Acho que estou enlouquecendo

Rafael Barbosa
Medium Brasil
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4 min readJan 25, 2019

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Acho que estou enlouquecendo.

Sinto o calor do sangue fresco tomando conta das minhas mãos e do meu rosto.

Uma gota percorre o caminho entre o nariz e meu lábio superior, entrando de forma sorrateira pela minha boca.

Ah, o gosto do sangue. Doce, agradável.

Acordo mais uma vez com aquela sensação estranha.

Mais um sonho tão real que chego a sentir o gosto de sangue na boca.

Cansaço.

Não me lembro de ter me levantado uma vez sequer durante a noite, mas meu corpo não parece descansado.

Sinto como se tivesse participado de uma noite agitada, mas tenho certeza que fiquei por aqui o tempo todo.

Acho que estou enlouquecendo.

Vejo algumas roupas no varal.

É estranho, pois não me lembro de tê-las lavado ontem.

Ainda estão úmidas. Não é a primeira vez que isso acontece, mas nos últimos meses tem acontecido com mais frequência.

Na televisão o noticiário fala sobre mais um garoto desaparecido.

Sinto um leve incômodo no estômago.

Preciso de um café forte.

Estou atrasado para o trabalho. Acho melhor me apressar.

No caminho passo pela cafeteria.

Um expresso, por favor, digo ao atendente.

Ele nem pergunta mais o meu nome, já decorou.

Enquanto espero ser servido, vejo-o entrando.

Meus batimentos cardíacos aumentam gradativamente.

O cabelo curto, o tom de pele e o estilo de roupa.

Ele pede um cappuccino com chocolate.

Usa um perfume doce.

Estou a 5 metros de distância, mas consigo sentir o cheiro. É agradável. É bom.

O cheiro me excita e, ao mesmo tempo, sinto uma raiva insuportável.

Sem o menor motivo, me imagino torturando esse garoto de todas as formas possíveis.

Acho que estou enlouquecendo.

Não tive nenhum sonho essa noite e acordei descansado.

Recolho as roupas que estavam no varal e tomo o meu banho.

Tenho que sair, mas antes preciso de um café.

O expresso de sempre.

Tenho a impressão de que meu dia só começa de verdade após sentir o líquido quente descendo pela minha garganta.

Enquanto aprecio o café, o garoto do dia anterior entra novamente na cafeteria.

Sinto o perfume de longe e novamente me exito.

Sinto a raiva. Uma raiva inexplicável.

Tenho vontade de perfurar cada centímetro do seu corpo com canivete, devagar e cirurgicamente.

Tomo um último gole de café e saio.

As noites seguintes passam sem que nada de anormal aconteça.

Nenhum pesadelo.

Os dias também foram iguais, principalmente na cafeteria.

O mesmo garoto e seu perfume misturado com o aroma de cappuccino de chocolate.

Percebo que ele chega ao lugar sempre no mesmo horário.

Toma o seu café enquanto lê um livro.

Nessa semana ele terminou de ler Cem Anos de Solidão e iniciou Verônica Decide Morrer.

Acessa seu smartphone com frequência. Tira algumas fotos da sua xícara. Parece gostar do resultado.

Em vários momentos os nossos olhares se cruzam.

Ao mesmo tempo, aquela raiva incontrolável e a vontade enorme de fazê-lo sofrer.

Não entendo porque sinto essas coisas, mas algo começa a crescer dentro de mim.

É inevitável.

Parece tomar conta de cada parte do meu corpo.

Um gosto amargo invade a minha boca.

Sinto as minhas mãos tremerem e começo a suar.

Algo quer sair.

Precisa de liberdade e não consigo evitar.

Sinto que estou perdendo o controle.

Raiva.

Fúria.

Tenho um apagão.

Acho que estou enlouquecendo.

Acordo com dores.

Os pesadelos voltaram.

Sonhei com o garoto da cafeteria e não foi um sonho bom.

Ainda escuto os gritos e o gosto do sangue.

Estão recentes em minha memória e acho estranho sentir esse sabor.

Não era nada parecido com o aroma do perfume que ele usava.

Suor, sangue e aquele aroma doce.

O sonho pareceu tão real.

Até mesmo a dificuldade para realizar um corte do esterno até e ventre parecia real.

A última coisa a qual me recordo do sonho é o seu olhar suplicando para que eu terminasse logo.

As mãos já estavam sem dedos e todos os dentes haviam sido extraídos.

O olhar era triste, como se tivesse acabado de ler um romance e percebesse que nada daquilo aconteceria em sua vida.

As piscadas se tornaram mais lentas, até que ele simplesmente fechou os olhos.

Foi tudo tão real.

Acho que estou enlouquecendo.

Me levanto e vejo roupas secando no varal.

Pego minha toalha e vou para o banheiro.

Preciso de um café.

Um expresso, diz a garçonete e confirmo com a cabeça.

Sento-me em uma das mesas e acesso meu e-mail pelo celular.

O garoto com o perfume agradável não passa para tomar o seu cappuccino.

Nem na semana seguinte.

Me pergunto o que aconteceu, até que vejo a sua foto no noticiário.

Mais um garoto desaparecido.

Acho que estou enlouquecendo.

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Rafael Barbosa
Medium Brasil

Eu escrevo. Às vezes sai algo legal. Insta: @rafabarbosa