À fala

esther lourenço
Medium Brasil
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5 min readFeb 9, 2018

Não sou uma pessoa com muitas crenças, mas quando creio, o faço com afinco. Um de meus pilares é crer no poder da palavra. Já tinha uma ou outra teoria que pairava pela minha cabeça, uma delas fruto de ser criada em lar cristão, tendo ouvido durante a infância que Jesus disse "levanta-te e anda" e o homem passou a andar. Me pasmava o fato de que ele apenas proferiu uma palavra e aquilo se tornou realidade. Tempos depois, tive acesso a uma ou outra teoria sobre mentalizar e repetir frases que você quer que se tornem realidade e percebi que a questão transcendia a crença cristã.

Durante uma viagem, conheci um xamã que se tornou automaticamente um amigo próximo, como se nos conhecêssemos há tempos logo no primeiro dia. Em uma conversa, já me sentindo extremamente à vontade para me abrir com ele, afirmei que tinha depressão e ansiedade e ele me interrompeu e me sugeriu pra mudar o modo como eu colocava essas patologias na minha vida, pra não apresentá-las automaticamente como parte de mim. Disse que dizer "sou ansiosa", agregava instantaneamente essa característica ao meu ser, tornava-a inerente a mim, quase que uma condição minha imutável.

Um pouco depois, passei 10 dias em silêncio e meditação em um retiro no interior de São Paulo, tempo em que senti com ainda maior clareza a função e o poder da palavra. O silêncio dá ainda mais força ao que se diz com as palavras, principalmente quando saem da boca, de dentro do pulmão, do interior do ser. Percebi que a gente banaliza a palavra, diz coisas sem pensar e depois se arrepende, porque lá no fundo existe a consciência de que isso tudo tem um peso.

Ao longo dessa jornada em busca da compreensão da palavra, fui expandindo paulatinamente o conceito de linguagem, abrangendo corpos, espaços e inúmeros meios de se comunicar.

Dado tudo isso, existe algo que me comove em todas as denúncias de machismo e abuso que mulheres sofrem, algo que minha covardia frequentemente não me permite expor, que é o falar sobre o que não se fala. Isso já é lugar comum no feminismo, mas me espanta a coragem com que uns relatos são expostos.

Em minha tragetória, sofri inúmeros assédios e uns abusos sexuais (termo pesado, né?). Nunca expus nenhum deles, raramente falei sobre — mesmo depois de tantos exemplos de exposição de mulheres que se colocaram em um lugar muito delicado para dizer "isso já aconteceu comigo" — e me permiti apenas implorar pra que tudo caísse no esquecimento. E minha última experiência com abuso realmente caiu no esquecimento mental, pude seguir minha vida, até interagi com o abusador como se nada houvesse acontecido. Foi tudo uma maravilha.

Não fosse o fato de que ignorei que há outras linguagens e de que o corpo tem memória, carrega em si reminiscências que não são necessariamente apagadas com o poder da mente. E assim, sem mais nem menos, as memórias voltaram meses depois, de repente, sem aviso nenhum. Não me vi nada além de destruída naquele momento, me senti frágil, covarde. "Eu permiti", eu dizia pra mim mesma, "eu falhei".

Nunca quis expor minhas fragilidades para o mundo, nunca vi isso como meio de sanar minhas questões. Tinha medo de dizer que sofri abuso de tal e tal maneira, que passei por isso e por aquilo e me tornar um corpo portador de medalhas de machismo — "olha o quanto eu sofri! olha essas cicatrizes, dignas de um troféu de ouro". Eu não queria me reduzir a isso. Mas no momento em que aquilo tudo se viu catalizado por um texto que estava lendo sobre mulheres que vão pra casa chorando depois de uma transa, eu desabei, não me contive. Era preciso ser dito, era preciso ser exposto, era preciso se transformar em alguma forma de linguagem e sair de mim pra que outras mulheres também tirassem de si seus pesos, pra que pudéssemos queimar nossas dores em fogueiras de expressões e nos aliviar do fardo.

Porque não foi minha culpa. Já me disseram isso tantas vezes, mas quantas eu realmente consegui dizer pra mim mesma? Quantas vezes realmente olhei pro meu corpo com amor quando pensei no que fizeram com este e me afirmei "não foi minha culpa"?.

As palavras são frágeis. A comunicação verbal é superestimada, colocamos fé no que se diz e ignoramos todas as falhas e dubiedades que carregam consigo. Português, língua rica, milenar, em cuja sopa foram incorporados dialetos africanos, línguas indígenas, há inúmeras maneiras de se construir frases, inúmeras possibilidades de se dizer algo — como podemos falhar? Mas falhamos. O corpo também é frágil e tem suas dubiedades, precisa de seu silêncio e reflexão, precisa de seu tempo pra conseguir formular e colocar pra fora as coisas.

O tempo hoje é outro, exige-se da palavra agilidade, classe, pequenez, clareza, tudo o mais depressa possível, assim como exige-se o mesmo do corpo. Essas questões que traumatizam não podem ser atropeladas e também não mais pode-se permitir trancafiá-las, deixar que fiquem ensimesmadas num canto. É importante voltar-se pra dentro e se dar o que se precisa receber.

Às vezes a gente pensa que esse movimento feminista de denúncias de machismo não vai levar a lugar nenhum, às vezes a gente desacredita no poder de levantar a voz e dizer o que deve ser dito, no poder que a linguagem nos concede — no poder que foi arrancado à força pelas mulheres ao longo dos últimos anos. Agora temos fala.

Fui abusada. Fui assediada. Meu corpo foi feito de objeto pra homens e senti dor, senti tristeza, senti nojo, senti impotência. Não foi minha culpa, eu não permiti, em todas as vezes meu corpo dizia não e isso não pode ser ignorado, não pode ser esquecido, não pode ser relevado. Fica aqui escrito, registrado, pra que seja construída uma nova lembrança corporal de afeto e respeito por todos os corpos femininos, pra que não mais seja carregada pelas mulheres a culpa. E nenhuma (nem uma) dessas experiências me torna menor. E nenhuma (nem uma) dessas experiências te torna menor.

Baya, Femme robe jaune cheveux bleus (Mulher com cabelo azul em um vestido amarelo), 1947. Para pura inspiração feminina.

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