Mídia e desconstrução: Michelle Visage, Panti Bliss e o Altas Horas

lucas araujo
Medium Brasil
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5 min readMay 6, 2016

Michelle Visage é uma mulher multi-tarefas e multi-talentosa. Nascida em Nova Jersey, ela se mudou para Nova Iorque ainda bem nova para ir em busca de um sonho: a Broadway. Na Big Apple, foi acolhida por homossexuais, transsexuais, drag queens e muita gente que fazia seu nome na cena underground. Começou a vestir-se e agir como drag e descobriu que como drag ela não apenas seria aceita por aqueles grupos como também teria a oportunidade de fazer explodir o melhor da sua personalidade. Se hoje temos a Michelle Visage que temos, isso se deve a essas pessoas do início das suas saídas.

Michelle Visage

Atualmente Visage é conhecida como jurada fixa do reality show estadunidense RuPaul’s Drag Race, produzido por seu amigo de décadas RuPaul Charles e que chegou a sua 8ª temporada pela LogoTV. E isso era tudo o que sabia sobre Michelle Visage até então. Até que me dei de presente de Natal o livro “The Diva Rules”, que acabou por me divertir muito e tocar o meu coração. Numa leitura leve, Visage conta sua trajetória através de lições que aprendeu ao longo da vida, como auto-conhecimento, auto-aceitação, controle emocional, persistência, manter a cabeça aberta, aproveitar boas oportunidades, não focar apenas na beleza externa… enfim, uma série de coisas que me interessavam.

Esse livro dá muito pano pra manga, mas vou falar aqui de um dos tópicos que mais gostei: desconstrução de (pre)conceitos, usando também algumas outras referências.

No livro, Visage conta que sofreu bullying durante toda a sua passagem pelo colégio até seus 13 anos. Ela era diferente demais e ser diferente gera insegurança nos outros, porque a sociedade é normatizadora e tende a não saber lidar bem com as diferenças. Para alguns, o melhor meio de sair da posição de vítima é ir pro lado do opressor. Mudar seu comportamento para rebaixar pessoas que são abertamente algo que você gostaria de ser mas nunca teve coragem. Você passa a odiar essa característica em si e, consequentemente, a odeia nas outras pessoas. A cabeça de um praticante de Bullying é mais complexa e confusa do que jamais imaginei. E confusão gera raiva, raiva gera ódio e no fim a gente sabe o que acontece.

André Lodi foi al Altas Horas contar sobre como é ter duas mães

Voltando ao assunto original: todo mundo cresce meio bitolado e moldado pelo que o cerca. Aí a vida vem e ensina. Vai de cada um aprender ou não. Um dos melhores exemplos recentes disso foi aquele menino que fez uma pergunta para o filho de duas mães no Altas Horas. Em seu comentário, ele insinua de forma “inocente” que existem famílias “normais” e existe a família do filho dessas duas mães. O filho dá uma ótima resposta e todos aplaudem. Todos. Inclusive o rapaz do comentário infeliz. E a gente acabou de presenciar uma desconstrução. Ali desmoronou um pouco do conceito de família que esse cara tinha — e que muita gente que assistiu ao vídeo também poderia ter. Há, é claro, quem julgue o rapaz pelo comentário infeliz mais do que pela sua reação ao final, que me parece muito mais importante: ele sacou que falou merda e esperemos que não fale de novo.

Panti Bliss foi uma das maiores figuras da campanha do casamento igualitário na Irlanda

Outro ótimo exemplo de desconstrução vem de um discurso de uma drag queen irlandesa chamada Panti Bliss. Panti diz que teria motivos pra odiar a todos por serem homofóbicos, mas não o faz, porque tem noção de que no fundo todos nós somos um pouquinho homofóbicos e, na opinião dela, é tudo uma questão de desconstrução. Tem gente que nem sabe a razão de ser homofóbica ou às vezes é sem prestar atenção. Ela diz que teria prazer em sentar com cada uma dessas pessoas e conversar sobre isso até ter certeza de que esse preconceito inconsciente e desestruturado fosse entendido como algo ruim. E assim como aconteceu com o rapaz do Altas Horas o entendimento seria construído através de uma argumentação bem-estruturada, vital e serena. E acredito cada vez mais nisso: a segurança e a serenidade são armas fantásticas contra o ódio na questão da argumentação.

Eu moro com um estudante de direito carioca heterossexual e heteronormativo que costumava usar do argumento “Tenho até amigos que são” como justificativa para alguns comentários bem, bem homofóbicos, desde “Se for viado mas agir como homem, tá tudo certo” — são incontáveis as coisas erradas nessa frase. Já tive que lidar com diálogos como:

- E esse shortinho, hein, Lucas? Precisa disso?

- Querido, eu uso short curto, você usa relógio grande. A gente não precisa usar essas coisas do tamanho que a gente usa. A gente usa porque gosta. E a gente se sente bem, né? É o que importa.

E eu sinto que ele às vezes tenta me provocar só pra ver se me tira do sério, mas ao responder do jeito que respondo eu sei que o impacto é bem maior porque eu tento não apenas responder, mas inseri-lo no meu argumento. E pasmem: tem dado certo. A problematização de certos assuntos já o fez refletir a tal ponto em que ele chegou pra mim e me perguntou “Lucas, eu sou homofóbico?”. Ele é. E muita gente é. Mas o que o diferencia de muita gente é que agora, aparentemente, ele desenvolveu uma preocupação em relação a isso. E isso é desconstrução. Isso é retirar pedrinha por pedrinha e tocar o coração das pessoas — como a Michelle Visage, a Panti Bliss e o filho das duas mães do Altas Horas fizeram comigo.

As desconstruções de conceitos e preconceitos geraram em mim a construção de uma nova personalidade, na qual a certeza de estar certo do que se faz e se diz resulta em segurança, auto-suficiência, auto-aceitação e auto-conhecimento. Vou continuar cometendo erros, gafes e tecendo comentários infelizes, sim. Eu erro. Mas tão importante quanto saber disso é saber que devo deixar de lado o orgulho, continuar problematizando o que merece ser problematizado e ir usando as lições da vida para melhorar a mim mesmo e às pessoas que convivem comigo.

E tive o prazer de falar um pouco disso tudo para a própria Michelle

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