A/C: Sr. Deus - Do inferno ao céu

Rodrigo Cerqueira
Medium Brasil
4 min readDec 16, 2015

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Era bem cedo e o corredor principal do Palácio Celestial, marcado pelo seu enorme pé direito e cúpula abobadada, coberta de afrescos com a temática criacionista, nunca esteve tão cheio. Havia agora um congestionamento sem fim de Querubins, Serafins e Arcanjos, que corriam e voavam de um lado para o outro. Seus rostos exibiam, em maior ou menor grau, rugas de preocupação e em alguns era possível notar olheiras bem nítidas, sinais de uma noite mal dormida. Todos evitavam falar. Ouviam-se apenas sussurros em vozes angelicais por todo o Palácio.

Os Arcanjos mais próximos do Senhor, que ocupavam as cadeiras dos Ministérios Celestiais, se reuniam neste momento, à portas fechadas, no Grande Salão Nobre. Todos berrando e falando ao mesmo tempo, enquanto esperavam pela presença de Deus. Uma confusão enorme se fazia dentro do Salão.

Do lado de fora dos muros do Palácio, corria o boato de que toda a agitação do staff celestial se devia ao vazamento de uma carta endereçada à Deus. Era o assunto de todas as rodas de anjos. Cada um tinha uma teoria e alguns chegavam até mesmo a apostar sobre qual seria o teor e quem era o remetente da carta.

Alheio a todos estes acontecimentos, no Quarto Celestial, Deus penteava calmamente sua vistosa barba. Aplicou um pouco de balm nas mãos. Esfregou uma contra a outra e depois passou-as em seus fartos pelos faciais. Olhou para o envelope vermelho cor de sangue localizado em cima da cama, ainda desforrada pela noite anterior. O envelope estava lacrado, com um brasão bastante familiar em cera derretida. Dirigiu-se à escrivaninha e abrindo a primeira gaveta pegou um estilete. Foi até a cama, tomou o envelope para si e cuidadosamente rompeu o lacre com a ajuda do estilete. Retirou uma carta de dentro do envelope e leu-a.

“Inferno, Dezembro de 2015.

Senhor Deus,

Sementem ut feceris, ita metes (Cada um colhe conforme semeia)

Por isso lhe escrevo. Muito a propósito do intenso noticiário destes últimos dias e de tudo que me chega aos ouvidos das conversas no Paraíso.

Esta é uma carta pessoal. É um desabafo que já deveria ter feito há muito tempo.

Desde logo lhe digo que não é preciso alardear publicamente a necessidade da minha lealdade. Tenho-a revelado desde o início dos tempos.

Entretanto, sempre tive ciência da absoluta desconfiança do Senhor e do seu entorno em relação a mim e ao meu Principado de Maldades Diabólicas Belzebunianas (PMDB). Desconfiança incompatível com o que fizemos para manter o equilíbrio do universo.

Venho mantendo o inferno funcionando conforme o combinado desde a sua criação. Muito embora isto não tenha sido suficiente para que o Senhor deixasse eu agir por conta própria, retirando e pondo em xeque a minha autoridade junto aos meus.

Vamos aos fatos. Exemplifico alguns deles.

1.Passei todo o período do primeiro mandato, doravante compreendido como o Antigo Testamento, como um Diabo decorativo. Em Gênesis, por exemplo, o Senhor preferiu enviar uma serpente, um animal asqueroso, para expulsar Adão e Eva do Jardim, ao invés de pedir a minha ajuda.

2.Bem como, é sabido por todos que o Senhor agiu de má fé ao aceitar o sacrifício do Abel em detrimento do sacrifício de Caim. Fato que provocou o assassinato do primeiro. Novamente, eu e o PMDB não fomos sequer avisados acerca de tamanha atrocidade.

3.Jamais, em toda a sua primeira gestão, eu e meus demônios fomos consultados a respeito dos castigos perpetrados por Vossa Excelência. Do grande dilúvio ao massacre do Mar Vermelho, passando pelas destruições de Sodoma e Gomorra e pelas Pragas do Egito, o Senhor agiu novamente sozinho, no máximo com o auxílio de seus pupilos angelicais. O que demonstra uma total preterência em relação às minhas capacidades diabólicas.

4.Apesar disto, quando o Senhor quis se desvincular da imagem de sanguinário, violento e tirano, em um momento de desprestígio da Vossa gestão celestial e apelou para que eu e meu PMDB assumíssemos o “monopólio” das maldades do mundo, não pensei duas vezes e acatei a missão. Fato este que não rendeu nenhum reconhecimento por parte de Vossa Excelência.

5.Mais recentemente, com relação ao pacote aprovado pelo Ministério da Fazenda Celestial, no que diz respeito ao ajuste fiscal, a maior parte dos cortes do orçamento concentram-se na minha pasta. Cortes estes que me obrigaram a reduzir o efetivo de demônios e dobrar a carga horária dos carrascos e dos castigos, o que tem desagradado a todos aqui nas profundezas. Mesmo com o corte, o aporte de almas ingressantes no Programa do Castigo Eterno continua crescendo, o que nitidamente compromete a eficiência de longo prazo de todo o Programa.

6.Tudo isto posto, apesar dos pesares, tenho agido conforme o combinado e cumprindo com minha parte neste acordo. A despeito das informações que rondam o Palácio Infernal, tenho total ciência de que o Senhor estaria perpetrando ações na tentativa de dividir o PMDB, aliciando meus demônios na promessa de transformá-los em anjos, assim como já tentou no passado, sem sucesso.

7.Reitero que desde o início dos tempos tenho cumprido com as minhas atribuições com primor. Procurando ser o mais eficiente possível. Sou publicamente conhecido pelo meu rigor e alcance dos objetivos a mim estipulados. Embora não haja reconhecimento.

Finalmente, sei que o Senhor não tem confiança em mim e no PMDB, hoje, e não terá amanhã. Lamento, mas esta é a minha convicção.

Diabolicamente,

\ L LUCIFER

A Sua Excelência o Senhor

Todo Poderoso Deus

Deus Supremo de Todo o Universo Celestial

Palácio Infernal”

Depois de ler a carta não teve dúvidas. Foi até o telefone vermelho. Solicitou ao Querubim secretário uma ligação direta com o inferno. Tinha plena convicção de que a relação entre ele e Lúcifer não exigia tamanha formalidade e queria saber quais eram as reais intenções do Diabo ao utilizar, de forma bastante protocolar, um instrumento tão em desuso como o papel. Um cheiro esquisito rondava o Palácio Celestial e não era de enxofre.

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Rodrigo Cerqueira
Medium Brasil

Economista brasileiro. Degustador de bebidas escocesas e charutos cubanos. Admirador de filósofos alemães e escritores russos e apreciador de comida italiana.