Ardil

M. Maia
Medium Brasil

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Sou vigilante da fronteira há sete anos.

Por uma semana a cada 14 dias vivo em uma caixa de metal. O sinal de civilização mais próximo fica a quase cinquenta quilômetros de distância, por uma estrada de barro batido. Tenho um pequeno ar-condicionado, frigobar, fogareiro a gás montado na parte externa do meu posto de vigília. Duas pistolas, munição e um telefone móvel via satélite. Além disso, um computador e oito telas de monitoração ligadas a câmeras equipadas com visão noturna, a cada quilômetro do trecho de fronteira que vigio. Uma delas está quebrada há mais de um ano, no local mais distante do meu posto. Isso e o fato que nenhum supervisor vem aqui há dois anos reforça minha teoria que chegará o dia que eles esquecerão minha existência.

Dois geradores, um apenas para redundância, fazem o trabalho de alimentar meu lar longe de casa. As câmeras do circuito interno são alimentadas por uma linha de energia própria que corre por toda a fronteira. Se eu quisesse, poderia ver as outras câmeras, mas a programação dessas TVs não difere. É reprise o ano inteiro.

Eis o trabalho mais chato do mundo. Do lado dos ermitões que vivem em faróis, eu sou o cara que passa sua vida olhando para telas onde não acontece nada noventa e nove por cento do tempo. Pra você ter uma idéia, eu e meus colegas ganhamos o prêmio de funcionários do ano pelos dois últimos anos porque fomos os únicos sem nenhuma ocorrência nesses períodos. Eles basicamente me premiaram por eu não ter feito nada. É como ganhar na roleta apostando no zero.

A paisagem ao meu redor também não é a coisa mais impressionante do mundo, apesar de seu apelo particular para pessoas que gostam de horizontes solitários. Imagine uma vasta planície, verde na primavera e amarelo queimado no verão, com alguns ciprestes e arbustos espalhados. A única companhia ocasional são pássaros e tropas de cavalos selvagens, que pastam por aqui. Só houve uma vez que um potro muito jovem se aventurou perto do meu posto. Ele era pura vida correndo por aqui, curioso com a estranha “rocha” quadrada no ponto mais elevado do campo.

Existem mais duas pessoas que alternam os turnos comigo: Alex e Jorge. Jorge é o típico brucutu de interior, com uma pança enorme e um vocabulário de trezentas palavras. Alex é um rapaz bastante tímido com um jeito meio afeminado, que passa seus dias aqui lendo livros e jogando no computador. Como água e óleo, os dois não se misturavam. Jorge implicava com o rapaz toda vez que o encontrava, mas como isso só acontecia a cada três semanas era bem sustentável. Até que Alex o denunciou por comportamento inadequado, -leia-se encher a cara de cerveja e uísque a semana inteira de trabalho - os dois brigaram e agora mal se falam.

Alex me ensinou a jogar xadrez faz um ano e agora nós estamos no meio de uma partida. Ele capturou minha torre com a rainha, mas deixou o seu rei branco completamente exposto. Quando vi que ele mordeu minha isca, fiquei feliz porque é provavelmente a primeira vez que estou ganhando dele a sério. Já falei pra Jorge que se ele estragar essa partida, como já aconteceu, vou quebrar a cara dele. A velha mula deu de ombros e falou:

- Se você quer brincar com a garotinha, fica à vontade, filho.

Essa é nossa pequena família feliz no posto do fim do mundo.

Certa noite excepcionalmente quente, estava pensando qual seria a forma perfeita de colocar o rei de Alex em xeque quando minha visão periférica percebeu movimento no monitor número dois. Dei um zoom e vi um casal atravessando o trecho mais raso do rio que divide a fronteira. Por um momento fiquei sem acreditar naquilo. Não podia sequer lembrar da última vez que tinha visto gente atravessando a fronteira. Os dois pararam embaixo de um grupo de pinheiros e se sentaram, compartilhando uma lata de comida.

Ponderei por alguns instantes a respeito daquilo. O protocolo diz que todo indivíduo que for visto atravessando a fronteira deve ser interceptado e interrogado no posto. Para grupos de duas ou mais pessoas, o vigilante deve chamar reforço pelo telefone via satélite. Peguei o telefone e parei no primeiro número discado. Duas pessoas não é um grande risco, pensei comigo. Coloquei o aparelho na gaveta e a fechei. Peguei as chaves do carro no gancho da parede, calcei as botas, vesti o coldre com a arma, coloquei uma jaqueta de lona e saí para o ar frio noturno.

A pick up sai triturando a brita que cerca o contêiner. A estrada que leva de volta para cidade se bifurca nas duas direções da fronteira, cobrindo quase todo o percurso sul até o próximo posto ou muito ao norte onde você acaba em um pântano. Eles atravessaram quase no trecho onde a câmera quebrada não os filmaria, no extremo sul. Medito a respeito disso, me perguntando se aquilo foi intencional. Será que atravessadores sabem que há um ponto cego naquele trecho?

Após quinze minutos, chego no poste da câmera dois. Viro o carro na direção do rio e após dirigir uns quinhentos metros, desligo o motor e coloco os faróis altos. Não há sinal deles. Tem um megafone no banco traseiro da Strada, que apanho e ligo:

- Vocês podem sair de onde quer que estejam — espero por uns instantes e acrescento — eu tenho comida e roupas limpas no posto.

Nenhum barulho, exceto o vento carregando as minhas palavras por quilômetros e quilômetros. Eu entendo o lado deles. Esse é o tipo de situação que você precisa se expor antes de ter segurança que a pessoa é quem afirma ser, como uma aposta. Eu poderia ser um psicopata procurando vítimas no meio do nada. E em locais tão isolados, toda escolha faz diferença na sua vida.

Após longos minutos de espera, entro no carro e dou partida. Quando engato a primeira, vejo uma moça sair de trás de um arbusto, agitando o braço. Seu companheiro vem logo atrás e eu aceno pros dois se aproximarem. Eles caminham meio curvados, provavelmente exaustos de uma longa caminhada. Quando a moça se aproxima eu cumprimento bem-humorado:

- Boa noite, forasteiros.

- Noite — ambos responderam gravemente.

- Eu estava aqui me perguntando o que um casal de jovens estaria fazendo logo depois de onde judas perdeu as botas a essa hora da noite. Vocês estão tentando atravessar a fronteira ilegalmente?

A moça arregalou os olhos e olhou para o rapaz, que franziu a testa e respondeu:

- Nós não somos ilegais. Tivemos problemas quando estávamos acampando alguns quilômetros ao sul e nos perdemos. Estávamos seguindo o rio, mas não encontramos ninguém e decidimos atravessá-lo.

O silêncio assentou suavemente sobre nós. Uma brisa fria soprou, como se alguém tivesse acabado de passar, e a garota se aproximou do rapaz, se abraçando com ele. Pareciam um casal confiável e assustado, então eu sorri e disse:

- Não se preocupem, está tudo bem agora. Podem entrar no carro e eu levo vocês pro posto. Amanhã cedo peço pra alguém vir buscá-los. A propósito, meu nome é Marcos.

Eles suspiraram aliviados. O rapaz apertou minha mão e os apresentou como Lucas e Helena. Sentaram no banco de trás da Strada e se beijaram suavemente. Ela parecia bastante cansada e logo estava ferrada em um sono pesado no colo dele, mesmo com os solavancos.

Enquanto seguíamos em direção ao posto, ele me contou que estavam acampando do outro lado do rio, na nascente de um dos afluentes. Quando foram abordados por um homem que os assaltou e levou o carro. Como não havia sinal no celular, eles tiveram que vir andando.

- Na verdade, foi muita idiotice fazer esse programa sem segurança nenhuma. Eu jamais pensei que alguém ia aparecer assim, no meio do nada — lamentou Lucas.

- Bem, provavelmente ele deve ter seguido vocês desde alguma cidade. Pelo menos nada pior aconteceu — eu respondi, enquanto o observava pelo retrovisor. Ele fez um muxoxo, e olhou tristemente para sua namorada.

Quando chegamos no posto, Lucas perguntou se havia problema em deixar a moça no carro. Eu pensei por alguns momentos e respondi que não tinha problema algum, mas imaginei comigo que ela provavelmente ficaria muito irritada se acordasse e descobrisse que estava sozinha.

Entramos no posto e eu tirei minha jaqueta. Peguei a chaleira, uns pacotes de chá e disse que ia fazer uma bebida quente para nós. Avisei que havia biscoito e queijo no frigobar e saí para esquentar a água. Quando voltei, ele estava comendo vorazmente o segundo pacote de biscoito. Ele parou, envergonhado, ao me ver entrar e eu apenas sorri:

- Não se preocupe, pode comer. O chá já está pronto. Só não tem açúcar.

- Sem problema, é assim que eu bebo. Mas acho que eu deveria ir lá fora e chamar Helena para comer.

- Ah, deixa ela dormir um pouco, coitada. Beba seu chá enquanto ainda está quente.

Ele ficou meio indeciso, mas acenou com a cabeça e pegou a caneca que servi. São assim que as pessoas são, no final das contas, sempre querendo agradar. Deu um gole e fez uma expressão de prazer:

- Chá preto, muito bom.

- Sim. Espero que não o mantenha acordado, porque eu gosto do meu chá bem forte.

- Não, tudo bem…

Tirei o coldre e as chaves do carro e coloquei em cima da mesa. Notei que havia uma pequena mancha no meu antebraço. Olhei para Lucas e não parecia que ele havia notado. Falo em tom despreocupado:

- Com licença, Lucas, preciso me lavar lá fora. Se você quiser, pode ir depois de mim. É uma ducha meio fraca, mas dá pra tomar um banho.

Ele agradece e continua bebendo. Saí do container e fui até a bica. Esfreguei a nódoa de sangue vigorosamente e lembrei que a arma ainda estava lá dentro, em cima da mesa. Meu pressentimento dizia que essa história estava se caminhando para um drama complicado.

Quando vou entrar, Lucas está me esperando na porta com a pistola apontada para o meu peito em uma mão e as chaves na outra. A sua mochila já está nas costas novamente. Ele falou:

- Olha, não faça nada e tudo vai dar certo. Não é nada contra você, mas eu e minha namorada não estamos exatamente na legalidade aqui. A gente não queria problema, mas você apareceu e eu tive que pensar rápido.

- Não posso dizer que estou completamente surpreso, para falar a verdade.

Me afastei da porta e deixei que ele passasse. Antes de chegar no carro ele se virou e disse:

- Você não tem nada que se preocupar. Eu vou deixar o carro na cidade mais próxima. Eu peguei seu telefone também, para ganhar tempo. Mas quando seus colegas aparecerem vai dar tudo certo, ok?

Ele parecia genuinamente preocupado comigo. Mal consegui segurar o sorriso com aquela gentileza do homem que estava me roubando.

Foi quando ele abriu o carro e paralisou que eu não consegui me conter e caí na gargalhada. A noite engoliu minha risada como uma criança gulosa engole uma bola enorme de sorvete. Sabor medo. Lucas se virou lentamente e perguntou:

- Onde ela está seu filho da puta?

Eu não conseguia me controlar e achei que ia morrer de tanto rir ali mesmo. Ou de um tiro na cabeça. Distante, ele gritava e gritava me questionando. Quando finalmente conseguir recuperar o fôlego, respondi entre risadinhas:

- Ela está no chuveiro, cara — e sorri.

Ele olhou para mim com um ódio mortal e saiu correndo até a cabine onde ficava a bica. O que ele viu lá foi a garota com o maior sorriso que alguém já teve. Me lamentei por não ter visto a exata expressão no rosto dele ao vê-la dilacerada. Só ouvi o urro de dor atravessando o ar. Esperei pacientemente que retornasse.

Lucas, ou seja lá qual fosse o nome dele, segurava a pistola com tanta força que as juntas da sua mão estavam brancas. Segurava a barriga com dor, como se eu o tivesse apunhalado ali. Ele ergueu a arma até a minha cabeça e, antes de puxar o gatilho, perguntou com a voz rouca “Por quê?” e me deu uma coronhada com raiva. Estrelas brotaram na minha visão e senti o sangue quente escorrendo da minha testa, mas tudo compensava a expressão de dor absoluta no rosto dele. Comigo ajoelhado ele ergueu a arma e disparou.

Obviamente, a arma estava travada. Sorri e soquei as bolas dele. O rapaz caiu no chão agonizando enquanto eu pegava a arma de volta.

- Lucas, Lucas, seu ingênuo. Eu percebi que sua história era falsa desde a primeira palavra que vocês falaram: “Noite”. É um sotaque sutil, mas ainda é um sotaque. Você disfarça melhor que ela implorando. Mas eu imagino a confusão que você passa agora: pensar que quando você mente, quando você arma uma traição, que você seja o traído.

Ele começou a tossir. Uma tosse grossa, de sangue se acumulando na garganta e precisando ser expelido.

- Ah, a escolha do chá não foi em vão. Somente um chá amargo para disfarçar o sabor de um veneno tão forte. O que você está balbuciando? Eu vou pagar? Pagar pelo quê, meu deus? Você realmente acha que alguém vai dar a mínima para dois imigrantes ilegais que desapareceram? E sabe do que mais? Você não é o primeiro e nem será o último.

Antes de eu terminar a última frase, ele já estava morto. Não importa muito realmente. Suspirei e arrastei seu corpo até a caçamba da Strada. Fiz o mesmo com o corpo de Helena. A pá já estava lá junto com a cal virgem, afinal sou um ambientalista. Os lençóis freáticos são importantes. Os rapazes perguntaram por que carrego essas coisas e tive que inventar uma reforma na minha casa. Odeio pessoas que metem o bedelho em tudo.

Quando terminei de enterrar os corpos, que nem se compara ao esforço de enterrar um cavalo, voltei ao posto e lavei as manchas de sangue no chão e no carro. Tomei um banho e me senti revigorado, sortudo, afinal não é todo homem que possui um trabalho que ama. Sentei em frente ao tabuleiro de xadrez e vi a jogada perfeita: xeque-mate em dois lances.

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