Indigestão

Rafael Barbosa
Medium Brasil
Published in
15 min readJun 16, 2019

--

Era o quarto dia seguido de diarreia. Com o corpo fraco e desidratado, não conseguia se levantar do chão do banheiro.

Será que ainda havia alguma coisa em seus intestinos para ser expulsa de forma tão violenta?

Sem forças para qualquer outro movimento, tentou puxar pela memória o que poderia ter causado esse problema.

Começou numa segunda-feira à tarde.

Saiu para almoçar ao meio dia em ponto.

O café da manhã foi o de sempre: duas torradas e um copo de suco. Não tinha muita fome pela manhã, mas o apetite aumentava conforme o horário do almoço se aproximava.

Gostava de almoçar sozinho. Não era fã de conversas enquanto comia. Exceto quando era algum almoço de negócios.

A hora do almoço era sagrada e jamais desperdiçava seu tempo e atenção com outras pessoas.

De longe sentiu o cheiro de sujeira, suor e fezes. Sabia de onde vinha e o que fedia tanto.

O pedinte que ficava na porta do restaurante.

Achava inaceitável alguém tão fedido porta de um restaurante pedindo esmola e ninguém tomar uma atitude.

Sempre passava direto, fingindo não escutar o pedido de umas moedinhas ou um prato de comida. Mas estava começando a se irritar. O cheiro o irritava. A imundice o irritava. Ninguém tomar uma atitude o irritava.

O pedinte não era velho e não parecia estar doente. Será possível que esse cara não procura alguma coisa pra fazer da vida? — Pensou enquanto se preparava para entrar no restaurante.

“O senhor tem umas moedinhas pra me dar ou pode me pagar um almoço”?

Dessa vez não conseguiu se controlar.

“Escuta aqui, eu até te daria umas moedas ou pagaria o seu almoço, mas você não me parece doente, não é velho e me parece ter condições de arrumar um bico para tirar uns trocados se tomar duas coisas: um banho e vergonha na cara. Eu não vou te dar umas moedinhas. Eu não vou pagar o seu almoço. E espero que ninguém aqui faça isso. É por causa de gente como você, acostumada a ficar encostada, pedindo e esperando as coisas caírem do céu que o país está desse jeito. Vai trabalhar, vagabundo!”

As pessoas ao seu lado ficaram paralisadas, assistindo àquela cena.

Sentiu o olhar do pedinte penetrar em seu corpo e em sua alma.

Nunca tinha sido encarado daquela forma e não sabia dizer se o que via era ódio, raiva, tristeza ou determinação.

Sentiu-se arrependido, mas não pediria desculpas. Não estava errado.

Virou as costas e começou a andar quando escutou…

“Aproveita enquanto tem saúde. Enquanto tem dinheiro. Enquanto tem uma vida. Por fora você pode até se sentir melhor que muita gente, mas por dentro todo mundo é a mesma merda. Alguns mais fedidos que outros. Espero que o seu almoço esteja bom, mesmo para um merda como você”.

Parou e pensou em se virar e dar uma lição no pedinte folgado. Mas não queria chamar ainda mais a atenção das pessoas ao seu redor.

Seguiu em frente, já sem o mesmo apetite.

Não se lembrava de ter colocado nada diferente no prato. Um pouquinho de arroz, feijão, alface, tomate, brócolis, cenoura e rúcula. Um pedaço de pernil assado e um ovo frito.

Tentava se recordar do cheiro e do sabor de cada um daqueles ingredientes, mas nenhum deles pareceu estar estragado no dia.

O primeiro sinal veio duas horas depois.

Conferia os relatórios de vendas da última semana quando sentiu uma pontada do lado direito do corpo, um pouco acima do abdome. Foi apenas um incômodo, pensou. Mudou a postura em sua cadeira para ver se a dor passava.

Dois minutos depois estava curvado em sua mesa, com os dentes trincados e uma veia estufada na têmpora esquerda.

Nunca havia sentido uma dor tão forte quanto essa. Parecia que estavam cortando suas entranhas em vários pedaços.

O estômago se revirou. Sentiu o refluxo subindo pelo esôfago rumo à garganta. O gosto azedo parou em sua boca e soube que precisava correr para o banheiro.

Por sorte havia um em sua sala. Uma das vantagens de ser chefe.

Foi o tempo exato de chegar ao banheiro e abrir a tampa da privada para que o primeiro jato de vômito saísse pela sua boca.

Grãos de arroz, feijão e alguns pedaços de folha formaram uma sopa horrível no vaso. O cheiro azedo entrou pelas suas narinas e o fez vomitar novamente.

Ele odiava vomitar. Preferia ser torturado por alguém arrancando unha por unha de suas mãos e pés à ter de colocar o almoço para fora pelo mesmo caminho que entrara.

Sentiu uma nova pontada do lado direito, ainda mais forte que a primeira. Algo se moveu dentro de sua barriga.

O suor escorria pelo rosto e marcava a camisa social azul.

Sentiu o diafragma estufar e fazer força para empurrar alguma coisa. Cuspiu um pouco mais de arroz e alguns fiapos de carne com um cheiro horrível, mas ainda havia algo preso no meio do caminho.

Ofegou e apertou as bordas da privada enquanto sentia o corpo agindo por conta própria tentando expulsar o que quer estivesse bloqueando a passagem.

O diafragma fez força novamente. Algo grande e pesado subiu pelas entranhas e parou na altura do peito. Mais um impulso inconsciente de seu corpo tentando empurrar o que estava travado, sem sucesso.

Abriu a boca e enfiou dois dedos na garganta para ajudar no processo. Sentiu a ânsia de vômito aumentar e o corpo respondeu imediatamente. O diafragma, usando toda a sua força, empurrou esôfago acima o que estava agarrado.

Sentiu a garganta se dilatar. Abriu a boca o máximo que pode enquanto urrava e sentia a comida saindo de seu corpo.

Dessa vez veio algo diferente. Parecia uma linguiça estufada, mas não se lembrava de ter comido linguiça nos últimos meses.

Não teve tempo de olhar o que era aquilo. Assim que botou pra fora, sentiu o intestino fazer a sua parte empurrando mais alguma coisa pela parte de baixo.

Por pouco não conseguiu desafivelar o cinto e abaixar a calça. Sentou-se no vaso, enojado com os respingos de vômito e arroz no assento da privada entrando em contato com a sua bunda.

Fez força e teve a sensação de estar mijando pelo rabo.

Não parecia uma diarreia normal. A impressão é de que realmente estava mijando. Foram jatos constantes e volumosos de água saindo por baixo.

O fedor tomou conta do banheiro.

Levantou-se para se limpar e deu uma olhada.

A espécie de linguiça estava coberta pelos pedaços semi-digeridos que havia vomitado e pelo caldo de merda que empurrava o fedor para dentro de suas narinas.

Não aguentou olhar para aquele desastre por muito tempo e deu descarga.

Limpou-se até sair sangue. Subiu a calça e se olhou no espelho. Parecia ter envelhecido dez anos em vinte minutos.

Lavou o rosto e encerrou o expediente. Tinha de ir para casa. Não dava para continuar assim.

Melhor sair agora que não tem trânsito do que arriscar uma nova sessão de vômito e diarreia no meio do caminho.

Conseguiu sobreviver ao trajeto, mas chegando em seu apartamento, o suor no rosto dizia tudo: não dava mais para segurar.

Já estava sem cinto e com a calça desabotoada quando veio uma nova onda de fezes. Sentiu o primeiro jato inundar a cueca e escorrer pelas pernas.

Sentar no vaso seria pior. Entrou no box ainda de roupa enquanto a merda saía abundantemente.

Derrotado, despiu-se enquanto o corpo se dobrava instintivamente para baixo.

O chão do box estava marrom escuro e restos de alface agarravam-se na grade do ralo sendo forçados pela água que descia da ducha.

Notou alguns pedaços estranhos e avermelhados. Não era sangue, mas também não era o pernil que havia comido no almoço. Talvez fosse alguma impureza que estivesse causando esse problema.

Deixou o corpo trabalhar colocando tudo pra fora.

Enquanto o esfincter se estufava, uma nova ânsia de vômito brotou em seu estômago.

A saliva veio com um gosto azedo. Sentiu um grão de arroz agarrar-se no fundo da garganta, cuspindo com todas as suas forças.

Já embaixo do chuveiro e sem nada a perder, enfiou dois dedos na garganta com a mão quase inteira dentro da boca.

Dessa vez veio de primeira. Uma onda de choque subiu pelo esôfago empurrando mais alguma coisa. Parou em sua boca. Redondo e liso. Cuspiu sem pensar duas vezes.

Não se lembrava de ter comido tomate cereja verde o\u algo parecido com isso. Comeu brócolis, mas aquilo definitivamente não era o mesmo. E fedia a bílis.

Tinha nojo demais de vômito para encostar naquela estranha bolinha verde.

Abriu o ralo e a empurrou com o chuveirinho da ducha, despedindo-se do que quer que fosse o que agora descia pela tubulação do prédio.

Ficou embaixo do chuveiro por mais vinte minutos, despejando jatos de merda e a dignidade pelo ralo.

Se continuasse assim durante a noite, procuraria um médico.

Colocou uma samba-canção e deitou-se com o corpo ainda molhado. Não tinha forças para mais nada e só queria melhorar. Ou morrer dormindo.

O sonho veio como os últimos acontecimentos: estranho e inesperado.

Estava em frente a uma casa. Era estranha vista de fora, mas lembrava uma das casinhas da cidade de sua avó.

Não havia grade ou cerca, apenas um pequeno caminho de cascalho levando em direção à porta.

Tudo parecia sujo e abandonado.

Na fachada havia duas janelas e uma porta. O telhado era colonial, com várias telhas faltando. Por fora não parecia uma casa grande, mas não conseguia ver os fundos.

Escutou um gemido muito baixo vindo de dentro da construção. Talvez alguém pudesse ajudá-lo.

A porta estava apenas encostada, sem maçaneta. Empurrou com uma das mãos, movendo-a com dificuldade. Devia estar emperrada.

Fez um pouco mais de força para conseguir abri-la.

Entrou direto na sala.

À sua direita, uma porta levava à cozinha. Em frente, havia uma varanda que dava para os fundos da casa.

Por dentro, a casa parecia muito maior que vista de fora.

A claridade entrava pelas janelas da frente e pela varanda dos fundos. Sentiu que algo ali não estava certo.

Deu um passo a frente e quase tropeçou.

O chão era uma mistura de azulejos quebrados e pedaços de madeira estufados. Estava descalço e sentia as farpas e cacos cortando seus pés. Porém não sentia dor. A única coisa que sentia era o fedor.

O cheiro era insuportável. Uma mistura de podridão com poeira antiga. Lembrou-se de animais mortos na estrada e da central de tratamento de esgoto da sua cidade.

Essa associação pareceu correta em sua cabeça, mesmo nunca tendo sentido nada parecido.

As paredes eram vermelhas, descascando-se em vários pontos.

Um único quadro decorava uma dessas paredes, mas não conseguia ver o que havia na moldura. Estava coberto por uma espécie de lama.

Tudo ali parecia impregnado por essa lama.

Percebeu, pouco acima desse quadro, que a cor da parede mudava. Era branca. Mas ainda assim estava suja.

Pensando bem, nem o vermelho parecia ser vermelho. Estava mais para marrom. O local parecia ter sido inundado por uma enchente de lama.

Viu poucos móveis apodrecidos e quebrados.

A casa parecia abandonada há muitos anos, mas o odor que tomava conta do lugar parecia recente.

Escutou novamente o gemido, agora um pouco mais alto, vindo do corredor logo à frente.

Andou em direção ao gemido deparando-se com uma porta.

Escutou o barulho de líquidos se chocando.

À medida que atravessava o corredor, o cheiro de podridão ficava mais intenso. Parecia haver algo morto ali dentro.

Abriu a porta e viu uma cena inesperada.

Era um banheiro e, sentado na privada, estava o pedinte da hora do almoço.

Ele não estava gemendo. Estava sorrindo. Um riso cínico com dentes podres à mostra.

“Conseguiu chegar a tempo em casa ou se borrou no caminho”? — perguntou o pedinte.

“Como você sabe que estou com diarreia”?

“Ah, meu amigo. Eu reconheço um homem com vontade de cagar. E a sua cara não nega. Você tá se cagando desde a hora do almoço”.

O pedinte emendou a frase com mais um risinho e um novo jato de merda.

“O que você colocou na minha comida”? — ele perguntou, começando a se desesperar.

“O que você acha? Eu coloquei merda na sua comida. Gostou do meu temperinho especial? Tá sentindo o cheiro? É o mesmo da hora do almoço”.

“Não é possível! Você não entrou no restaurante depois que discutimos”.

“Talvez eu não precisasse entrar. Talvez eu já tivesse entrado e temperado a comida de todo mundo. Ou talvez você seja apenas mais um merda com dor de barriga”.

“Eu vou te matar, seu filho da puta”! — gritou enquanto corria em direção ao pedinte que permaneceu sentado em seu trono de porcelana.

Parou quando escutou um barulho estranho vindo do lado de fora da casa.

“Se eu fosse você ficaria preocupado com esse barulho”.

O pedinte se levantou sem limpar o rabo. Deu uma coçada na bunda e levou os dedos ao nariz.

“Mais cheiroso que essa casa de merda”.

“O que é esse barulho”?

“Quer mesmo saber? Passe o dedo na parede e sinta o cheiro”. — disse o pedinte enquanto limpava o dedo na camisa.

Ele foi em direção a uma das paredes sujas e passou o dedo de um lado ao outro. Onde seu dedo passava, a cor mudava. Saía do marrom para um tom de próximo de um branco muito sujo.

Levou o dedo com uma camada generosa de lama ao nariz e respirou fundo.

“Merda. Isso é merda. Essa casa tá toda suja de merda”.

O pedinte começou a gargalhar e a se cagar ao mesmo tempo.

“Pois é. Essa casa foi inundada de merda e está prestes a ser novamente. Olhe pela janela”!

Correu para a sala onde havia duas janelas e viu uma onda marrom descendo em direção à casa.

“Eu tenho de sair daqui!”

Correu em direção à varanda dos fundos, mas parou, desesperado, ao notar o muro com mais de dez metros de altura.

Não conseguiria escapar por ali.

Voltou para dentro da casa enquanto o barulho do tsunami de merda ficava mais alto. Parecia um rio, daqueles que visitava com os pais quando passava as férias na casa dos avós.

Tentou fechar a porta da casa quando a torrente de merda finalmente o atingiu.

A pancada foi tão forte que o despertou.

Acordou sabendo que havia se cagado e sujado toda a cama.

Passou a noite em claro.

Jogou tudo fora. O cama, o colchão e os lençóis sujos de merda.

Seu Antônio, o porteiro do prédio, estranhou a movimentação, mas não disse nada. Não era da sua conta. Só achou estranho o cheiro que vinha dos móveis.

“Se esse rapaz descer com alguma coisa enrolada em mais cobertores eu chamo a polícia”, pensou. Mas ele não voltou.

O estômago ainda estava ruim, porém não vomitara novamente.

Pesquisou na internet por “diarreia severa sintomas”, querendo saber o que poderia estar acontecendo com seu corpo.

Como qualquer sintoma pesquisado no Google, os resultados prováveis eram câncer ou gravidez. Desistiu de procurar.

Ligou para a empresa e avisou que não iria trabalhar.

Também não iria ao hospital. Não queria arriscar sair daquele jeito.

O pouco que restava da sua dignidade seria mantida dentro do apartamento.

Nada parava em seu estômago. Tentou comer torradas e não conseguiu segurar a primeira mordida. Nem água aliviava a situação.

Sabia que precisava se hidratar, já que estava há mais de 48 horas vomitando e com diarreia severa. Se continuasse assim, poderia até morrer.

Mesmo que vomitasse logo em seguida, não ficaria sem se hidratar.

Passou o resto do dia sentado no banheiro com o notebook no colo e uma jarra de água ao lado. Se a diarreia desse uma trégua, iria ao hospital no dia seguinte.

Conseguiu fechar os olhos por alguns momentos, sempre acordando para mais um encontro com a privada.

Ironicamente, o banheiro havia se tornado o melhor cômodo da casa.

Cochilava há quatro minutos quando a dor o despertou.

De novo não, pensou.

Sentiu seu abdome sendo novamente repuxado por dentro.

Agora a dor era do lado esquerdo.

Lembrou-se da vez em que brigara com o valentão da escola.

Depois de ser empurrado e cair de cara no chão, levou um chute na altura dos rins. A pancada foi tão forte que mijou sangue por dois dias.

Será que depois de vários anos, aquele chute estaria fazendo algum efeito?

Enquanto a dor no abdome ficava mais forte, começou a sentir algo estranho também na altura da bexiga. Olhou para baixo e viu o córrego vermelho correndo pela sua perna e espalhando-se pelo chão do banheiro.

Era sangue. E, para piorar, estava saindo pelo seu pau.

A visão de sangue o paralisou. As dores no abdome e na bexiga perderam importância. Havia algo muito errado acontecendo com seu corpo. Começou a chorar.

Precisava chamar uma ambulância. Precisava correr para o hospital. Tentou se levantar mas foi empurrado para baixo pela força das dores que voltaram com tudo e ao mesmo tempo.

Enquanto sua bexiga expulsava mais alguns jatos de sangue, sentiu o intestino trabalhar para colocar mais alguma coisa para fora.

Já não sabia dizer onde doía.

Com dificuldade, conseguiu sentar-se na privada. Um borrifo de merda abriu caminho para o que estava vindo. Sabia que não seria líquido como nos outros dias, pois seu esfíncter se dilatou mais que o normal para expulsar a massa de fezes.

Em meio à dor, ficou feliz em saber que pelo menos a diarreia estava se resolvendo. Se estava doendo, é porque era sólido.

A dor aumentou quando o bolo fecal, mais grosso que a saída do seu reto, foi expulso com força batendo direto na água e espirrando várias gotas em sua bunda.

Ao mesmo tempo, urinava sangue.

Sentiu que seu esfíncter estava danificado para sempre. Percebeu que sangue começou a pingar direto de sua bunda.

Com dificuldade, segurou na parede e levantou-se para olhar o que havia saído. Percebeu que era… uma linguiça?

Isso era impossível. Não comia nada sólido há três dias. Não poderia ter cagado uma linguiça inteira.

Levantar de uma vez o deixou tonto. A linguiça foi a última coisa em que pensou antes de cair desacordado no chão do banheiro.

Era o quarto dia de diarreia.

A boca estava completamente seca e os lábios rachados.

Deitado no chão frio do banheiro, se contorcia a cada nova pontada em sua barriga. Não havia nenhuma posição em que encontrasse alívio.

Notou que a diarreia agora vinha acompanhada de dores.

Sentiu algo se repuxando em suas tripas e teve a impressão de que as entranhas estavam se derretendo.

Sua pressão abaixou, as vistas ficaram turvas e, assim como o repuxo do mar que precede a chegada de um tsunami, sua barriga se contraiu ao mesmo tempo em que seu esfíncter, já completamente rasgado, perdeu o resto de controle muscular que ainda existia.

Estava tão desnutrido e desidratado que não conseguiu sequer sair do lugar.

Deitado na porcelanato escuro de seu banheiro e completamente nu, sentiu a maré descer.

Seu ânus se dilatou e ardeu enquanto aquilo saía de dentro dele. Não sabia explicar de onde vinha a força que expelia tudo para fora.

Começou a chorar.

De tão desidratado, havia emagrecido doze quilos em quatro dias. Seu corpo magro destacava a protuberância em sua barriga. O abdome subia e descia com o esforço de colocar aquilo pra fora.

Enxugou as lágrimas e notou que elas estavam com uma coloração estranha. Só faltava essa, chorar sangue. Mas a cor era diferente do que saía de sua bunda e do seu pinto.

Levou as mãos ao nariz e sentiu o mesmo cheiro que infestava o ambiente.

Estava chorando lágrimas de merda.

Em meio à soluços, não se importou quando uma última carga de fezes foi despejada para fora. Seu abdome subia e descia. Subia e descia. Agora cada vez mais devagar. Subia… e descia. Subia… e descia. Até que parou.

Dois dias depois, seu Antônio entrava em seu apartamento com a ajuda de um chaveiro. O rosto coberto por uma camisa tampando o nariz e a boca, pois o cheiro era insuportável.

Precisou tomar essa atitude depois que os vizinhos começaram a reclamar do odor de esgoto vindo daquele apartamento.

Seu Antônio se perguntou como um rapaz que parecia ser tão arrogante poderia deixar a casa naquele estado.

Manchas marrons por todos os cantos. No sofá, nas paredes, em vários pontos do piso. Notou que essas manchas trilhavam um caminho até o banheiro, onde provavelmente estava o refluxo do esgoto.

Ao abrir a porta do banheiro, o porteiro quase desmaiou com o que encontrou.

O rapaz estava deitado no chão, em cima de uma poça de merda e sangue, com metade do intestino saindo pela bunda. Ao redor do corpo, alguns pedaços de carne apodrecida repletas de moscas.

O rosto contorcido em uma eterna careta de dor. Da boca parecia haver sangue e fezes secas. Os olhos sem vida, parecendo pêssegos enrugados, pareciam ter chorado a ponto de explodir.

Havia sangue e merda endurecido em todas as cavidades do corpo do rapaz.

Seu Antônio fez o sinal da cruz enquanto tomava cuidado para não encostar em nada.

Dias depois, a polícia divulgou o resultado da perícia e da autópsia.

Aquelas coisas que estavam ao redor da sua bunda eram uma parte do fígado e um pedaço generoso do estômago. Um dos rins estava dentro da privada. O outro não fora encontrado. Também estavam faltando o pâncreas e a vesícula biliar.

Não havia sangue dentro do corpo, apenas fezes. Os órgãos que não foram expelidos, estavam destroçados dentro do corpo, como se tivessem explodido.

Sem nenhuma marca de corte no cadáver, ninguém soube explicar como aqueles órgãos foram parar fora do corpo.

No prontuário do rapaz não constava nenhuma cirurgia de retirada de órgãos, nenhuma doação de rins.

Segundo o legista, em seus mais de trinta anos de profissão, jamais vira alguém morrer de forma tão bizarra.

A autópsia soube determinar a causa da morte, mas era um consenso entre a equipe que ele havia vomitado e defecado seus próprios órgãos até morrer.

Entre os legistas da cidade, o caso era lembrado como o do “cara que era um merda por dentro”.

Seu Antônio conversava com o porteiro do prédio vizinho.

“Acharam que ele havia viajado e que a tubulação do prédio estivesse com problemas. Mas ninguém imaginou que o rapaz tivesse cagado e vomitado todos os órgãos do corpo até morrer”.

“Que situação, hein, Antônio. E foi você que encontrou o corpo”?

“Eu mesmo. Dei até entrevista”.

A conversa foi interrompida quando um mendigo parou em frente à portaria. Ele fedia a sujeira, suor e fezes. Mas estava sorrindo. Um sorriso estranho, percebeu Seu Antônio. Um sorriso maligno.

O velho porteiro fez o sinal da cruz e entrou para sua cabine.

Sentiu que o almoço ficou inquieto no seu estômago e um gosto azedo parou em sua garganta. Pensou em ir ao banheiro, mas o incômodo passou assim que o mendigo foi embora.

--

--

Rafael Barbosa
Medium Brasil

Eu escrevo. Às vezes sai algo legal. Insta: @rafabarbosa