Deus não joga dados

Rodrigo Cerqueira
Medium Brasil
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4 min readNov 19, 2015

Tudo corria normal no Paraíso. Uma manhã como qualquer outra. Serafins preparavam o chá e arrumavam a mesa do café do Pai com os jornais do dia. Querubins separavam a papelada a ser examinada pelo Todo Poderoso, como fazia a cada manhã.

Tudo corria normal no Paraíso, exceto por uma ligação inesperada no telefone vermelho, que se situava na cabeceira do lado esquerdo da cama de Deus.

-Alô… — atendeu Deus ainda sonolento.

-S…Senhor… É… Lu…Lúcifer na linha vermelha — falou o Querubim secretário.

-A essa hora?! O que ele quer tão cedo assim? Ainda nem fiz o desjejum.

-N… Não sei, S..Senhor. Mas ele disse ser importante, Senhor.

-Tá bom. Pode passar a ligação.

O Querubim secretário, bastante nervoso e curioso com o teor da conversa, transferiu a ligação.

-Faaaaaala Deusola! Tudo bem aí em cima?

-Tudo indo, Lúcifer… Tudo indo. O que há de tão importante para me ligar a essa hora?

-Cavalo g4 bispo e3.

-O que?!

-Cavalo g4 come o bispo e3, ué.

-Putz… Você me ligou para isso?!

-Xeque! — Disse o Diabo com um leve tom sarcástico em sua grave voz.

-Xeque?! Não é possível — Falou Deus, levantando da cama, calçando suas pantufas e se dirigindo ao tabuleiro de xadrez localizado na mesinha de centro do Quarto Celestial.

-Humm… Tudo bem, é uma boa jogada, mas não poderia esperar um pouco mais para me ligar? Nem havia acordado direito.

-Eu sei, você sempre preguiçoso, adora um descanso. A jogada é muito boa, pode falar! Mas não foi só para isso que liguei não. Já viu a capa da Folha Celestial de hoje?

-Folha Celestial? Ainda não.

Dirigiu-se à mesa do café onde os Serafins haviam empilhado os jornais do dia. Procurou pela Folha e leu em voz alta a manchete de capa:

-“Massacre em Paris: mais de 140 mortos em atentados na capital da França. Grupo Islâmico radical assume autoria”.

-Uhhh… O bicho tá pegando por aquelas bandas hein?!

-O que você fez desta vez, Lúcifer?

-Eu?! Não fiz nada. Juro por tudo que é mais sagrado, hahaha.

-Tem certeza que não tem dedo seu nisso? Isso só vai deflagrar mais ódio naquela região.

-Claro que tenho. Não fiz nada Dêdê. Estes caras estão matando em seu nome. Você que é o culpado — novamente o tom sarcástico encheu a ligação

-Você sabe que não é tão simples assim.

-Claro que é. Manda uma chuva de pedras, enche aquela região de rãs, taca uma nuvem de gafanhotos, mata os primogênitos. Mete todo mundo no mar vermelho e inunda aquela zona. Você já fez isso antes.

-Outro contexto…

-Hum… Você que sabe. Se precisar de uma força, seu parça tá aqui pra ajudar.

-Tá bom Lúcifer, preciso desligar. Vou enviar uns Arcanjos para averiguarem a situação lá na Terra e tenho muita coisa pra fazer aqui, muitos despachos.

-Calma aí pô… Fique frio. Não posso nem bater um papinho com meu Pai…

-Não me chame de Pai!

-Hahaha. Desculpe, não resisti.

-Você sabe que não gosto.

-Ta bom, ta bom… Então me diga uma coisa. Por que você deixou que esse tal de Estado Islâmico fosse criado?

-Eu deixei?

-É pô… Esse é um daqueles seus grupos malucos de religiosos não é? Fazem musiquinhas para você, rezam para você, matam por você.

-Bom… Dizem que sim. Mas não fui eu quem os criou. Não diretamente.

-E por que te chamam de Alá?

-Os humanos me chamam de várias coisas. A você também, Satanás.

-É mesmo… Espécie doida essa que você criou. Eu disse para usar um barro de melhor qualidade.

-É…

-Bom, na verdade não liguei só pra gozar com sua cara não. Nem para jogar xadrez, embora tenha sido uma bela jogada, admita. Vim pedir uma coisa.

-Veio me pedir? Que coisa?

-Sim. Vim pedir pra você pegar leve aí. Estamos tendo muito trabalho aqui no Inferno com estas mortes.

-Eu já disse que não é tão simples assim…

-Que seja…Precisei queimar… digo… demitir uns Imps aí. Sabe como é… Essa crise não está fácil. Estamos operando com contingente reduzido e está difícil catalogar os novos integrantes aqui do inferno. Já imaginou se essa zorra vira uma Terceira Guerra Mundial, como ficarei?!

-Hum…

-E além disso, essa nova leva fica o tempo todo gritando “Cadê as donzelas?! Cadê as donzelas?!”. Essa gritaria tem deixado o Cérbero doido. Ele tem sono leve. Aquilo lá está um verdadeiro Inferno, com o perdão do trocadilho. Eu preferia aqueles que você mandava na época das cruzadas. Aquilo sim era época boa. Eles não gritavam nem esperniavam, só choravam e se mijavam de medo. Hahahaha, saudades. Hashtag bons tempos.

-Hash… O quê?

-Esquece.

-Bom… Infelizmente não vejo como posso te ajudar, Lúcifer.

-Você bem que poderia ceder uns Querubins e uns Anjos pra me ajudar… Sem custos, claro. Na parceria mesmo.

-Vou ver isso com o Miguel.

-Putz… Miguel é mó paia. Você sabe que não nos damos bem.

-O Miguel é quem cuida dessas coisas pra mim.

-Aff… Ok então. Se pudesse adiantar essa conversa com o Miguelete eu ficaria agradecido.

-Vou ver o que posso fazer.

-Certo… Ahh não esquece do Xeque. É sua vez de jogar.

-Hum… é mesmo, vou precisar de um tempinho para avaliar esta jogada.

-Não esquente, o tempo é todo seu, afinal você o criou, não é mesmo?! Hahaha. A propósito, que tal a gente jogar um outro joguinho quando esta partida terminar?

-Qual?

-War: Oriente Médio.

-War: Oriente Médio? Existe esse?!

-Hahahaha. Como você é trouxa. Cai em todas!. Mas esquece esse jogo. War não serve pra você.

-Por quê?

-“Deus não joga dados”! Hahahaha

-Muito engraçadinho você. Até logo, Lúcifer.

-Pô… Cadê o senso de humor celestial?

-Não estou de bom humor hoje.

-Tudo bem, preciso ir. O Cérbero acordou de novo aqui, causando aquele alvoroço. Tchau, Deus.

-Ok, ok. Tchau, Lúcifer.

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Rodrigo Cerqueira
Medium Brasil

Economista brasileiro. Degustador de bebidas escocesas e charutos cubanos. Admirador de filósofos alemães e escritores russos e apreciador de comida italiana.