A teoria do escritor deboísta

Sergio Trentini
Medium Brasil
Published in
4 min readOct 19, 2015
Hemingway tranquilão, numa boa.

Acredite naquilo que quiser. Seleção natural, origem do pó estelar, ou mesmo em deuses que, após serem escolhidos a dedo, traçam rotas e linhas para seus fiéis. Tanto faz. Estamos presos a um universo infinito e apenas recentemente pulamos o quinto ou sexto muro do pátio cósmico. Isso tudo em uma escala inimaginável. E como não consigo entender (ainda que não esteja suado por tentar) o porquê de tudo isso, resta observar como acontecem todos os movimentos externos e forças disruptivas que acabam voltadas para nós mesmos durante o ato de escrever.

Há quem diga que escrever é abraçar o que mais valorizamos no mundo. Isso é muito otimista, afinal escritores são criaturas sorumbáticas, solitárias e amarguradas (mas muito inteligentes). Seres que falam das imperfeições do outro para entender as próprias. Choram cada palavra. Arrã. Vai vendo. É importante saber que há tal romantização envolvida, mas quanto antes tu conseguir expurgá-la, melhor. Se durar para sempre, tudo bem também, é uma vertente passível de convivência.

Há outro clichê: o de conversar consigo mesmo. Escrever não é conversar consigo. É um exercício solitário, sim, mas a página em branco do seu editor de texto não é seu terapeuta. Ainda que a fatura do cartão de crédito acuse a parcela mensal da prestação do computador, você não precisa encarar esse valor como passível de recompensa através de consultas. A desculpa da conversa consigo é massagem no ego. O que carrega certa semelhança com escrever sobre escrever.

Há inúmeras pessoas para te dizer como escrever. Artigos on writing são como guitarristas: têm muitos. Agora, achar um bom baixista ou baterista é o problema. E nessas dicas de percussão que muitas vezes precisamos nos amparar. É importante buscar identificações com autores, mas identificar o porquê da necessidade de escrever nem sempre é tão útil ao ato em si. Não me entenda tão depressa; respeitar ritmos e hábitos também pode ser uma furada.

Escreva por escrever. Escreva sobre qualquer coisa. Escreva sobre a falta de ideias. Escreva!

Dicas repetidas e consequencialistas. Uma hora ou outra elas acabam servindo, sim. Podemos elaborar alguns bons textos de metalinguagem a partir disso, e sai coisa ruim demais disso, é fácil achar. Ainda assim, é preciso abraçar algum meio-termo. Não se levar tão a sério, aceitar os fluxos e explosões de criatividade. Tal teoria do escritor deboísta talvez seja infundada. Afinal, sim, escrever é um trabalho, e você vai sempre precisar escrever muito mais do que imaginava para alcançar um bom produto final. Entretanto, quantos de nós já não tivemos expedientes das 8h às 18h em que usávamos toda nossa criatividade para procrastinar. Por isso, sinto receio com tantos títulos que começam com “o que eu aprendi quando/com”

Dia desses vi esse vídeo do Daniel Galera falando sobre como escreveu o Barba Ensopada de Sangue: explosões de criatividade.

Ponto que eleva o processo de escrita ao que acontece dentro da cabeça do escritor, todos os dias, todo o tempo. Dica primordial para quem tem outros trabalhos e precisa entender que o mercado não permite que você fique em casa todo o tempo, sentado e escrevendo. Criativo e operante. Então, enquanto está na fila do supermercado, cruzando por pessoas na calçada, recolhendo o lixo do seu apartamento, esperando o ônibus que virá lotado (e assim por diante), você pode estar pensando no rascunho de seu último conto.

Eu escrevo para a vida (que fofo). E apesar de ver alguns motivos claros para isso, muitas vezes é preciso se amparar no questionamento invertido: por que não?

Por que não escrever?

Talvez suas ideias não valham o tanto que você pensa, mas é preciso respeitar que a pluralidade de visões cria unidades e momentos literários únicos. Apesar de não guardar o nome dos quase cento e vinte e quatro livros que, vistos de certa distância, como conjunto, não faziam sentido na estante do meu pai; lembro que o velho se interessava por Platão e MS-DOS/linhas de programação. Além de alguns romances de quinta categoria em que o nome do personagem principal era invariavelmente Joseph ou John ou coisa assim. Depois, de Edgar Allan Poe à Garcia Marquez. Favoritos. Luis Fernando Verissimo, Vonnegut, e outros.

Ele gostava disso. Eu não tinha a opção de gostar, apenas me interessava pela leitura e cresci ao redor de todos eles. De alguma maneira, até os treze enquanto lia um pouco de tudo, construí uma subjetividade que culminaria na paixão pela escrita. O que não é tão errado quanto parece. Tenho respeito por essa subjetividade. Escrever é um processo individual. E estamos nesse pós-modernismo desenfreado em que moldamos quem somos e nossos valores a cada dia, a cada vinte minutos. Para mim, precisamos abraçar, meio de lado, nossos egos. Respeitar nossas próprias interpretações.

De alguma forma, a dica de número 5 nesse texto do Kurt Vonnegut traduzido por mim para o homoliteratus, fala algo parecido. Segue:

Seu estilo de escrita acaba repetindo o discurso que você ouviu quando era criança, adolescente, ontem na padaria. Inglês foi a terceira língua do romancista Joseph Conrad, e muito do que parece picante em seu uso do inglês foi, sem dúvida, colorido por sua primeira língua, o polonês. Sortudo é o escritor que cresceu na Irlanda, pois o inglês de lá é tão divertido e musical. Eu mesmo cresci em Indianápolis, onde a fala comum soa como uma serra cortando estanho galvanizado, e emprega um vocabulário tão sem adornos como uma chave inglesa.

Acontece que eu confio na maior parte da minha própria escrita, e outros parecem confiar mais quando pareço mais como uma pessoa de Indianápolis, que é o que eu sou. Quais são as alternativas que eu tenho? Sem dúvida você foi pressionado por professores que te ensinaram a escrever como os ingleses de um ou mais séculos atrás.

É isso. E qualquer coisa podemos nos agarrar no esoterismo e nas fases da lua para justificar nossos bloqueios e limitações. De boa. Ainda assim, persevere.

--

--