rosa
Medievalíssimo

Professor e historiador por profissão e vocação, escritor e fotógrafo por amor, palmeirense sofredor, além de humanista ateu convicto e ecossocialista.