BoJack Horseman, o cavalo difícil

Guilherme Sagas
Medium Brasil
Published in
5 min readAug 9, 2016

Contém spoilers para quem não assistiu as 3 primeiras temporadas da série.

Em seu livro "Homens Difíceis", o jornalista Brett Martin relata um momento muito específico em que a televisão americana entrou no seu terceiro ápice, capitaneada por séries com anti-heróis como protagonistas, que ele define como “infelizes, moralmente comprometidos, complicados, profundamente humanos”.

O roteirista Raphael Bob-Waksberg provavelmente não tinha lido essa definição ao conceber o personagem principal de sua animação — um cavalo falante ex-estrela de TV, amargurado pela decadência de sua carreira e a solidão em sua vida pessoal — mas certamente já tinha se deparado com personagens como Tony Soprano, Don Draper e Walter White, que fazem parte da origem desse tipo específico chamado de “o homem difícil”.

Criada como uma obra original para a Netflix, BoJack Horseman mostra a vida do cavalo homônimo, que viveu seu auge da fama ao protagonizar uma sitcom familiar intitulada “Horsin’ Around”, onde ele cuidava de 3 crianças órfãs. Com o passar dos anos, sem conseguir se provar como ator em novos projetos, BoJack entra numa espiral negativa de depressão e alcoolismo, reforçada pelo seu fracasso em escrever uma autobiografia, o último projeto que se propôs a realizar.

Estimulado por seu amigo humano Todd e sua agente e (ex-)namorada, a gata persa rosa Princess Carolyn, ele decide contratar uma ghostwriter pra ajudá-lo na missão, passando então a revisitar as histórias e pessoas do seu passado.

Apresentada como comédia, BoJack Horseman é uma sequência insana de piadas e tiradas rápidas, apoiadas na presença de animais falantes (Princess Carolyn bebendo chá de catnip e vacas servindo bifes em restaurantes, por exemplo) e muitas referências à cultura pop americana (entrevistador cujo nome é “um cara meio Ryan Seacrest” é uma das piadas que sempre me faz rir).

Em um momento marcante da primeira temporada, BoJack rouba a letra D da placa de Hollywood para impressionar sua ghostwriter Diane. A partir de então, nunca mais vemos nenhum personagem utilizar o nome original para a rebatizada Hollywoo. A aceitação rápida do novo termo por parte da imprensa e consequentemente das pessoas soa como uma crítica lá no fundo.

Dramédia

Enquanto distrai os espectador com suas referências quase escondidas, a animação inicia um processo de mergulho profundo na mente perturbada de BoJack, o clássico anti-herói que involuntariamente destrói tudo o que toca. Os tons de drama começam a surgir, deixando o humor quase com um aspecto quase dark, capaz de deixar todos com os olhos vidrados e um sorriso amarelo, como em um episódio em que um personagem descobre que seu câncer entrou em remissão, pra logo em seguida morrer em uma crise alérgica, após sofrer um acidente de trânsito em que seu carro se choca com um caminhão de amendoim.

Em suas, até então, 3 temporadas, a série trata de amizades mal resolvidas, traições, vícios e recaídas, aborto, sexualidade, decepção e morte. E é especificamente na terceira quando assistimos aos episódios mais pesados.

Coincidência ou não, foi o ano em que os produtores da série abraçaram de forma mais clara a associação de BoJack com outros homens difíceis da ficção. O cartaz da temporada exibe o nome dele após uma sequência personagens famosos: Soprano, Draper e Underwood.

No meio da temporada, inclusive, descobrimos a origem do final aberto de Os Sopranos. Todd se apoia no filme durante uma fuga, rasgando a parte com os últimos frames. Não fosse a trapalhada dele, hoje todos saberiam que Tony casou com a doutora Melfi.

Um mergulho mais profundo

Até certo ponto do desenvolvimento, parece muito difícil que o espectador se conecte de verdade a BoJack. Quem se identifica com uma estrela de Hollywoo que aparenta não se importar com nada e ninguém, apenas focada no seu ego gigante? É então que as tentativas de remissão do personagem nos aproximam de seus sentimentos. Enquanto a superfície mostra uma pessoa que não se importa, um olhar mais profundo revela uma alma culpada e com medo de rejeição.

No episódio “Fish Out Of Water”, em sequências dignas de cinema europeu, BoJack visita uma cidade submarina e tenta se reconciliar com Kelsey Jannings, a diretora de cinema com quem trabalhou, enquanto tenta devolver um pequeno cavalo marinho a seu pai (ao contrário da maioria das espécies, os cavalos marinhos machos podem incubar os filhotes e em alguns casos tomar o papel da fêmea — mais uma das piadas não tão óbvias). Com apenas 3 minutos de diálogos, nos conectamos com o sofrimento e a culpa de BoJack ao não conseguir se comunicar com a diretora, mesmo tirando de si, com muita força, as palavras que queria dizer.

Já em “That’s Too Much, Man!” a série chega no seu momento mais agudo de drama, em que BoJack e Sarah Lynn, a menina mais nova com quem contracenava em “Horsin’ Around”, hoje uma mulher lutando contra vícios em drogas e álcool, partem em uma viagem regada a tudo isso. Com a mente alterada, BoJack decide se desculpar com todos a quem feriu, tentando consertar as coisas. Visivelmente embriagado, acaba não conseguindo os melhores resultados.

Ao final do episódio, vai com Sarah Lynn ao planetário, onde, observando a grandeza do universo, passa a se sentir extremamente pequeno. Esse momento de epifania contrasta com toda a sua vida, sempre vendo tudo do alto de sua mansão em Hollywoo, de sua fama e fortuna. Com a lucidez, BoJack vê Sarah Lynn morrer em seus braços, de overdose, logo após ganhar um Oscar.

Com tons de series finale, o episódio seguinte mostra quase todos os personagens se encontrando em suas vidas pessoais e profissionais. Um telefonema de quem parece ser uma filha perdida de BoJack mostra que há algo mais por vir, mas não sem que antes ele tente expurgar sua culpa.

Dirigindo sozinho pela estrada, ao som de Stars de Nina Simone, numa possível referência a Don Draper nos episódios finais de Mad Men, ele encontra alguns cavalos selvagens, correndo livres, inspirando algo em sua mente.

Provavelmente encaminhando-se pra sua fase final, a comédia animada revela a si própria como um drama quase obscuro, enquanto seu protagonista caminha para uma espécie de redenção problemática, típica dos homens difíceis da ficção.

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