É só jogo de bola

Gabriel Schincariol Cavalcante
Medium Brasil
Published in
12 min readJan 29, 2016

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Camisa 10 é todo dia

Do carro de quem passa pela estrada que leva até Cerquilho, se pegar o retorno, ou até Porto Feliz, para os que seguem toda vida, às segundas, quartas e sextas, duas e vinte, é possível vê-lo no acostamento, de bicicleta. Vestindo chinelo, calção e camiseta azul, uma mochila de atravessado no ombro, vai pedalando até o campo de futebol. Segunda, quarta e sexta, se não chover. Se chove, fica emburrado em casa. Por que, tem terça, quinta, sábado e domingo, por que chover hoje? Às três e trinta é que começa o treino, mas duas e dez já está pronto, chinelo, calção e camiseta, na mochila um meião também azul, caneleira velha e uma chuteira emprestada. São cinquenta minutos até o campo de bicicleta, a pé mais de hora e meia. Segunda, quarta e sexta, pedala disposto. Mora longe com a mãe, Aracy, e o irmão mais novo, Guilherme. Lá é mais barato, bem mais barato, nem sabe quanto. Na verdade, lá nem pode morar, é irregular, já foi fiscal da prefeitura por mais de uma vez avisar; a mãe não conta nada para ele, afinal que que menino de doze anos, que é o que ele tem, o mais novo tem oito, tem que saber desse tipo de problema? Não sabe, pedala sem reclamar cinquenta minutos até chegar no campo de futebol. Segunda, quarta e sexta. Bença, mãe, grita da porta, enquanto a mãe, que trabalha costurando, levanta a cabeça, responde Deus te abençoe, fazendo o sinal da cruz. Daí, sai.
Dura das três e meia até as cinco, o treino. Custa trinta e cinco reais por mês. O pai, Durval, prometeu para o menino que pagaria. Nunca paga. Some, volta vez ou outra com nova promessa. Aracy, porém, faz questão. Guarda trinta e cinco, falta que faz, tira do auxílio do governo. Todo mês, dia dez, manda o menino com o dinheiro para pagar, isso é se dia dez for ou uma segunda, ou uma quarta, ou uma sexta; se não for, manda assim sendo. Joel, dono da escolinha e treinador do time, não é homem de posses, mas é homem do bem, já disse para Dona Aracy que não carecia de pagar, o Lucas pode treinar de graça, por nossa conta, o menino é bom, mas ela fazia questão, e ele aceitava com dor sabendo a falta que faria aquele valor dentro da casinha irregular dos três. Lucas sabia que a mãe não tinha dinheiro, mas não sabia o suficiente para se preocupar, então só pagava todo dia dez ou no próximo treino e corria para o campo.
Começou na lateral, como Cafu, mas caiu para o meio na marcação. Não tinha o vigor do Dunga, jogaram o menino para a criação e ali ficou. Era pequeno para doze anos, mas tinha as pernas rápidas e magricelas. Ligava bem os dois extremos do campo — defesa e ataque. Treinava desde os nove com o professor Joel, conhecia todo mundo do time. Conhecia o time de todo mundo. Ficava sabendo dos resultados e já bolava o dia anterior todo como iria sacanear os perdedores. Menos quando o Corinthians perdia. Aí não sacaneava ninguém, ficava puto se fizessem piada. O pai Durval é palmeirense, mas o menino, com o Corinthians na segunda divisão, apaixonou-se. Quando veio Ronaldo, então, chorou vendo TV, o que rendeu um esporro de Aracy. Desde pequeno, de novo, não de tamanho, gostava da bola. Não mudou com o tempo. Via os jogos fascinado. Logo cedo já sabia quem queria ser: Ronaldo Nazário de Lima. Se perguntassem o que é que aquele menino queria fazer, ele não dizia, não. Respondia o seguinte:
— Eu não quero não, senhor. Eu vou é ser jogador de futebol.
A mãe tinha medo, mas não havia jeito de fazer o menino mudar de ideia. Acostumou. Durval era um imprestável, não podia contar, o que ele achava não importava para Aracy naquele tempo, não importa agora e, por isso, para nós também não há de importar. O menino ganhou do tio, que não era irmão de Aracy mas viu Lucas crescer e ficou tio Gabriel, mesmo, um celular. Era para poder falar com a mãe, mas ficou é para assistir vídeo de futebol. Difícil colocar crédito, mas Aracy fazia um esforço e colocava doze reais pro menino. Era o dia todo procurando coisa nova. Assistia muita coisa do Neymar, do Messi, do Cristiano Ronaldo. Todo mundo assistia, do time. A maioria cortava o cabelo igual a um dos três. Quem tivesse cabelo crespo, optava pelo Neymar, mas tinha os que alisavam para fazer o estilo do português. Lucas não cortou assim, não. Tinha o cabelo lisinho, não ficava em pé de jeito nenhum. Cortava curtinho, quase raspado, deixava Aracy louca. Ele queria mesmo é ser Ronaldo Nazário de Lima, cabelo cascão, cabeça raspada. Crescendo muito, já se incomodava com os fios na testa e pedia para a mãe raspar, em casa, mesmo.

Numa sexta ele entrou correndo em casa, às cinco e quarenta e dois, chegou mais rápido que o comum por causa da euforia, gritando pela mãe. Ô mãe, ô mãe! Que é, menino, pelo amor de Nossa Senhora, disse Aracy enquanto saia do quarto meio atordoada, estava no meio de um cochilo, acompanhada pelo caçula Guilherme. O menino estava lá, plantado na porta, sem segurar o riso.
— Vai ter peneira, mãe.
Peneira é a seleção de novos jogadores pelos times. A chance de mostrar o que sabiam e tentar uma oportunidade nas equipes de base dos times grandes. A mãe perguntou onde, e o menino respondeu meio contrariado que seria no São Paulo. Queria jogar no Corinthians, mas depois tentaria ir para lá. O Joel levaria alguns meninos para a peneira, e ele tinha sido um dos escolhidos. Dona Aracy o abraçou, dizendo que bom, meu filho, que bom. Era tudo que ele queria. E o peito dela apertava num nó sem fim.
É quarenta reais, mãe, pra passagem e pro lanche, disse para Dona Aracy. São Paulo não ficava longe, não, coisa de uma hora e uns poucos minutos de carro, uma hora e trinta e cinco de ônibus. A mãe não respondeu nada, tentou contato com Deus. Não tinha nada, nem um centavo. Como é que ia dizer para o menino que não podia pagar para ele ir fazer a peneira? Certeza que Joel entenderia, daria um jeito, mas não ia pedir, não, isso de jeito nenhum. Só que se não pedisse, o menino não ia. Mandou Lucas para o quarto fazer a lição e ficou sentada na frente da máquina de costura buscando uma solução. Às vezes as coisas se encaixam de modo engraçado, tão logo pensou nele, entrou pela porta o tio Gabriel. Veio ver o menino, dar um oi para Aracy, brincar com Guilherme. Era novo ainda, coisa de nem trinta anos. A mãe dele foi patroa de Aracy quando era moleque e ele sempre manteve um carinho enorme pela moça, hoje senhora, do cabelo preto escorrido, hoje cheio de fio branco. Foi ter com Aracy primeiro, já que a porta do quarto de Lucas estava encostada e Guilherme dormia na sala com o dedão enfiado na boca. Abraçou a senhora e aceitou um copo d’água. Aqui tá tudo indo, né, meu filho, devagar como sempre, contou para ele Dona Aracy, num tom de lamúria e de divertimento que só ela era capaz de unir. Olhou por cima dos ombros de Gabriel para ver se não tinha cabeça de Lucas lá atrás e falou baixinho: tô com um dó de Lucas. O rapaz quis saber o que era e ela contou. Não teria dinheiro para a peneira. Gabriel riu, deixe disso, tia, eu pago para ele. Os parentescos sem sangue envolvido são resumidos em primo, prima, tio e tia. Isso há de ser estudado ainda. Voltando: Dona Aracy protestou, ele já havia dado celular caro, não ficava bem desse jeito. Que faz, então, tia, deixa o menino sem ir para peneira? Ela sabia o que isso faria com o filho. Lucas já havia saído do quarto e parou no canto da porta, tentando ouvir a conversa. Fingiu que não estava lá quando Gabriel levantou e virou para ele.
— Bença, tio!
Correu para dar um abraço e recebeu um cascudinho no cucoroco. São Paulo, hein?, você nunca me enganou, moleque, brincou com o menino. Lucas protestou, aqui é Corinthians!, dando risada. O tio que não era tio puxou a carteira do bolso, abriu, tirou dez, uma de vinte, duas de cinco, contou de novo, colocou na mão do menino e disse:
— Eu sou seu primeiro empresário, tá certo?
Abraçou o tio pela cintura e agradeceu. Dona Aracy se virou para não deixar a lágrima cair em público, era coisa de ser fazer no privado. Conversaram mais um pouquinho, Guilherme veio ter com a família, mas se perdeu na própria imaginação como era comum dele. Então Gabriel se levantou, beijou o rosto de Dona Aracy, pediu bença, fez cafuné na cabeça dos sobrinhos e foi saindo pela porta da frente. Virou-se quando percebeu que estava se esquecendo de uma coisa: boa sorte, moleque. Valeu, tio, respondeu Lucas.
Durval apareceu por lá na segunda-feira, cara lavada e lustrada, até parecia um pai dos bons, pai, mesmo, só que isso para os mais desavisados; até depois de Cerquilho, para os que pegam o retorno, ou Porto Feliz, para os que seguem a vida toda, todo mundo sabe que Durval é mais incômodo que alegria. Aracy virou a cara, perguntou que é que ele havia de estar fazendo por lá, e ele respondeu que queria ver o filho Lucas. Era quase hora do menino chegar do treino, Durval se convidou para entrar e ouviu de Dona Aracy que a rua era a sala de espera, podia ficar por ali, mesmo, fechando a porta atrás de si. Deu nem quinze minutos chegou Lucas pedalando. Até os dez acreditava no pai, fazia festa, subia nos ombros e dava risada; agora, não sabia bem quem era Durval de verdade. Mesmo assim desceu da bicicleta e beijou o rosto do pai, levando dois tapinhas na bochecha. Logo se viu o motivo da visita.
— Peneira, então, moleque? Já era hora.
Ficou sabendo através do pai de outro menino do time de futebol, que esbarrou com ele na cidade. O menino disse que sim, do São Paulo, e ouviu o pai caçoar que não havia de colocar filho no mundo para ser viado, há, há. Geralmente fazia esse tipo de piada com os amigos são paulinos, o Lucas, mas se incomodou de um tanto ao ouvir isso da boca do pai. Parecia que tudo da boca dele incomodava ultimamente. Não respondeu. Aracy abriu a porta e ficou olhando os dois, sem dizer nada. O pai perguntou onde é que ela havia conseguido o dinheiro em voz alta, para que ela também escutasse, devia estar sobrando, afinal, ele disse. Revirando os olhos, a mulher velha e calejada com o gênio estúpido do homem que um dia fora seu marido simplesmente se virou e voltou para sua máquina de costura. Ai, minha Maria Santíssima, tenha piedade de mim que ele nunca vai deixar de ser pai dos meus filhos, mas tira esse encosto da minha vida, pensou com as mãos unidas junto ao peito. Lá fora, Lucas dizia que o tio Gabriel havia pagado, tinha inclusive dado hoje o dinheiro para o professor Joel. Tio o quê, moleque, que ele não é seu tio, reclamou Durval, que nunca gostou de Gabriel, para ele um metido a besta que ficava colocando caraminholas na cabeça de Aracy. O menino só disse: tá. Eu mesmo pagava, não precisava de dinheiro desse unzinho aí, não, continuou o pai, nunca precisei de esmola, você também não. Lucas abaixou a cabeça e retrucou baixinho que tio Gabriel não dava esmola para ele, não, havia dito que seria seu empresário, era um investimento, acreditava no futebol do garoto. Isso deixou Durval foi doido, empresário um cacete, eu vou é te arrumar um empresário, já tava vendo isso há tempos, Gabriel é empresário porra nenhuma, eu vou te arrumar um empresário bom, amigo meu, já tá tudo acertado, viu?, vai com você até para peneira, é amigo do pessoal lá do São Paulo, ele que colocou o Segundinho no Palmeiras, tá ouvindo?, Gabriel empresário, porra nenhuma.
Segundinho era dois anos mais velho que Lucas, treinava no mesmo campo, no time do professor Joel. Tinha conseguido ficar na base do Palmeiras no ano passado, continuava lá até agora. Mas não tinha lembrança nenhuma da cabeça do Lucas de empresário com ele, professor Joel nunca tinha falado nada do assunto. Não conseguiu deixar de se animar, porém, com a história do pai. Será que era verdade? Se fosse verdade. Se fosse, ele talvez conseguisse mesmo um lugar no São Paulo, era bom, chutava com as duas pernas, pensava antes de jogar, uma chance boa e ele ia longe, ia sim. Sair do São Paulo, ir para o Corinthians, ganhar a Libertadores, o Mundial, o Palmeiras não tem nenhum, sacaneava os amigos e o pai até os onze anos, depois perdeu a graça, aí saia do Brasil, jogava na Inter, igual Ronaldo Nazário de Lima, ficava rico, ganhava copa. Estava tudo pronto na cabeça do menino. Não era por maldade que não pensava na mãe, no irmão, no tio que não era tio; era só porque tinha apenas doze anos, que é que sabia além de bater colocado na bola e guardar na caixa, inalcançável para o goleiro?
O pai foi embora prometendo que estaria lá na quarta com o empresário que tinha arrumado, quarta era o dia da peneira, Lucas faltaria na escola, contra a vontade de Dona Aracy, porque começava cedo e o ônibus saía logo as seis da manhã. Seis já tô lá, moleque, disse Durval, despedindo-se e nem se lembrando do outro filho que não tinha visto. Não é que decidiu não ver, ele não lembrou mesmo. O menino entrou para casa e decidiu não contar para a mãe a história do empresário, e a noite não conseguiu deixar de pensar e se fosse verdade, e se fosse? Pensou tanto que não dormiu antes das três. Azar o dele, acordou no chacoalhão de Dona Aracy que já era hora de ir para escola, o ônibus da prefeitura ia passar em cinco minutos.

Cinco e meia da manhã já estava no campo, de onde ia sair o ônibus. Não foi de bicicleta, dessa vez. Tio Gabriel levou de carro. Levou também Guilherme e Dona Aracy, desejar boa sorte. Foi o primeiro a chegar. Depois veio Juninho, centroavante, Mauricio, zagueiro — tinha quase um e setenta e cinco de altura e mais de oitenta de peso -, Renan, goleiro, Paulo, Pedrinho, Zezé, Arão, um por um, até estarem os trinta escolhidos do professor Joel. Conversavam engraçado, imitavam os famosos. E aí, fera, resenhar, toca pro pai. Riam. Era de nervoso. Cinco para as seis, o ônibus já estava lá, Joel falava com a mãe de um dos meninos, Durval não tinha aparecido. Nem Gabriel nem Aracy sabiam o que ele havia prometido ao menino, por isso ficaram perguntando que é, que é, Lucas, enquanto o garoto olhava para o portão que dava acesso ao campo esperando ver alguém entrar. Seis horas. Ninguém entrou. O professor Joel pediu para os chamados da lista irem entrando no ônibus. Arão, Bernardo, Cesar, por ordem alfabética. Quando chamaram Leandro, o próximo era Lucas e a mãe abraçou o filho, deu um beijo no topo da cabeça, esmagou o moleque com os peitos. O tio Gabriel passou a mão no cabelo do menino. Guilherme disse tchau, tato, tímido como sempre, com uma mão para trás e a outra na boca. Lucas. Chamou. O menino deu tchau para a mãe, para o tio, para o irmão. Olhou de novo para o portão, e nada. Boa sorte, fera, ouviu o tio brincar e forçou um riso. Subiu no ônibus de cabeça baixa e sentou olhando pela janela. A vontade era de chorar. Não sabia bem o porquê, não era bem tristeza, mas subia pela garganta e queria sair pelos olhos. Só tinha doze anos, como é que ia entender? O choro era de decepção.

— Então? — perguntou a mãe quando o menino desceu do ônibus na volta.
Só escolheram dois meninos do time do professor Joel. Maurício, pelo tamanho, e Juninho, que era um cacete de bom e tinha nome de jogador. Ele não respondeu logo de cara, só abraçou Dona Aracy. Ela sabia o que significava. Disse para o filho não ficar triste, não, isso é assim mesmo, você vai conseguir pela graça de Deus, meu filho, e ela acreditava em cada palavra. O menino acreditou, também. Sorriu para a mãe. Saudou o tio com um cumprimento de mão elaborado que terminava com um estalo dos dedos. Guilherme estava na escola, não veio. Foi quieto até em casa.
Ficou amuado o resto da noite de quarta e o dia todo de quinta. A mãe já tinha começado a se preocupar. Mas foi dar sexta na hora do treino e o menino vestiu o calção, a camiseta e o chinelo. Colocou a chuteira emprestada na mochila junto com o meião e a caneleira velha. Pediu bença para a mãe, ouviu Deus te abençoe, montou na bicicleta e saiu de casa. Eram duas e dez e até o campo são cinquenta minutos pedalando. E, afinal, para onde mais além do campo ele iria? É a casa dele. Ele é um jogador de futebol.

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