Balas de gengibre

Raphael Carneiro
Medium Brasil
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4 min readOct 14, 2016

O saco transparente, com o peso das balas sem nem chegar à sua metade, era sacudido à mercê da corrida. A pressa para entrar no primeiro ônibus que se aproximava do ponto fez com que se esbarrasse em duas pessoas. Sinalizou para o motorista, que já fazia o veículo iniciar o deslocamento, e correu para a porta traseira. No caminho, viu que eram poucos os que estavam lá dentro. Por isso, mesmo com a porta dos fundos aberta, desistiu. “Adianta, adianta!”, gritou. Andou mais alguns metros, ignorou os olhares estranhos e agradeceu internamente quando duas meninas se afastaram da pilastra que escolheu para se encostar.

A aproximação do homem magro, pele morena, de cabelo cortado e bigode fino, gerou apreensão em quem tinha a cabeça voltada para o lado contrário ao do trânsito. Em alerta no ponto de ônibus, os pedestres observaram atentos quando ele pediu para entrar no veículo e, na sequência, desistiu da investida. O saco com balas de gengibre na mão era apenas um detalhe. Difícil acreditar que aquilo realmente estaria à venda. Os dois homens que levaram encontrões no ombro olharam para trás assustados, mas sem coragem de questionar. Com farda do colégio, duas meninas viram de longe o rapaz com a calça jeans e a camisa verde de gola aberta se aproximar. Não esperaram nem ele chegar perto para sair dali.

Com as costas na pilastra, ele olhava atentamente para o movimento dos veículos na rua. Os que estavam ao seu lado pouco o interessava. Queria mais uma oportunidade para entrar em um ônibus. E dois deles se aproximaram. O de trás estava visivelmente mais cheio. Sinalizou para o motorista, mas ele fez cara feia e negou a permissão com a mão. Assim, aproveitou que duas senhoras desciam do ônibus da frente e correu para aproveitar a brecha da porta. Subiu as escadas rápido e sentiu que era observado. Olhares curiosos e recriminadores. Com o espaço destinado aos cadeirantes vazio, encostou lá mesmo e aguardou o veículo entrar em movimento.

O clima no ponto não foi o mesmo enquanto aquele rapaz permaneceu ali. Cada movimento dele era acompanhado com apreensão pelos outros que aguardavam para serem passageiros. O alívio foi a sensação comum a quem o observou se dirigir aos dois ônibus que se aproximavam. Alívio de uns, apreensão de outros. Os que iriam embarcar no ônibus de trás temeram pela segurança, mas agradeceram quando o motorista negou o acesso. Aí foi a vez dos sentimentos se inverterem em quem estava no ônibus da frente. Alguns chegaram a sorrir quando o viram ir para o outro veículo, mas logo fecharam a cara quando o sujeito pulou os degraus e apareceu no meio do corredor. De sua cadeira, o cobrador manteve o olhar fixo nele, mas sem forças para falar alguma coisa.

A fome provocava uma tontura que dificultava o equilíbrio, ainda mais com o ônibus em movimento. Sem conseguir um emprego há cinco meses, com dois filhos em casa e a mãe dependente, ele buscou forças para caminhar até o torniquete, ficar de frente para os outros passageiros e iniciar o texto decorado. “Pessoal, vocês podem me dar uma ajuda? Vergonha é não trabalhar. Vergonha é pegar o que é dos outros. Estou aqui só pedindo uma ajuda. São três balas por R$ 1. Vocês podem me dar uma ajuda? Vergonha é pegar o que é dos outros”. Nenhum movimento. Andou até o final do ônibus, olhou no olho de cada passageiro. Passava sinceridade, mas só recebeu negação como resposta. Foi até o fim e voltou para o torniquete. Lá, parou mais uma vez.

Quando aquele sujeito de camisa verde caminhou até próximo ao cobrador, as pessoas se olharam apreensivas. O medo de um assalto era nítido. O pedido de ajuda com as balas de gengibre na mão foi ignorado. O pensamento era um só: vagabundagem. Bolsas foram escondidas, mochilas apertadas contra o peito e celulares guardados. Enquanto ele caminhou lentamente pelo corredor olhando cuidadosamente para cada pessoa — e o que ela tinha em cima do colo –, os julgamentos cresceram. “Marginal preguiçoso. Tanto emprego pra arrumar e fica atrás de moleza. Vai trabalhar, vagabundo”, murmurou um senhor para ter a adesão da estudante que estava ao seu lado.

A investida foi sem sucesso. Com ele novamente na frente do ônibus, as visões se encontraram. Foi cuidadoso em levantar a camisa com a mão direita, a mesma que segurava o saco de balas, e puxar um revólver, com a mão esquerda, preso à cintura. O sorriso no seu rosto cresceu à medida que expressões de desespero tomavam a face dos passageiros. Ainda pegou uma bala, desenrolou, largou o papel em cima do cobrador e perguntou de novo se ninguém iria ajudá-lo. O silêncio que se seguiu não foi de negação, mas de medo. Então, com a arma em punho, implorou pela última vez.

- Agora não quero ajuda não! Vocês vão me dá tudo o que está com vocês. E sem balinha pra ninguém.

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Raphael Carneiro
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Escritor. Jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS).