Marcos Fernandes
Medium Brasil
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12 min readSep 11, 2015

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“Eis um pequeno fato: você vai morrer”

Quando criança, dormir para mim era sempre uma desventura. Não porque, como todas as outras, eu queria continuar brincando: é que colocar a cabeça no travesseiro, fechar os olhos e sumir me assustava. Eu não me lembro de ter pesadelos em excesso — não era a possibilidade de encontrar monstros do outro lado da consciência, pelo menos, o que me botava medo. Em minha família eu sempre fui o último a pegar no sono e minhas noites eram constantemente recheadas dos sons de respirações alheias, uma orquestra biológica que tornava a insônia ainda mais solitária. Eu tinha mania de, no meio da madrugada, me enfiar na cama dos meus pais e tentar roubar deles o segredo para conseguir dormir. Às vezes dava certo. Às vezes o máximo que eu obtinha como resultado era ficar mais perto dos ruídos noturnos.

Em conversações, sempre que ouvia alguém dizendo que “adorava dormir”, ficava chocado (mesmo hoje eu tendo a achar estranho quando alguém apresenta uma afeição desproporcional pelo ato de descansar; eu entendo que seja uma necessidade biológica, mas não há nela, para mim, prazer como em comer ou fazer sexo) e me perguntava o que tinha de errado comigo.

Génie du Sommeil Eternel (Anjo do Sono Eterno) no cemitério de Montparnasse /Marcos Fernandes

Atualmente eu ainda tenho certa dificuldade em pegar no sono, à menos que esteja extremamente cansado e/ou bêbado. Por vezes a obrigação de acordar cedo no dia seguinte me deixa tão ansioso que, paradoxalmente, eu não consigo ficar quieto na cama e quase passo a noite em claro. Mas aquele pavor de dormir — de desaparecer desse mundo por algumas horas — não existe mais. Como eu disse, compreendo a necessidade física de me repousar e apagar a mente e o corpo temporariamente. Temporariamente, devo ressaltar.

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Já faz um tempo que eu me afastei da religião cristã, onde fui inserido por meus pais. Entretanto, tive que esperar alguns anos antes de começar a responder logicamente às questões que sempre indaguei a mim mesmo e que eram vetadas pelo medo imposto por interpretações bíblicas nefastas. Minha ideia a respeito da maior parte das crenças, hoje, é de que elas são fruto de temores: do desconhecido, da grandiosidade do universo, da pequenitude do homem, e sobretudo da morte. A religião é uma moeda de troca psicológica: enquanto eu a tenho comigo, possuo também a garantia de vida eterna, o que, geralmente, me permite viver com mais calma e alegria (nada terá fim, tudo recomeçará e nos reveremos todos em outro lugar).

O livro Staring at the sun, do terapeuta americano Irvin Yallom, apresenta de maneira bastante lúcida e clara como esse tipo de pensamento, ainda que representante de um alívio, retira da morte a sua essência: o recado de que tudo, um dia, termina. Acreditar numa “vida melhor” após a falência do corpo faz com que sejamos menos engajados em ter e construir uma vida melhor aqui, agora; e deixamos de lado desejos, sonhos e ambições que fariam dessa existência o nosso próprio paraíso pessoal. Sem falar em todas as restrições e preconceitos por trás da maior parte das religiões, que fecha a mente para as inúmeras possibilidades ao nosso redor.

Túmulo feito pela artista Niki de Saint Phalle no cemitério de Montparnasse /Marcos Fernandes

Eu me senti particularmente tocado pelo relato de Yallom, porque acabei de passar pelo doloroso processo de questionar as promessas feitas para mim enquanto criança. E eu também finalmente descobri porque dormir me assustava tanto (e porque eu nunca havia, antes, visto o que estava diante do meu nariz). O repouso noturno de todos os dias tinha, em minha cabecinha ainda jovem demais para entender, gosto de morte. Perder a consciência, ainda que por pouco tempo, me irritava; era como trair a vida, que continuava a pulsar do lado de fora da mente, com acontecimentos inúmeros e intermináveis. E talvez eu pensasse que morrer devia ser como entrar no sono e nunca mais acordar: portanto, preferia não arriscar.

Yallom trabalha com a teoria do filósofo Epicuro, que diz que o escuro pós-morte é irmão gêmeo do escuro pré-vida. A gente se assusta com o vazio de depois, mas estamos confortáveis com o vazio de outrora: o que você sentia antes de nascer? O que você via? Morrer deve ser igual, diz Épicure. Não dói, não irrita, não machuca. Não existe.

Túmulo feito pela artista Niki de Saint Phalle no cemitério de Montparnasse /Marcos F.

Essa teoria apazigua o medo do desconhecido (afinal, todo ser que nasceu estava “morto” antes de ganhar a vida e, portanto, já conhece o que vem depois), mas traz um novo sentimento: tristeza. Pensar em voltar ao grande e imenso nada, após ter provado o doce sabor de estar vivo, é desesperador e deprimente. Qual é o sentido, afinal, se tudo vai acabar? É por isso que a maior parte das pessoas se abriga na crença de um ser superior, de uma promessa de significação maior (eu inclusive, como explicarei mais abaixo). A questão é que ao mistificar a morte, deixamos de encará-la nos olhos — mas é nessa troca de olhares que passamos a nos conhecer de verdade, a questionar nossa natureza falha, a querer aproveitar os pequenos momentos que importam, a tomar consciência da sorte de simplesmente existir, mesmo que por um breve momento.

Eu passei anos sem ter coragem de ver o que estava em minha frente: a morte era apenas uma possibilidade distante e não um fato inexorável que se aproxima. Negar a natureza da morte não somente altera nossa relação com os outros, mas causa também conflitos paralelos: extremismos religiosos, fobias diversas, depressão, irritação, etc. (no meu caso, problemas do sono). A ideia de retornar ao vazio da não-consciência — porque fazemos mais do que existir: temos consciência de — me deixa irrequieto, mas essa mesma coceira na alma me faz ter vontade de correr atrás dos meus sonhos, de realizar a mais pequena vontade, de deixar meu rastro nesse mundo.

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A primeira vez em que fui ao cemitério de Montparnasse, em Paris, escrevi o seguinte trecho numa rede social:

O túmulo e a torre (Ou O turismo e a morte; Ou O que consideramos mórbido e o socialmente aceitável). (Em Paris, o cemitério de Montparnasse vira cenário de caça ao tesouro e caminhar com um mapa do local nas mãos, onde os mortos são números a serem encontrados — Sartre e Beauvoir são fáceis de serem vistos, dividindo o mesmo espaço, logo na entrada — é considerado uma atividade turística. Por um momento de suspensão, a imagem da morte abandona seu aspecto sem face e nome e passa a ser um item da lista “Coisas a serem feitas na viagem”, seja em inglês, espanhol ou português. E vira até foto de Instagram.)

Não me incomodava o fato de que os túmulos, ali, eram “tesouros” a serem encontrados — entretanto, algo naquilo me chamava a atenção. Hoje penso que o que mais me intrigou nesse tipo de cemitério-espetáculo foi o fato de que as pessoas nunca vão ser esquecidas; elas fizeram desta existência, única no sentido de que mortos não voltam à vida (pelo menos não no mesmo corpo, com a mesma consciência, as mesmas lembranças, os mesmos amigos, a mesma casa, os mesmos filmes, livros e programas de TV preferidos), o caderno no qual deixaram a marca de suas personalidades, de suas ideias, de suas lutas.

Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre, juntos no cemitério de Montparnasse /Marcos F.

É claro que nem todos seremos celebridades; nem todos escreveremos livros; nem todos comporemos canções. Nossos traços não precisam necessariamente estar fisicamente guardados num museu ou em bibliotecas do mundo inteiro — eles só precisam ficar marcados naqueles que nos importam mais que tudo no mundo. Amigos, familiares, amantes, estranhos. Nossa marca é diariamente distribuída em nosso quotidiano — é quem somos como pessoas não para nós mesmos, mas para os outros. Não quem pensamos ou deveríamos ser: quem somos, aqui, agora.

Ao escrever esse post, eu também estou deixando um fragmento de mim no mundo (como um ancestral pré-histórico, desenhando numa caverna). A internet nos trouxe a possibilidade de incrustarmos nossas ideias em um suporte virtual permanente que se pretende eterno. Me lembro vagamente de quando, seguindo o link de uma notícia, fui levado ao perfil no Orkut de um menino morto (que continha, se não me engano, depoimentos e scraps de pessoas em luto). Aquilo que me perturbou imensamente. Era como visitar a tumba de um desconhecido — um túmulo vivo, que pulsava através da rede, que sobrevivia anormalmente enquanto seu hóspede havia deixado de existir.

Objetos deixados no túmulo de Beauvoir e Sartre /Marcos F.

É por isso que, às vezes, me sinto chocado com a falta de cuidado das pessoas antes de publicarem algo na internet. Se pensarmos no fato de que ninguém divide a senha do Facebook com ninguém, chegamos à conclusão de que levamos conosco para debaixo da terra a chave que possibilitaria nossa morte virtual. Ninguém vai deleter seu perfil no Instagram quando você morrer. O que tornamos público, nas redes sociais, é também parte do que deixamos como rastro. Pistas de quem éramos enquanto existíamos. Quem você é no Twitter é quem você gostaria que as pessoas vissem no futuro?

A busca por fama, em minha opinião, se explica através do medo da morte. Certas personalidades são tão presentes no imaginário popular que são praticamente etéreas, inesquecíveis e, portanto, imortais. A sede de ser lembrado, conhecido e reconhecido é o abuso do rastro: deixa-se manchas gigantescas de si mesmo que não expressam a verdadeira natureza de quem a pessoa foi, mas de quem ela tentou parecer ser.

Nos últimos dias do Ken Humano, vi fotos suas publicadas enquanto ele padecia no hospital. Para mim, a quem o momento de morrer é extremamente pessoal e deve ser compartilhado com quem amamos, tal exposição era uma aberração. Mas talvez ela tenha sido um ato desesperado de alguém que zomba da morte, que a recusa, que a repulsa, que a desafia.

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A ficção está recheada de obras bem peculiares que tratam a mortalidade de uma forma delicada, sutil, suportável, provando que é possível e necessário encarar esse assunto de frente em algum momento (sem filtros religiosos). Além de inúmeros clássicos da literatura, autores recentes conseguiram obter sucesso mundial com obras em que a morte é personagem central.

Túmulo de Júlio Cortázar no cemitério de Montparnasse /Marcos F.

A história do menino bruxo de J. K. Rolling trouxe para o universo infantil a discussão da morte e da noção de eternidade e soube tratar do assunto, em diversos momentos, de uma maneira sutil e eficiente. A trama inteira girava em torno da negação da inevitabilidade da morte por parte do vilão, Voldemort, que, em busca da própria imortalidade, desfez-se de diversas vidas inocentes, chegando ao absurdo de tentar assassinar uma criança que poderia se tornar um inimigo em potencial. Sua ambição o fez dividir a própria alma em diversas partes e escondê-las (como muitos fazem, inclusive, através da religião: a morte do corpo não significa nada, visto que a alma está guardada em lugar salvo, protegida do mundo).

Do outro lado, havia Harry que, no fim, após mais de cinco mil páginas, entende que a luta por sobrevivência só faz sentido até certo ponto — e que morrer, em um dado momento, é natural. Ele aprendeu, é claro, com um mestre cheio de sabedoria: Dumbledore, para quem a morte era apenas “a próxima aventura” e que fez uso do próprio assassinato como último grande rastro que deixaria para a história.

Em A menina que roubava livros, também infanto-juvenil (ainda que tenha sido escrito com uma habilidade poética que agradaria a qualquer adulto), a morte aparece como narradora consciente do sofrimento humano e do próprio. Em tempos de guerra, ela se diz cansada de todo o trabalho que deve efetuar sozinha (a história se passa durante o período do nazismo na Alemanha) e se pergunta como é que, no meio de tanto desespero, a pequena Liesel Meminger consegue fazer de sua existência algo maior, melhor do que o contexto que a cerca. Porque se o dom de refletir sobre a nossa natureza vem com o fardo de reconhecer em cada novo dia um passo em direção ao fim, ele também nos permite identificar o que nos faz feliz, que nos invade de amor, o que nos traz esperança de um futuro melhor.

L’oiseau, de Nikki de Saint Phalle, no cemitério de Montparnasse /Marcos F.

Inquietos, de Gus Van Sant, rebusca o protótipo de romance adolescente onde um deles está em estado terminal e conta uma história que mistura morbidez e açúcar, carinho e cinzas, melancolia e doçura. O conto de Annabel e Enoch tem gosto de um outono onde a última folha a cair é a que sustenta a vida da jovem — que faz piada da própria mortalidade ao gravar uma fita com “Canções para morrer” (eu definitivamente incluiria The fairest of the seasons, da Nico, que faz parte da trilha sonora).

Esses são só alguns exemplos importantes para mim, mas a lista de obras que nos ajudam a lidar melhor com a noção de morrer sem se apoiar em ideias onde essa existência teria uma significância menor é enorme.

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Não quero, aqui, dizer que é preciso deixar de crer em deus para encarar a morte de frente. Mas mesmo que haja vida em outros planos, ela não será a mesma: então por que deixar de aproveitar essa em nome de um outro tipo de existência e consciência do qual ninguém, por mais que muitos o aleguem, sabe nada? Por que barrar desejos e sonhos, desde que estes não agridam o outro? Por que se privar de uma vida que está acontecendo agora por uma que ainda nem começou?

Pessoalmente, eu acredito no mistério. Acho que nós somos pequenos demais para entender tudo o que se passa no universo. Esse vácuo de compreensão abriga uma infinidade de possibilidades que as religiões tentam explicar há séculos e pode ser que todas elas estejam certas com relação a um ser superior que nos observa. Entretanto, para mim, ser feliz e estar bem consigo mesmo faz parte da espiritualidade de cada um, é intrínseco; qualquer religião que tente se colocar no caminho da evolução pessoal de alguém é apenas uma arma de manipulação. Qualquer religião que despreze a vida humana, considerando-a apenas uma ponte entre esse mundo e outro, minimizando experiências que poderiam estar sendo vividas ou separando as pessoas entre pecadores e salvos, contradiz-se automaticamente.

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Morrer nos instiga a viver, mas o contrário não acontece. Não queremos viver para morrer. Entretanto, não há nada que impeça esse destino: o máximo que podemos fazer é acalmar o sofrimento fazendo desta vida, única ou não, o melhor palco para o nosso espetáculo. Nascemos com certas coisas impostas pela loteria do acaso, biologica e socialmente (nosso corpo, nosso metabolismo, nosso sexo, nosso gênero, nosso rosto, nossa nacionalidade, nossa classe social, nossa raça, etc.). Mas eu acredito na força da decisão. Ainda que haja resistência, tem se tornado cada vez mais flexível e fácil mover pontos que antes pareciam fixos.

A mortalidade também nos acorda para o fato de que em nossa vida não precisamos nos sujeitar a nada que nos roube a alegria de existir. E a questionar regras sociais tidas como “naturais” que violam não somente nosso direito de envelhecer como queremos, mas o dos outros também. A morte nos apresenta uma razão de viver: lutar por uma existência que deixará bons e recordáveis rastros; e por um mundo onde crianças terão uma vida ainda melhor que a nossa.

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Originally published at palavrasdepijama.wordpress.com on August 12, 2015.

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Marcos Fernandes
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jornalista, sociólogo, escritor e tentativa de fotógrafo.