[Conto] A Plenitude de Sofia

Guilherme Zanoni
Medium Brasil
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3 min readAug 28, 2014

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Sofia foi a décima sexta mulher a entrar na joalheria naquele dia. A sexta a de fato comprar algo. Disse ao rapaz que a atendeu que queria algo diferente. Nada de ouro, nada de prata. Mas, principalmente, nada de esmeralda. “Mas combina tão bem com os seus olhos!” insistiu o vendedor mostrando um par de brincos da mais fina pedra verde. “Eu sei. É por isso mesmo que não os quero. Esmeraldas já tenho duas, sempre as tive.” E completou “Não sei como não me cansei destas ainda” em tom de brincadeira. A verdade é que Sofia sabia que era destas mulheres que em tudo já são completas. Que embelezam a roupa que vestem. Daquelas que acrescentam brilho aos anéis ao colocá-los entre os dedos, que adoçam a essência ao borrifá-la no pescoço. Ela aprendera isso vivendo em seu corpo. O atendente da loja aprendera atendendo moças assim, tão únicas, tão elas.

Tomou sem muito critério um anel de pedra única azul-marfim, bela de tal forma que teria feito as outras quinze mulheres babarem se a tivessem visto em vez de deterem-se nos ouros e nas pratas.

Bastou Sofia colocar o acessório ao dedo médio direito e a pedra pareceu acender-se com o próprio brilho da vida. Em sua mão, o cristal criava um tipo único de efeito visual que preenchia o interior da pedra com as ondulações de um mar puríssimo. E seus olhos pareceram encherem-se de um brilho novo, como se os tons de verde e azul se misturassem numa cor nova.

Caminhando para longe das vitrines em direção à sua casa, Sofia e a joia se tornaram um. Uma segunda voz apareceu em sua mente. Não como um intruso, mas como um morador querido que retorna após um longo período afastado e é devidamente bem recebido pelos parentes e empregados, como alguém que já conhece todos os cômodos da casa, que sabe se orientar porque viveu ali durante muito mais tempo do que permaneceu afastado.

Sofia aproveitou-se da voz como a companhia agradável que era, a quem se oferece chá não por cordialidade mas pelo legítimo desejo de que a conversa se estenda ao máximo. Distraiu-se de modo que suas pernas tiveram de guiá-la sozinhas, dobrar a esquina, desviar os saltos vermelhos das poças de lama da chuva do dia anterior, e o corpo perdeu-se como se dançasse desviando das pessoas que passavam, esticando e encolhendo os braços para dar passagem aos outros, até subi-la pela escada ao seu apartamento. E Sofia dependeu da automatização das mãos também para abrir-lhe e fechar-lhe a porta.

E sentou-se à penteadeira e acendeu as mil luzes em torno do espelho e encarou perdida e profundamente o reflexo das três joias que agora possuía. E agora era plena. E agora via-se em cada fibra de sua íris, em cada ondulação da joia no seu dedo. Não em corpo, mas em si. Em essência, em alma, em consciência. Cada curva do olho, cada reflexo da joia era ela.

Era plena. Até que deixou de ser.

O relógio diria que pouco tempo se passou desde o bater da porta até o fim da plenitude de Sofia. Mas nela e para ela, passaram-se três eternidades. E os olhos escureceram e a voz do anel diminuiu, como a visita que aos poucos se cala por findar o assunto. E ela ansiou pelo fim do silêncio, implorou pela volta do brilho e que a voz falasse e que ela fosse ela de novo.

Olhou sua imagem no espelho. Olhou para o anel no dedo. Para o espelho, para o anel, para o espelho, para o anel. E o espelho se transformou no anel.

E Sofia se viu dentro da pedra, afogando-se na pureza das ondas de dentro da joia. E, num ato de puro desespero, foi tomada pela decisão enfurecida de que precisava ter o anel em si para ter-se de volta. Num movimento único, tirou o anel e o levou aos dentes, e o empurrou com a língua para dentro da garganta. Sentiu enroscar no pescoço e interromper o fluxo de ar. A garganta dilatou-se tentando expulsar o objeto três, quatro, cinco e desistiu na sexta vez.

E Sofia foi plena de novo.

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