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Deixe sair para depois entrar

Rafael Barbosa
Medium Brasil
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5 min readMar 16, 2023

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O relógio da estação marca duas e dezessete da tarde e a temperatura de trinta e sete graus. A sensação térmica está em torno dos quarenta e cinco. Faltam três minutos para o próximo trem. Anseia pelo ar-condicionado enquanto o suor escorre pelas costas, marcando a camisa cinza da sua banda favorita, a mesma que toca nos fones de ouvido. Acabou de postar uma foto nos stories e agora desce o feed do Instagram curtindo fotos e vídeos sem prestar atenção. Nesse calor, até pensar é cansativo.

O barulho do atrito entre a estrutura de metal acima do trem e os fios de energia elétrica chega antes do próprio veículo. Olha para o túnel e vê as faíscas nos trilhos e a luz dos faróis da composição. Torce para que não esteja cheio. Precisa se sentar e descansar.

O trem se aproxima veloz, cortando o ar e soprando uma lufada de ar em seu rosto. É sempre uma sensação estranha olhar pela janela do metrô nesse momento. Um lembrete de como tem vivido apenas como um observador da vida dos outros enquanto a sua ficou parada nas próprias lembranças.

A velocidade vai diminuindo e ele agora consegue ver os rostos de quem está em pé esperando para descer.

Com o tempo, aprendeu a calcular o local exato onde ficaria de frente para a porta. Quando ela se abre, escuta a voz característica da estação anunciando o conselho mais precioso que já recebeu em toda a sua vida:

“Deixe sair para depois entrar”.

Estava calor demais para pensar, mas sempre que ouvia essa frase era inevitável mergulhar em um mar de lembranças. Dessa vez, pelo menos, poderia escolher onde se sentar.

Apertou o botão de repeat no Spotify, guardou o celular no bolso, encostou a cabeça na janela e fechou os olhos. Os próximos trinta minutos seriam longos.

Sempre refletia se tinha feito a escolha certa ao vender o carro. Conforto e ar-condicionado às vezes compensavam todo o estresse com o trânsito caótico da cidade, mesmo que precisasse gastar com gasolina. Mas esses não foram os principais motivos que o levaram a abrir mão do conforto. Assim como tudo em sua vida, o carro também estava impregnado de lembranças. Do início e do fim. De boas e más lembranças.

Foi ali que tudo começou e foi ali que acabou. Entre o início e o fim, muita coisa aconteceu. Feridas que o tempo insiste em não curar. E todo mundo sabe que situações extremas exigem medidas desesperadas. Desapegar-se de tudo o que traz lembranças foi a sua medida mais desesperada.

Começou pelas fotos das redes sociais. Excluir era algo extremo, então preferiu arquivar. Mas fez aos poucos, para facilitar o trabalho de desarquivá-las no futuro. Alimentava a esperança de que tudo aquilo fosse temporário.

Com o tempo, começou a se dar conta de que aquela situação parecia cada dia mais definitiva. Das fotos das redes sociais, passou para as fotos do celular. Apagar era radical demais. Achou melhor ocultar. Não estava incomodando ninguém.

Meses se passaram até criar coragem para arquivar as mensagens. E a coragem só veio no dia em que se pegou chorando enquanto lia uma conversa simples, de um dia comum, sem nada de especial. Um bom dia e um dormiu bem seguido de um sonho estranho que teve na noite anterior. Mas era dessas conversas que sentia saudades.

A saudade é como um Gremlin, não deve ser alimentada após a meia-noite. Era melhor arquivar e evitar que ela se reproduzisse a ponto de se tornar uma tristeza insustentável.

Pareceu funcionar por algum tempo, até se dar conta de que fotos e mensagens de celular são apenas uma parte muito pequena do que é se lembrar de alguém.

A cama que agora parecia espaçosa demais para uma pessoa. Aquela banda que começou a gostar aos poucos de tanto ouvir juntos. Os presentes espalhados pela casa — porque são úteis e não porque são decorativos — e os lugares que frequentavam. Tudo isso compõe a experiência de viver ao lado de alguém, criando memórias vinte e quatro horas por dia, sem a opção de arquivar ou ocultar quando chegasse ao fim.

Certa vez, leu em algum lugar que o “o cérebro descarta as conexões mais fracas para assegurar que as lembranças mais fortes se consolidarão”. Lembranças tão fortes que mesmo tantos anos depois, o seu cérebro insiste em não descartá-las.

Não foi por falta de tentativa. Várias pessoas passaram pela sua vida, mas nenhuma delas foi marcante o suficiente para criar novas memórias que pudessem ocupar o lugar das antigas. Conexões fracas, diria um especialista.

Sem fotos e sem conversas bobas. Sem nenhum lugar especial. Ninguém conseguiu ao menos emplacar uma nova banda ou música. Tinha a sensação de que o seu cérebro estava comprometido para sempre, sem direito a novas memórias, revivendo as antigas dia após dia como uma forma de tortura.

Demorou um tempo, mas entendeu que a frase dita todas as vezes que o metrô abre as portas também serve para a sua própria vida.

Deixe sair para depois entrar.

Se a sua vida fosse um trem, estaria lotado de lembranças boas e ruins. Andando devagar por não ter força o suficiente para se mover. O passado é pesado.

Não sabia em quantas estações precisaria parar até que as lembranças começassem a desembarcar. E em cada uma dessas estações, havia uma plataforma repleta de novas oportunidades de conexão. Mas no momento não havia espaço para elas.

Precisava deixar o passado sair por completo para deixar que o futuro entrasse.

Acordou com o som de uma notificação no celular. Alguém reagiu a sua última foto dos stories, uma selfie em frente a um espelho da estação de metrô.

Era um emoji com corações no lugar dos olhos.

O trem começou a reduzir a velocidade. Havia mais passageiros nessa estação, andando e se aproximando da linha amarela de segurança. Nem todos aprenderam a ficar no local exato em que a porta irá parar.

Ele se levanta e escuta a voz anunciar mais uma vez: deixe sair para depois entrar.

Enquanto saía do vagão, abriu a mensagem no Instagram e respondeu com apenas uma palavra: gostou?

Ainda era cedo pra dizer, mas sentia que o vagão começava a esvaziar.

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Rafael Barbosa
Medium Brasil

Eu escrevo. Às vezes sai algo legal. Insta: @rafabarbosa