Ficar acordado é perda de tempo
Já não tinha vontade nenhuma de acordar e levantar da cama.
Preferia dormir a ter de encarar a própria vida. Nos sonhos, pelo menos, ainda existia um pouco de alegria.
E era sempre o mesmo sonho. Na verdade, era mais uma lembrança de um dos seus últimos dias de felicidade.
Acordava sempre no mesmo ponto do sonho, quando estava prestes a dizer alguma coisa. Sabia que era algo importante, mas quando abria a boca, despertava completamente.
Dia após dia, sonhava e acordava sem conseguir terminar a frase.
Tentava voltar a dormir e retomar o sonho do mesmo ponto, mas nunca dava certo. E mesmo se tratando de uma lembrança, por mais que se esforçasse para recordar o que havia dito naquele momento, encontrava apenas um enorme vazio. Como algo tão importante podia fugir assim da própria cabeça?
O nosso cérebro é mesmo um mistério.
Era algo importante. Tinha certeza. Mas não sabia dizer ao certo se essa parte específica havia acontecido ou se era apenas fruto do seu subconsciente. Só sabia que precisava colocar isso pra fora de qualquer maneira.
Sentia que sua vida dependia disso, pois a cada despertar sem dizer a frase, algo morria dentro de si. Não sabia se a própria vontade de viver ou a esperança.
Sabia que ficar acordado era perda de tempo. Tentar lembrar a frase enquanto estivesse acordado não levaria a lugar nenhum. Era algo tão forte e tão profundo que seu consciente não seria capaz de processar. Precisava dormir. Sonhar era a única forma de alcançar esse sentimento.
Na mesa de cabeceira havia apenas remédios para dormir.
Só saía da cama para encher a garrafa de água. Não fazia mais questão de trocar os lençóis. Banheiro, apenas em casos de extrema necessidade.
Também já não sentia fome. Em questão de semanas, percebeu que suas costelas ficavam cada vez mais visíveis sob a pele. O estômago doía, mas nada era mais importante que conseguir dizer o que precisava.
Para alguém que gosta de externar o que sente, não poder falar é uma das piores torturas. Chega a ser física a dor do não dizer. Do não se abrir. Do não se declarar.
Engoliu mais quatro comprimidos para dormir. Precisava tentar mais uma vez. E mais uma. Até conseguir dizer o que ficava travado no sonho.
Já não era uma questão de curiosidade. Sabia que, naquele momento, sua vida e a própria sanidade dependiam disso.
Era um dia de sol. Com a janela do carro aberta, sentia o vento no rosto. Apesar do calor, a brisa estava refrescante. À frente apenas uma estrada reta, vazia e tranquila. Tão tranquila que conseguia guiar com apenas uma das mãos. Com a outra, fazia carinho nas mãos dela . Havia música e ela sorria. Ele estava feliz.
Agora estão caminhando por um parque com muitas árvores e banquinhos verdes a cada dez metros. Consegue perceber seus lábios se mexendo mas o sonho não tem som. Mas ela ri. Aquele riso solto guardado para aquelas ocasiões em que ele fazia um comentário engraçado. Olha para o céu e vê o sol muito maior do que deveria ser, em um tom alaranjado, de fim de tarde. Não sabia se era o sol ou aquele sorriso que iluminava o dia. Ele estava feliz.
Agora estão deitados na cama. Ela está com a cabeça repousada em seu peito enquanto ele passa os dedos pelos seus cabelos, pescoço e queixo. Ela segura sua mão por cima, entrelaçando os dedos e fazendo o contorno de cada um, começando pelo polegar e terminando no mindinho. Tem medo de respirar um pouco mais forte e atrapalhar aquele momento. Ela olha para cima e diz alguma coisa. Ele não consegue escutar, mas sabe o que ela disse. Sabe que chegou a hora.
Sente seu coração acelerar. É nesse momento que ele tenta falar e sempre acorda.
Inspira profundamente, como se fosse gritar. Abre a boca e, lentamente, sente as palavras saindo, letra por letra, sílaba por sílaba.
“Eu sinto a sua falta todos os dias”.
A última palavra sai com um misto de choro e riso. Sente seu corpo relaxar.
Sabe que não vai mais acordar. E nem precisa. Ele está feliz.
