com a palavra: a palavra

esther lourenço
Medium Brasil
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5 min readNov 27, 2020
um tesserato. Fonte: Wikipedia

Queria homenageá-la, dar-lhe todo o palco, mas ela nada diz a não ser que eu também diga. Então, em sua honra, solto o verbo e esparramo perante seu trono minhas oferendas cultivadas e pintadas com grandiosa admiração.

Antes de começar a dedilhar os primeiros hinos, preciso esclarecer que minha devoção é pautada na realidade e compreendo que diferente do Universo ou dos Mistérios, que já trazem em si a perfeição, meu objeto de admiração deste texto é falho: reconheço-o como imperfeito, porque é criação humana. Mais requintado (pelo menos no nosso entendimento) do que um grasnar ou um risco acidental na parede, cada palavra é um elegante mini-portal de pensamento pré-estabelecido em comunhão, muito antes que algo seja dito. Ao dizer "cadeira", entendo que você já está de acordo com a mesma concepção de "cadeira" que eu, então já temos um laço pré-afirmado de compreensão mútua (o que a história humana tem mostrado de forma cada vez mais clara que é um erro — mas um erro frequentemente delicioso).

A palavra nos concede o palco no cotidiano para que cada um exiba seu próprio universo e dê uma espiada no universo alheio, o que pra mim é um dos presentes de mais alto valor que a humanidade nos concede. Mais precioso ainda que o dizer, a palavra nos oferece de bandeja a possibilidade do silêncio. Sem o dizer, não há silêncio.

Inúmeros escritores (devaneio: gosto dos plurais acidentalmente sem gênero, pelo menos na minha concepção, que a língua portuguesa oferece, me poupando de escrever "escritoros e escritoras") já escreveram sobre a tal linguagem, sobre o tal escrever, o tal dizer, e nada poderia ser mais repetitivo do que eu vir aqui fuçar novamente os cantos do tema. Mas não venho com a pretensão de exibir algum porão nunca antes explorado das palavras (até hoje me lembro da minha amiga repetindo inúmeras vezes "penetra surdamente no reino das palavras" depois de uma visita com a escola ao Museu da Língua Portuguesa em São Paulo), não; senão teria inclusive feito algum alarde marqueteiro no título ("as palavras como você antes nunca viu!", mas não sei se há público pra tal ladainha, talvez seja questão de pesquisar o mercado). Escrevo simplesmente pela deliciosa sensação de que cada união de palavras é única, não havendo limites para exaltar tal invenção humana — invenção diferente da bicicleta ou do moinho, algo mais próximo a uma descoberta como o fogo.

Penso às vezes em como Deus veria a linguagem. Da mesma maneira como um pai vê os primeiros desenhos de uma criança de 3 anos? Talvez já estejamos um pouco mais avançados, com 5 anos, não sei, é questão de perguntar pra Ele, o grande escritor, mas isso fica pra outro dia, porque meu telefone está sem área.

Penso também no tamanho paradoxo que é a pretensão e a ingenuidade que a linguagem carrega. "Amor". Quem pensou nessa palavra pela primeira vez o fez provavelmente em um delírio ou alguma viagem multidimensional e soltou num susto tal conceito. Mais inconcebível ainda é que tal sentimento conseguiu ser explicado e aceito socialmente, ganhando dimensões que escapam a qualquer ser humano. E num salto ainda transformamos o amor em verbo para poder afirmar: "eu amo". Um surto, um delírio coletivo. Mais uma vez a gente inventou algo que não consegue controlar ou entender (no reino material, algo possivelmente semelhante às armas de fogo). Cascateam-se então teorias e mais teorias, ficções e mais ficções que buscam apreender algo que talvez nem sequer exista, mas que deleite é o caminho da exploração! Porque as consequências ao menos são reais, o carinho é real, o abraço também, assim como as flores entregues de surpresa que dão outro sabor ao que seria uma terça-feira comum.

Distraí-me. Isso daí de se distrair também é artifício da linguagem, ir tomando rumos que conectam a outros rumos e de repente a maçã se transformou num elefante, meio paralelo ao modo como o tempo molda os fatos. Palavras: pontes de ar que levam a castelos, tantas vezes pouco apreciadas, tão frequentemente subestimadas. Talvez nesse ponto tenham artistas cênicos, escritores e os estudiosos da Psicologia algo em comum: o escavar da palavra, do tom, da escolha, da intenção que reside sob cada frase dita/escrita. Como uma planta, pode acontecer que no escavar se descubra o aspecto de suas raízes, mas por consequência ela morre. Não me afeiçôo particularmente ao mal necessário da ciência de matar pra entender, mas isso dá muito pano pra mangas e infelizmente não disponho de tanto tecido e minha agulha acabou de entortar. No entanto, posso afirmar que me aproximo mais e mais da simplicidade de filosofias budistas que envolvem o observar. Observo então a graciosidade com que certas palavras carregam em si universos. Também observo o dizer do outro, o contar, o modo como as pessoas que encontro organizam ou desorganizam as frases.

Ainda por cima sou dessas que tomou a exploração da linguagem como ofício de vida e tenho gosto por me aventurar terrenos pr'além da fronteira que aos poucos vão se encaixando em mim. Às vezes de forma completamente torta, me fazendo trocar o lugar do sujeito pelo do verbo, outras num irrompido surto incorporando as faculdades químicas que me assaltam, uno uma palavra do Português a um conceito do Alemão e quedo-me muda admirando tal horrível criatura, como Frankenstein a encarar sua criação tomar vida. Dissolve-se. As palavras em si, por sorte, não se ofendem. Tenho minhas suspeitas de que até se divertem com tais encontros inusitados, como pequenas moléculas de sabão fazendo bolhas no ar.

Ofensivo mesmo é não lhes prestar atenção. Isso já beira as artes malévolas, principalmente porque diferente do que nos ensinam na infância, não existem palavras mágicas específicas. Como outros tantos antes de mim, honro a tradição humana e reafirmo: palavras são por si só mágica.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade

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