A dois passos do inferno

Rafael Barbosa
Medium Brasil
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5 min readFeb 12, 2019

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Léo já não se incomodava com aquela presença ao seu lado 24 horas por dia.

Começou como um peso na consciência. Um fardo tão pesado que todos ao seu redor perceberam como ele se tornou cada vez mais corcunda.

Ombros caídos, olhando sempre para baixo, Léo definhava aos poucos.

Até que um dia aconteceu.

Léo acordou e sentiu a consciência leve. Nem se lembrava mais como era a vida sem aquele peso todo sobre seu corpo.

Quase arriscou um sorriso, mas não quis estragar o momento.

Com o quarto completamente escuro, levantou-se sem dificuldade pela primeira vez em meses.

Os ombros antes curvados, agora estavam no lugar certo, na mesma linha do pescoço. O olhar, que insistia em encarar apenas o chão, agora parecia querer explorar tudo o que havia ao redor.

Espreguiçou-se esticando os braços e bocejando enquanto olhava para uma caixinha na prateleira à sua frente.

A barriga roncou depois de meses. Parece que até o apetite havia retornado.

Sentiu que a vida voltava ao normal depois de muito tempo.

Era muito provável que o dia estivesse lindo.

Puxou a cortina, o blacaute e abriu a janela. Respirou o ar puro da manhã sentindo o oxigênio entrar pelas narinas, inflando o pulmão e aumentando os batimentos cardíacos de leve.

Que belo dia para se estar vivo.

Virou-se para sair do quarto e ficou completamente paralisado.

Uma sombra pairava na porta do quarto.

A forma era humanoide: dois braços, duas pernas, um tronco e uma cabeça, mas não havia rosto.

Apenas escuridão em formato humano.

Não tinha olhos, mas Léo sabia que o encarava.

O peso que antes estava em sua consciência pareceu descer direto para o estômago, que não foi forte o suficiente para segurar. Acabou nos intestinos, transformando o que havia ali dentro em água que escorreu pelas suas pernas.

A forma não se movia.

Ficou ali parada, como um manequim de loja de departamentos.

O choque inicial havia passado.

Léo achou que morreria. Que aquela criatura estava ali para finalmente puni-lo pelo que havia feito. Mas ela não fez nada. Apenas ficou parada, encarando-o.

Precisava se mover. Limpar o quarto e a si mesmo.

Passo por passo, foi em direção à porta esperando que a criatura o atacasse, mas ela continuou parada no mesmo lugar.

Quando Léo passou ao seu lado, ela moveu a cabeça em sua direção.

Como um rosto sem olhos poderia encarar alguém tão profundamente como aquela criatura?

Léo olhou mais uma vez para a caixinha na prateleira e sentiu o rosto arder de vergonha e medo. De arrependimento e tristeza. Mas isso não limparia o chão do quarto que estava todo cagado.

Precisava seguir em frente.

Passou pela criatura e foi em direção à área de serviço.

Quando sua perna direita estava completando o terceiro passo, a criatura se moveu.

Léo congelou novamente.

O movimento não era natural. Foi como se uma estátua de repente ganhasse vida. Cada articulação movendo-se pela primeira vez depois de séculos parada na mesma posição.

Não houve nenhum barulho, mas podia jurar que ouviu os estalos.

A criatura virou-se também em direção à área de serviço, posicionando-se exatamente dois passos atrás do rapaz que agora tinha certeza absoluta que seria castigado.

Porém, mais uma vez, a criatura não fez nada. Apenas o encarava.

Léo esperou mais ou menos cinco minutos e, ao perceber que a criatura não se moveria, continuou em direção à área.

A cada dois passos de Léo, a criatura dava um passo.

Ele percebeu que a criatura apenas o seguia. Nada além disso.

Pegou o pano de chão, o balde com água e o produto de limpeza.

Esquecera-se completamente que não era só o chão do quarto que estava cagado, mas isso não importava. Queria limpar tudo o quanto antes.

Talvez a criatura desaparecesse logo em seguida.

O processo se repetiu durante a volta para o quarto.

A cada dois passos de Léo, a criatura dava um passo.

Uma coisa é ter a consciência pesada. Outra é ter a impressão de que sua consciência ganhara vida própria e agora te encarava de volta. Não era pesado. Era sufocante.

Vinte e cinco minutos depois o chão estava limpo e a aparição continuava ali, observando Léo através daquele rosto sem face.

Após guardar o material de limpeza, Léo percebeu que já passava das oito e meia. Estava completamente atrasado para o trabalho.

Pensou em faltar, mas o simples ato de pensar nisso deu-o a impressão de ter irritado a sombra.

Não havia expressão, mas seus sentimentos eram quase físicos. Léo sabia que ela o julgava. Mais que isso, ela o odiava.

Correu para o banheiro com a criatura sempre a dois passos de distância.

Foi o banho mais desconfortável de sua vida.

O boxe tinha exatamente três passos de distância de uma parede a outra. O suficiente para compartilhar o espaço com aquela assombração.

Léo já não sabia o que era: uma criatura? Um fantasma? Uma aparição? Um vulto?

Todas as opções pareciam se encaixar muito bem naquele ser. Só sabia que ela não o deixaria em paz.

Durante o trajeto para o trabalho percebeu que ninguém mais via a sombra, o que o deixou ainda mais assustado.

Mas apesar da presença constante, sempre a dois passos de distância, ela não fazia outra coisa a não ser segui-lo.

Aquele foi um dia difícil e a noite prometia ser pior.

Seria impossível para qualquer um dormir com uma criatura daquelas fazendo vigília ao seu lado.

Passou a noite em claro, com todas as luzes do apartamento acesas.

No dia seguinte a situação foi a mesma. E no terceiro também.

O primeiro mês foi difícil, mas estava se acostumando com essa rotina.

Porém, no fundo ele sabia que aquela criatura não o deixaria em paz.

O peso na consciência ganhou forma.

Ficou tão pesado que precisou de um corpo inteiro para sustentá-lo.

Dia após dia, mês após mês, a criatura estava sempre dois passos atrás de Léo.

Aqueles cinco minutos de alegria que sentiu ao acordar no dia em que descobriu a presença já não faziam parte da sua memória.

A criatura era a única coisa em que conseguia pensar.

Quando olhava para a caixinha de presentes em sua prateleira, sentia o ar ficar mais quente e pesado.

Tinha a impressão de ser o ódio que a criatura sentia por ele.

Já havia dois anos que a criatura entrara na sua vida e tornara-se parte de sua rotina.

Não conseguia fechar os olhos por mais de uma hora sem acordar com o coração acelerado e a boca seca.

A sombra se tornara sua sombra.

Deitado, encarava a caixinha e sentia a temperatura do quarto subir.

Levantou-se e foi em direção à prateleira. A temperatura do quarto parecia marcar 45ºC em pleno inverno.

Pegou a caixinha e a abriu.

Viu as fotos e os dentinhos de leite cuidadosamente embalados à vácuo. A pequena calcinha com estampas de arco-íris permanecia como o dia em que a conseguira.

A temperatura do quarto pareceu subir dez graus em apenas um segundo.

O coração de Léo acelerou ao sentir o calor em sua nuca, a garganta secou e pela primeira vez em mais de dois anos a criatura fez algo de diferente: deu um passo a mais.

Léo soube e aceitou naquele exato momento que o próximo passo seria o último.

Dele e da criatura.

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Rafael Barbosa
Medium Brasil

Eu escrevo. Às vezes sai algo legal. Insta: @rafabarbosa