Amor de pica
Uma notificação chega às 22h. Vejo o nome exibido na tela do celular e meu coração dispara. Ele deve ter enviado mensagem por engano. Encontro a única e mais provável explicação, mas, ainda assim, não consigo desacelerar os batimentos. É melhor eu ver logo. Digito a senha de 4 dígitos e, vagarosamente, pressiono o ícone da notificação.
“Quero te ver.”
Encaro a tela perplexa. Ele quer me ver. Ponto, repito para mim mesma. E, como se não fosse estranho o suficiente, ele querer me ver depois de tudo e comunicar isso por mensagem, ele ainda tem esse hábito estranho de pontuar as mensagens do WhatsApp que sempre me deixou apreensiva. Mentira. Tudo nele me deixa apreensiva.
“Hoje?”, entre todas as milhões de perguntas que poderia fazer, essa é a única que me ocorre.
“Se você estiver livre, sim. Por quê?”
“Hmmm… Por nada”
Não tenho coragem de falar nada sobre a noite que planejava. Sobre a lata de leite condensado reservada para a virada da sexta para o sábado. Do filme que eu ainda escolheria no Netflix. Do meu aniversário.
Com ele, era assim. Ele sempre chegava me desestruturando. Suspendendo as minhas noções do que fazia sentido, do que eu queria ou esperava. Ele tem essa coisa, sabe? Não sei dizer. É um negócio que eu vejo quando ele está dentro de mim. Mas, principalmente, é uma parada que me olha.
Ele toca a campainha e eu abro a porta toda errada. Procuro um ponto fixo qualquer para não parecer tão sem graça. Não me reconheço perto dele. Consigo brincar com outros caras e até parecer sedutora. Perto dele, todos os meus movimentos parecem incoerentes. Solto uma risada nervosa logo depois de ouvir “quanto tempo, né?”. Caramba, eu tô fora de mim, penso.
Para minha sorte, ele também parece sem graça. Tiro coragem disso para falar:
“Que loucura você aqui”, tento ser casual.
Ele me olha e dá uma risadinha irônica.
“Tava por perto”, ele diz blasézão. Típico dele mesmo, reviro os olhos internamente.
“Mas achei que cê nunca mais quisesse me ver”, provoco.
“Não exagera! A gente só precisava parar. E você sabe disso”, ele finaliza me lançando um olhar sério.
“Não sei…”, respondo baixinho.
Desvio o olhar de onde ele está (plantado no centro da sala) e localizo o meu sofá como se só agora me desse conta da sua existência. Faço menção de sentar, mas ele me detém, segurando meu pulso.
“Eu não vim para conversar”.
Fico me perguntando o porquê dele fazer tanta questão de pronunciar todas as letras de “para” que nem me choco com a frase. Talvez eu já tenha naturalizado a cara de pau dele. Talvez faça parte.
“Certo”. Dentre todas as respostas que eu poderia ter dado, essa é a única que me ocorre.
Ele dá dois passos na minha direção e para à minha frente. Posiciona as mãos na minha cintura, mas não me beija. Não posso mais evitar encará-lo. Tento desafiar o seu olhar. E lembro de como ele me afeta.
Nunca fomos de nos beijar muito. E, na real, ele não parece estar disposto nem a fingir que quer fazer as pazes. Ou que precisa me seduzir. As regras desse jogo são antigas. E percebo que não esqueci nenhuma quando ele levanta a minha camisola e passa o dedo na minha buceta.
“Sem calcinha”, ele fala numa espécie de elogio. Penso se revelo que é por recomendação da ginecologista. Deixar respirar e tal. Mas as palavras se perdem dentro de mim quando deixo escapar o primeiro gemido.
“Vamos para o quarto”, ordena.
Percorro o corredor me perguntando como pude transar tanto tempo com alguém incapaz de dizer “pro”. Mas, quando chegamos em frente à cama, já não lembro das coisas que odeio nele. Deixo seu olhar me abrir e finco as unhas em suas costas tentando me segurar de uma queda que eu já conheço. Em seus braços, não sei se sofro, se gozo. Enquanto me invade, percebo que baixa a guarda e também posso invadi-lo. É um ciclo vicioso. Gemo, estremeço e juro que vou morrer. Quando tudo se acalma, batimentos cardíacos violentos me avisam que ainda estou viva. Chega a ser irônico.
Depois de tudo, não fica nada. Encaro, com olhos de luto, o desejo de ainda agora. E penso, melancólica, no meu aniversário. Essas datas têm disso. De nos deixar meditativos, não é? Fico absorta na ideia do tempo e, em minha cabeça, assisto a um filme dos amores que conheci, não, que construí. Eu inventei a pornografia com você, querido, penso enquanto o observo na cama. No automático, movo a mão em direção à sua bunda para acariciá-lo, mas paro ao perceber que não faz nenhum sentido. Não me reconheço mais como a pessoa que eu fui naquela relação. Cansei da experiência, constato e sinto a dor de quem acaba de localizar uma ferida.
“Você estava certo”, digo.
“Hmm?”, ele pergunta ainda deitado de bruços.
“A gente tinha que parar…”
“Não deveríamos nem ter feito isso agora, querida”, ele diz com a voz carregada de arrependimento.
“Eu sei…”
Penso que a mulher que eu sou agora tem necessidade de outras relações. Que nos esgotamos no que tínhamos para oferecer um ao outro. Sem nunca admitir que queríamos ou poderíamos oferecer qualquer coisa. Nos esbaldamos sem nunca deixar de representar o que representávamos: estranhos. Chegamos ao fim.
Ou quase.
“Quer comer meu cu?”
Só mais um último tango. Na Augusta.
Acho que se eu explicasse que amo literatura erótica e que tenho como desafio desenvolver uma narrativa atual, pouco convencional e _principalmente_ baseada em um olhar completamente feminino do sexo, esse projeto perderia um pouco da graça, né? De toda forma, se você curtiu esse texto (tem outros antes desse!), ficaria honrada demais em receber recomendações e comentários. Acho que também toparia receber uns convites para publicações, uns depósitos inesperados na minha conta bancária ou suprimento vitalício de tapioca.