A imanência do deserto

Breve análise de “El Manto de Hiel” e “A Oeste do Fim do Mundo”

Matheus Massias
7 min readJun 1, 2014

Essa semana, desde domingo (25/05), compareci ao FAM 2014 (Festival Audiovisual Mercosul), evento promovido de forma generosa ao público em geral, com sua programação completamente gratuita e abarcando vários certames no que rege a questão audiovisual, desde programação infantil para as escolas das região (algumas públicas em que as crianças não têm acesso ao cinema) levar seus alunos, passando por debates e pelas mostras de curtas e longas produzidos no Brasil e nos demais países da América Latina. Muito bem organizado e divulgado, fiquei maravilhado em poder assistir curtas interessantíssimos, assim como me assustei em ver coisas inesperadamente ridículas.

A relevância do FAM está em trazer para as telas a produção latino-americano e seria de extrema necessidade o trabalho colaborativo com instituições públicas de incentivo a cultura para maior distribuição continental dos filmes. Raramente muitos deles chegarão ao norte e nordeste do país, que é uma pena; os filmes que vi mostram, de certa forma, o diálogo que se tem entre o Brasil e os países de fronteira (Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Venezuela, etc.), um diálogo que talvez só seja visível por causa da proximidade geográfica do sul do país em relação a esses países, mas que mostram conflitos e necessidades humanas inerentes a todos e quaisquer seres humanos, inclusive pertinentes aos contextos políticos e ideológicos que temos no Brasil.

Gostaria de discorrer sobre os curtas que vi e admirei, mas reduzirei meu texto aos dois filmes que mencionei no título. No entanto, se puderem, procurem e assistam: “Tempo Adagio” (curta de uma riqueza poética visual incrível, da Venezuela, se bem me lembro), “Acalanto” (tocante, contado com repetições de narração e planos que acrescentam para a beleza dele), “Vaqueiros Encantados” (mini-doc que mostra a vida e a cultura dos vaqueiros do Marajó/PA), “Sinal Fantasma” (trabalho de conclusão de curso que, para mim, foi uma mistura de video game, surrealismo das pinturas de Dalí e Magritte e mistério, com uma forma e natureza bem assombrantes), “Eu Sou de Lá” (mini-doc que mostra o quotidiano, os problemas e as vitórias de estudantes africanos na UFSC), “Noite Clara” (tem o Gustavo Jahn de “O Som ao Redor”, o curta explora a questão da fotografia, marcado por doses de surrealismo também), “Jairboris” (curta de SP, se me recordo bem, ótimo no que tange os limites de documentário e ficção, alternando a narração de Jair (? Boris?) com uma poesia industrial linda, a partir de imagens de uma fábrica e maquinários, e humor futebolístico), “Des(pecho)trucción” (curta argentino, eu acho, divertido e criativo), “A Navalha do Avô” (terno e bem narrado, e É O JEAN-CLAUDE BERNARDET ATUANDO ALI?), e “Diários Daltônicos” (apesar da ridícula aparição de estrelismo da diretora fazendo atrasar a exibição dos curtas, “Diários Daltônicos” foi bom, bem editado, bem pesquisado, nos dando uma outra cor sobre a vida dos daltônicos). Esses, entre tantos outros, foram os curtas que mais gostei, uns mais, outros menos.

Durante essa semana de FAM, muitos dos filmes exibidos tinham vários aspectos em comum, mas a questão da imanência do deserto me chamou a atenção. O conceito de imanência já foi abordado em muitas áreas do conhecimento, desde a filosofia à religião; vou adotar a ideia de imanência como um fator determinante para a condição humana. O deserto, como fator natural e ambiente, é uma paisagem recorrente em muitos filmes, principalmente no cinema norte-americano, como rapidamente me veio a cabeça “Onde os Fracos Não Têm Vez” (a fronteira Tex-Mex), “Sangue Negro”, “Paris, Texas” (mesmo sendo do diretor alemão Win Wenders), entre tantos outros e que, de certa forma, também tem algo chamativo na questão da imanência.

“El Manto de Hiel”, filme argentino, de Gustavo Corrado, começa com uma curiosa citação de “A Divina Comédia” que permeia o filme em seu decorrer. A atmosfera do filme é toda voltada para o deserto, o deserto é o começo e o fim de uma história. O espectador é apresentado ao protagonista que, com o carro quebrado, traz consigo uma maleta e procura ajuda. Não temos informação alguma de seu passado, apenas que ele parece um (jovem) homem rico, por causa do seu modo de vestir e seu carro. Em um vilarejo, cercado por escombros, no meio do nada, no meio do deserto, o protagonista encontra abrigo. Curiosamente ele é recebido com um tapa, de uma mulher que igualmente não sabemos quem é. A partir desse momento o filme é revertido de acontecimentos bizarros, os habitantes daquele lugar são uma mistura da família de “O Massacre da Serra Elétrica” com os dois jovens de “Funny Games” e através de jogos mentais e provocações pelas pessoas daquele lugar, o protagonista se vê num beco sem saída e, de fato, o deserto não parece ter saída.

Os mecânicos dizem que a ajuda para o conserto do carro chega amanhã, um dos homens lhe oferece misteriosamente um quarto para se hospedar, todos ali são estranhamente solícitos. A direção de arte do filme fez um trabalho impecável, o cenário onde tem o piano e o bar, que é decorado com várias coisas que mal me lembro, dentre elas animais empalhados, é uma das coisas que fundem o interior do filme com seu exterior, o deserto. O trabalho de direção de Corrado também é magnífico, assim com a desenvoltura dos atores que provocam um terror com teor de humor no homem que ali havia chegado. “El Manto de Hiel” tem toques de surrealismo também, hora ou outra lembrei de “Um Cão Andaluz”, e seus flashfowards de pensamento sempre enganam e assustam de forma eficiente.

O deserto é fator condicionante em vários momentos do filme, ou praticamente todos. O rapaz da maleta para naquele lugar apenas para consertar seu carro, no dia seguinte pretende ir embora; no entanto, o deserto funciona como uma força, sempre puxando e arrastando alguém para ele. Uma fuga é inevitável. Os habitantes dali, aparentemente, vivem há anos no lugar, e o fator imanência reflete do deserto para eles, funcionando como um ciclo para quem quer que se aproxime dali. Um momento-chave no filme é quando planejando fugir, o protagonista informa o pianista sobre sua invertida; o pianista, empolgado com a situação, decide acompanhá-lo. Algo dá errado, mas no dia seguinte, o pianista foge com um carrinho pelos trilhos do deserto, mas tempos depois é encontrado morto, baleado.

O mistério que “El Manto de Hiel” traz é eficiente, o deserto é um agente externo, porém sempre penetrante. É, sem dúvida, um dos melhores filmes de 2014 que já assisti.

Por outro lado, mas ainda com a questão da imanência do deserto, “A Oeste do Fim do Mundo” é um filme que me agrada pois trata de um assunto sem abordá-lo diretamente, o que torna seu progresso mais difícil para quem o realiza, assim como pode parecer vago ou um pouco chato para quem vê. O filme é um binômio de drama pós-guerra (Guerra das Malvinas, entre argentinos e ingleses) e abuso sexual, que converge duas de suas personagens. O deserto é presente do começo ao fim, seja nos momentos de road movie com Ana (a brasileira Fernanda Moro) ou com León (César Troncoso), que é um homem amargo e solitário, dono de um posto de gasolina no meio do nada, no meio do deserto. Ana, uma andarilha, não parece ter destino (embora tenha), está vulnerável a estrada e caronas de estranhos; na boleia de um caminhoneiro que lhe abriga, ela descansa, ele passa os dedos sutilmente nas pernas da moça que, subitamente, sai de lá: ele pede desculpas, mas para a moça aquilo não teria volta, nem que ela tivesse que congelar no deserto à noite.

Quando os caminhos de Ana e León se cruzam, o deserto é um elemento característico entre os dois, e parece completar um ponto, formando um triângulo, se é amoroso ou não só o filme pode contar. A direção do brasileiro Paulo Nascimento, que também escreveu o roteiro, é interessante, as repetições de narração são fundamentais para o desenvolvimento da história: os planos feitos ao redor da porta são fantásticos, sempre revelando a separação que (não) há entre a casa e a rua, o deserto. Os conflitos entre Ana e León são explorados de forma eficaz e revelam quem são aquelas pessoas por trás da aspereza desértica que suas vidas carregam. É interessante notar o comportamente daqueles que moram naquela região, são pessoas que pouco falam, são metamorfoses da calmaria do deserto. Todavia, o contrário disso é Ana e seu jeito, que incomoda bastante León, e até mesmo Silas.

Silas (Nélson Diniz) é um personagem importante. Ele aparece praticamente todo dia para ver León, seja para conferir se está tudo certo, se ele precisa de algo ou se ele conseguiu consertar sua moto (uma Harley-Davidson, que por sinal patrocinou o filme), ou até mesmo para sacanear o amigo, que não sabe cozinhar ou preparar o mate. É de Silas que escutamos uma espécie de aviso, é ele que informa a garota sobre a imanência do deserto, pois ela vai ficando, ficando, ficando cada vez mais dias ali. Ainda é difícil para ela ir embora, caronas são sinônimos de perigo.

“A Oeste do Fim do Mundo” é o retrato do conflito de pessoas, sejam com elas mesmas e seus passados, ou delas com seus familiares e/ou pessoas próximas. No filme, várias imagens do deserto, montanhas, etc. ilustram a história, como passagens de tempo ou apenas para complementá-la, não que funcione como um “jabá” (como o cara do meu lado comentou), mas para ratificar o poder imanente do deserto.

Florianópolis, 31 de maio de 2014

M. B. Massias

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