agradável jornada

esther lourenço
Medium Brasil
Published in
6 min readDec 5, 2018
buscando

Este ano foi foda. Foi de longe o ano mais difícil da minha vida, o ano em que eu mais enfrentei perguntas que pareciam cada vez mais sem respostas, o ano em que fiquei sem-teto e desempregada num país estrangeiro, um ano em que meu emocional passou por reviravoltas e epopeias absurdas e, por fim, o ano em que eu mais me senti sozinha.

E acredito que quando se passa por tantos traumas um seguido do outro, como eu passei, é inevitável não sentir medo. A questão é que eu não costumava sentir medo, então a própria experiência de sentir medo já era em si meio amendrontadora.

Eu não queria deixar este texto extremamente pessoal, mas acho que vai ser inevitável, pra que as pontas dele se unam de forma mais clara.

No começo deste ano, eu me mudei pra Hamburgo (Alemanha) para iniciar um programa de Aupair com uma família alemã. Eu tinha acabado de concluir meu bacharelado e fui de mala e cuia para ver se finalmente me tornaria fluente em Alemão, depois de tantas tentativas de estudo ao longo da vida. A decisão da vinda e o processo foram relativamente rápidos e, em meio a um namoro conturbado, acabei seguindo com a escolha e desembarquei na cidade no primeiro dia de Março. Ao longo dos meses, o que era a expectativa de um ano tranquilo interagindo com crianças, fazendo novos amigos e planejando meu futuro, acabou se tornando um pesadelo com ausência de privacidade e abuso moral dentro do ambiente com a família. No quarto mês, eu estava sem conseguir dormir e doente, de tão exausta que estava com a minha realidade. Ao mesmo tempo, o pai do meu então namorado foi diagnosticado com câncer em estágio bastante avançado, e no final das contas ninguém conseguia dar suporte pra ninguém e, no desespero da situação, a gente acabou se afundando em profundidades abissais.

Enfim tomei coragem, com extremo suporte dos meus pais, e fui conversar com a mãe da família para encerrar o contrato e, como constava neste, partir depois de duas semanas.

Ela me expulsou da casa de imediato e não me pagou o que eu tinha trabalhado até então (ainda me disse que eu lhe devia dinheiro, me ameaçando, ao longo de um discurso que pode tranquilamente ser classificado como assédio moral). Então me vi de um dia pro outro sem-teto e desempregada em um país estrangeiro.

Tempo depois, o relacionamento acabou inevitavelmente ruindo de maneira estrondosa e nociva, levando consigo o pouco que restava da minha auto-estima depois de tantos dias ruins. Acabou que a vida realmente dá voltas e eu consegui uma família em Berlim, a cidade em que eu sempre sonhei em morar (sempre mesmo, desde criança). A família e o trabalho acabaram sendo muito melhores do que eu poderia sonhar, eu recebia amor, estava tudo fluindo bem, exceto pelo fato de que me percebi sequelada. Das vezes em que olhava de relance pro espelho, reconhecia muito pouco do que via. Eu fugi. De tudo, de relações sociais, de criações, de uma alimentação minimamente decente.

Ainda fujo, na realidade, mas gosto de ver o momento presente como um início do ponto de virada, até porque o próprio fato de estar escrevendo este texto já demonstra em si uma coragem de enfrentar medos de me expor de alguma forma. É inegável que fiquei deprimida e me deparei com pontos baixos meus, mas a depressão em si eu já havia encarado anos antes. O modo como o medo se mostrou pra mim, no entanto, isso era uma face minha que eu nunca havia visto. Logo eu, que já meti o louco tantas vezes na vida, beirando (leia: atingindo em cheio) a irresponsabilidade inúmeras vezes, estava ali no lugar em que eu sempre quis estar, no trabalho e moradia melhores do que eu poderia sonhar pro momento, mas entregue à imobilidade, incapaz de usufruir, não sabendo mais o significado do usufruto e não sendo capaz de ousar me mover.

Cada dia era uma tentativa diferente de mergulhar em busca de uma resposta, em busca de algum conhecimento anterior, alguma experiência que trouxesse uma faísca do que eu costumava ser de volta. Absolutamente qualquer coisa. Houve dias de tentativa de uma tentativa, dias de resultados positivos, dias de choro infindo e (os piores:) dias de vazio.

Este é um momento em que eu paro o texto e tento me relembrar porquê comecei a escrevê-lo. Subo e leio: "agradável jornada" no título e fico confusa. Agradável? De onde saiu isso? Mas se saiu, deve ter motivo. Comecei a escrever, na verdade, num desejo que me expreme há anos e que hoje me esmagou: o não compartilhamento das coisas que crio. Porque tenho medo de não serem boas o suficiente, porque sinto que são pessoais demais. Algumas criações estão tranquilas onde estão, mas tem umas que me imploram pra voar e eu insisto em enjaulá-las por puro egocentrismo. Como se o fato de ser ruim ou bom fosse lá importante demais. As criações todas flutuam por aí e encontram sempre algum propósito cuja existência os criadores sequer vão ousar considerar, porque as possibilidades são infinitas.

E mais importante: o que eu crio não é meu. O que eu crio não sou eu. O que eu crio são impressões de um eu construído a partir de outras criações que já estão no mundo muito antes de mim. De outras existências ao meu redor. Toda criação é uma cópia, e esse é o clichê mais reconfortante que existe. Toda autencidade é uma farsa.

Aqui, eu retorno ao medo que me paralisou. Uma das facetas mais interessantes da depressão é a capacidade de se diminuir de forma tão egocêntrica. De se sentir tão pequeno e tão central ao mesmo tempo. Desde meu primeiro contato com o budismo, tento ao máximo reduzir meu ego (ironicamente, essa frase soa egocêntrica). Cada vez mais percebo a dificuldade disso muito além do meu (meu?) egocentrismo, mas em uma sociedade cada vez mais construída de forma individual.

Este ano, eu perdi um vôo por má organização do aeroporto. Eu e mais 15 pessoas não pudemos embarcar. Todos concordaram em se organizar para uma reclamação coletiva. Em menos de 10 minutos, cada um já estava seguindo a vida à sua maneira e a história toda ficou por isso mesmo. A gente não sabe mais contar com o outro.

No meio das minhas crises todas, sem amigos, numa cidade nova, eu me vi incapaz de ligar pra alguém pedindo ajuda. "As pessoas tem mais o que fazer". Da mesma maneira, amigos meus que passaram por dificuldade, nunca me ligaram, mesmo eu tendo deixado claro tantas vezes que eles poderiam me contatar a qualquer momento. A gente doa aos outros umas doses homeopáticas esquisitas de atenção em mensagens curtas e se dá por satisfeito.

Dentro dessa trajetória toda, me vi revisitando cada hábito meu, cada coisa "normal" e tentando encontrar uma lógica nisso tudo. Surtei inúmeras vezes, pois não há. O que está dado, está dado, e é frequentemente doloroso.

O que me salvou foi a criação dos outros. Pela primeira vez em muito tempo, chorei ouvindo uma música, por ter a sensação de compreender plenamente o que cada nota dizia, absorvendo um sentimento muito além do que minha ausência de voz poderia expressar. As criações, os quadros, os sons, a escrita dos outros foi minha voz durante meses a fio, quando meus dedos nada conseguiam criar. A criação do outro falava comigo, me compreendia, eu cabia ali. A criação do outro era minha também.

Nisso entra o compartilhamento real que eu busco, em um mundo onde 15 pessoas não conseguem fazer uma reclamação formal contra uma empresa (uma empresa, quase que um robô, um monstro sem nome, um inimigo em comum que ninguém parece ser capaz de tocar). Em um cotidiano de relações tão complexas e etéreas, o acesso ao meu blog de culinária preferido da adolescência me relembra o amor através da alimentação. Uma música me faz chorar, outra me faz sorrir, um escritor me faz sonhar de novo. E eu vagarosamente começo a ligar para amigos quando preciso conversar com alguém.

No final das contas, me parece que criar é muito sobre esperança. Esperança de que surja algo de novo, de que desenrole algo bom, de que seja um suspiro. Principalmente em anos caóticos como 2018 (no micro foi pra mim particularmente caótico, mas obviamente foi tudo intensificado pelo macro-caos político). Você põe sua criação no mundo e o que acontece depois, não importa muito. Porque em algum lugar do espaço-tempo ela vai encontrar alguém e criar um novo pensamento. E o potencial de novos pensamentos é inestimável. Crie e solte. Dê um beijo com a esperança de que encontre alguém que sinta e deixe que sua garrafa parta no mar, rumo a uma agradável jornada que talvez você nunca vá conhecer.

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