M.D.N.

Do engano, o acerto.

Gabriel Schincariol Cavalcante
Medium Brasil
6 min readAug 16, 2015

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Dormir às vezes é cruel. Não dormir de fato, porque dormir é uma delícia sem fim. O momento antes de dormir às vezes é cruel. É cruel quando você está anestesiado de tanto cansaço e finalmente larga o corpo sobre a cama, esticando-se e dizendo Ahhhhh!. Acomoda-se na sua posição favorita. Fecha os olhos. E não dorme de jeito nenhum. Isso é crueldade. Eu estava morto de cansaço, me larguei na cama e disse Ahhhhh!. E não dormi. Estava um calor desgraçado, bem recorrente por sinal, que me fez começar a suar e me sentir irritado. Algumas pessoas tomam remédio. Outras enchem a cara. Como eu não tinha calmantes nem bebida e muito menos disposição para sair da cama, fiquei só odiando a vida em um silêncio constrangedor. Foi aí que a lembrança daquele velhinho corcunda carregando sua carriola pela cidade me veio à cabeça. Sabe-se-lá-deus porque, ele voltou a me encontrar, mesmo que só aqui dentro do meu cérebro sonolento e irritadiço.

Eu estava com a minha irmã no carro indo para algum lugar que ela precisava quando, logo após a linha do trem, um senhor careca, ou talvez com poucos cabelos, se tinha cabelos eram brancos, não tenho certeza, estava parado no meio da rua tentando amarrar algumas tralhas que despencavam da carriola que ele provavelmente estava carregando há algum bom tempo. Ele tinha cabelos e eram brancos. Poucos, mas tinha. Tenho certeza agora. Lá estava ele, no meio da rua sob um sol sádico, de costas curvadas viradas para os carros que vinham — o meu, nessa hora -, lutando — e claramente perdendo o combate — com seu veículo de uma roda. Lembro de ter pensado naquele momento Esse cara vai acabar sendo atropelado se continuar no meio da rua, velho as vezes é foda, antes de desviar e seguir meu caminho. Fomos seja lá onde tínhamos de ir e voltamos para o escritório depois de uns trinta minutos. Assim que estacionei o carro, minha irmã falou “Nossa, que dó desse senhor”. Ele estava ali na frente, de novo amarrando as tralhas na carriola — vi melhor agora, tinha algo parecido com um micro-ondas, talvez um guarda-chuva junto, umas garrafas, um par de botinas. Da linha do trem até o escritório não são dois minutos de carro. A pé, não mais que dez. A pé sob o sol sendo sustentado por pernas cansadas de tantos anos carregando uma carriola que insiste em não exercer sua função de levar as coisas dentro de si, creio que o senhor fez um tempo bastante razoável até lá. Talvez não digno de registro em livros de recordes e anúncios na TV, mas bastante razoável. “É foda, né”, eu devo ter falado para minha irmã. Ele estava se aproximando do carro vagarosamente, os velhos músculos do braço fino se contraiam pela força exercida, as veias saltadas. O rosto, tranquilo. Quando chegou ao lado do carro, parou e ficou olhando para minha irmã. Foi sorrindo bem devagar, como seus passos, como seu trabalho inútil e prazeroso de amarrar as coisas de volta na carriola. “Ô, fia!, como tá o Pedro?”. Minha irmã ficou vermelha, não sabia o que responder, olhou para mim e tentou falar baixinho Ele está me confundindo. Só que eu também não sabia o que responder, estava rindo junto com ele — não dele, não mesmo, juro que não. O senhor de poucos cabelos completamente brancos notou algo estranho e perguntou “Você não é a Joana?”, ou a Paula, ou a Maria, ou a Cristina, ou qualquer outro nome que eu não consigo lembrar, e minha irmã negou que fosse, pois não era, afinal. Ele riu de novo. Achei que fosse a Joana!, explicou. Havia sido um engano, um erro honesto. Olhou para mim, esperando que eu confirmasse que entendi a situação. Sorri, “Acontece”. Ele ainda achava que eu era conhecido do Pedro. Que eu era um primo, um sobrinho, um parente. Perguntou quem era a moça do meu lado e eu disse que era a minha irmã. Num tom de quem diz Mas é óbvio!, falou “Ah, por isso não conheci. Pensei que era a Joana! E ela já está guiando?”. Não tive coragem de corrigir, de dizer que eu também não o conhecia. Sim, ela já está guiando, já está dirigindo, contei para ele. Pareceu contente. “Pensei que era a Joana”, repetiu, parecendo se divertir. Ficou um pouco mais sério, determinado. “Ainda vou até a Vila do Olímpio agora”. A Vila do Olímpio é longe para mim, com 21 anos. Ele talvez tivesse 70, 80. E uma carriola. E um sol, infeliz com sua função e descontando a raiva no cliente, sobre sua cabeça de poucos cabelos. “As costas não tão doendo mais não, pelo menos. Mas tô tomando aquele remédio que a Paula deu”, e fiquei satisfeito por saber que a dor havia melhorado, mesmo sem nem saber dela há alguns segundos atrás. O senhor se despediu, disse que tinha Que ir indo que já tava tarde. Bom ver vocês, foi sua despedida. Bom ver o senhor também, respondi enquanto ele ia ficando menorzinho no retrovisor do carro. Igual o aperto no meu peito ia ficando bem grandinho.

Esse senhor ficou me perturbando aquele dia inteiro. Não sei o que acontece, esse tipo de situação sempre me deixa esquisito. Igual um garotinho que há mais de dez anos quis jogar no boliche da minha mãe, que tinha um boliche há mais de dez anos e não tem mais, mas não pôde porque tinha algum tipo de problema no desenvolvimento muscular. A tristeza da mãe em falar isso pra ele me deixou perturbado. Quando lembro hoje em dia, ainda fico. Porque o meu eu de 11 anos não ofereceu uma solução? Qualquer uma que fosse, segurar o garoto no colo e jogar a bola para ele. É só jogar uma maldita bola nuns malditos pinos no jogo mais estúpido da existência humana e nós negamos que ele pudesse fazer aquilo. Ele poderia, de algum jeito. O meu eu de 11 anos não ofereceu essa solução. O meu eu de 21 anos estava meio envergonhado pelo que havia pensado momentos antes, lá na linha do trem. Como os encontros se dão martelava na minha cabeça. As chances são muito pequenas de duas pessoas aleatórias se encontrarem no mesmo lugar no mesmo instante. Existem muitos lugares. Muitas pessoas. E eu encontro esse senhor duas vezes, em instantes distintos, lugares distintos. Ele vem falar comigo. Parece que estou construindo tudo para chegar no desfecho É obra do destino. Não. Não é nada disso. Só é absurdo e divertido e bonito num jeito estranho. A gente se cruzou ali, acolá, ele me confundiu e essa confusão trouxe alguma felicidade para um dia obviamente pouco feliz até o momento. A sensação depois de descer do carro era de que estava tudo errado. Comigo. Com todos nós. Que o sentido era aquele ali, encontrar pessoas, tornar seus dias mais felizes no mais bobo dos enganos e seguir em frente, provavelmente sem nunca mais se reencontrar, mas completamente transformado na menor das suas entranhas, na menor parte da sua essência. Consegui deixar o assunto para lá depois de um tempo. Até que tentei dormir numa noite especialmente quente.

Voltei a pensar nisso. No que estava fazendo. No que aquele senhor poderia estar fazendo naquele momento. Ele podia muito bem estar morto. E isso me deixou triste. Ou podia estar em casa com a Joana. E isso me deixou feliz. Talvez a Joana evitasse aquele senhor porque, como eu, ela pensava que Às vezes velho é foda. E isso me deixou envergonhado. Comecei a me perguntar porque diabos eu não saí do carro, peguei a carriola, enfiei no porta-malas gigante que um amigo, numa data qualquer, afirmou caber “oito corpos, pelo menos” e eu não fiz questão de saber como ele fez o cálculo, pedi para o senhor entrar no carro e o levei até a Vila do Olímpio? Meu eu de 21 anos e alguns dias atrás não pensou nisso. E isso fez com que eu me sentisse estupido. Eu nunca mais veria aquele senhor. Mas ele continuará me visitando, vez ou outra. Da rua eu ouvia o barulho de alguns carros que passavam, vez ou outra. Qual deles não atravessaria o caminho daquele senhor sem nunca o notar? Tanta gente anônima. Tanta história para ser ouvida. Tanta coisa para ser vivida. É isso que me deixa perturbado. Tudo o que não foi visto. Toda risada que não foi dada. Todo senhor de poucos cabelos completamente brancos carregando sozinhos suas carriolas por uma cidade cheia de gente, vazia de gente, que vai passar sem encontrar, por engano, a Joana e ficar feliz por isso. É a sensação de estar tudo errado. Menos a coincidência matematicamente improvável dos dois encontros entre mim e meu parente de mentirinha. O diabo é que eu nem perguntei pelo nome dele. E dormi sem saber como fazer tudo isso mudar.

Dormir às vezes pode ser cruel.

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