Já são 19 horas?

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil
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10 min readJun 21, 2019

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Otávio chegou bem cedo ao escritório naquela sexta. Mesmo tendo saído de casa no horário costumeiro, o movimento atipicamente bom permitiu que chegasse a seu cubículo exatamente 1 hora antes do seu expediente normal. De casa até a estação dos aerotrens, o bonde levou a metade do tempo costumeiro. E da estação até o ponto final do seu trajeto, o aerotrem tinha vindo como um sonho. Deixou de parar em várias estações por estarem vazias, e passou bem mais rápido por estações em que subiram poucos passageiros, onde normalmente perdia-se muito tempo até entrar uma pequena multidão em um dia normal.

Só Tiffany, que entrava no primeiro turno, já ocupava seu cubículo imediatamente em frente ao de Otávio quando ele chegou. Do outro lado da divisória da sala, com janelas de vidro, ficava a área dos comissários. Àquela hora, ainda vazio, o setor dos representantes do Partido parecia flagrado em um Primeiro de Maio. Do elenco do “núcleo rico da novela” — que era como o pessoal da área dos subalternos chamava o lado de lá — nenhum dos “artistas” havia chegado ainda. Mais da metade sequer chegaria. Embora fosse tecnicamente um dia normal de trabalho, eles aproveitariam a baixa de movimento para fazer uma ponte do dia anterior até o fim de semana.

Otávio trocou um par de cumprimentos amistosos com a afável Tiffany enquanto inseria sua chave de acesso no seu terminal da Rede Oficial. A tela exibiu logo o que seria a primeira má notícia do dia — Ao lado do brasão do governo, um aviso piscava dizendo que a validade de sua chave expirara, e o acesso à rede estava negado. Isso significava ter que esperar alguém do lado de lá chegar (provavelmente Artur, o Subcomissário-Chefe de Escolha Criativa) e pedir para que ele abrisse um procedimento de solicitação para cadastrar uma nova senha temporária, até que a definitiva estivesse pronta. Fosse só isso, maravilha. O problema era que nenhum cadastro de nova autorização de acesso era realizado sem a abertura de um pedido formal para o EDAT (Escritório de Autorizações) da ACATEI (Administração Central de Acesso à Tecnologia, Educação e Informação) em Nova Brasília. E era sabido que a central da ACATEI em Nova Brasília funcionava sob regras mais misteriosas que a mais alta alquimia. A liberação de um acesso, algo que tecnologicamente era imediato, podia demorar de 24 horas a uma semana, dependendo da sorte de quem pedia e da disposição do comissário responsável pela liberação. Enquanto decisões complicadas e com consequências sérias já foram vistas sendo liberadas em questão de 5 minutos em um telefonema, era comum meras senhas de funcionários subalternos ficarem pendentes por semanas, meses até.

No minuto em que girava a cadeira, Otávio meteu o joelho no canto do gaveteiro. Uma porrada certeira, doída. Justo na parte onde a última gaveta de baixo era torta, desbeiçada para um lado. Um canto escapava do encaixe da parte lateral do gaveteiro, deixando o arranjo especialmente agressivo. A dor da pancada revelou-se composta. Junto a ela, um ardido. Arranhão. Otávio respirou fundo (não pela última vez naquele dia) antes de verificar o dano. À pancada e ao arranhão juntaram-se um rasgo pequeno mas perceptível em forma de L na calça. E junto ao rasgo, uma mancha de sangue não muito grande, mas igualmente perceptível. Levantou-se da mesa já pensando em que papel do banheiro seria melhor para absorver o sangue do ferimento: o cinzento e áspero que ficava pegajoso quando molhado, usado como toalha para secar as mãos? Ou o rosado e de espessura irregular, com ocasionais letras de jornal, utilizado como higiênico ao lado do vaso sanitário?

Antes de chegar à porta da seção, que conduzia ao longo corredor que levava ao banheiro em sua extremidade oposta à porta, o telefone tocou e Tiffany atendeu. Otávio pode ouvi-la dizer “espera, ele ainda está aqui” e estacou com a mão na maçaneta da pesada porta de madeira antiga. Tiffany avisava que os técnicos de painel haviam chegado, e aguardavam por ele na guarita da segurança no térreo do prédio. Agradeceu à jovem e terminou de sair pela porta, respirando fundo — não pela última vez naquele dia.

No banheiro — onde passaria mais tempo se não soubesse que demorar a atender às demandas de acompanhamento gerasse comentários negativos e fofocas entre os comissários — evitou escolher e pegou o papel que estava mais perto, o cinzento. Agradeceu mentalmente que o sangue era pouco, limpou-se rápido e deixou um pedaço do papel pegajoso colado ao arranhão, por dentro da calça.

Ao chegar ao hall do elevador do andar, encontrou uma tabuleta pendurada na janelinha da porta do elevador com os dizeres “transportando material”. Sabendo que o elevador estaria comprometido por um bom tempo entre andares que não incluíam o seu, Otávio pensou se caminhava até o outro lado do andar para tentar outro elevador ou se descia os dezesseis andares pelas escadas, para poupar tempo. Pensou na perna ainda doída da pancada (e ardida do arranhão) e resolveu ir até o outro lado do andar. Ao chegar no outro lado, o elevador exibia na porta o mesmo aviso de “transportando material”. Respirou fundo — não pela última vez naquele dia — saiu dali e virou dois corredores, um longo e um um pouco mais curto, até chegar à recepção do andar. Perguntou à recepcionista Soraia se ela sabia de algo. “Sim querido, ao que parece só o elevador privativo dos nossos queridos Comissários está funcionando hoje”, respondeu Soraia com seu leve — e precioso — sarcasmo, tão importante para manter um mínimo da sanidade dos subalternos. Otávio agradeceu a informação e preparou-se para descer pelas escadas os dezesseis pavimentos até o térreo.

Chegando ao térreo, mais um corredor longo e outro curto até chegar à guarita da segurança, onde os técnicos aguardavam. O guarda de serviço negara-lhes a entrada. Os dois encontravam-se à vista, ao lado de fora da guarita. Acocorados num canto da calçada junto à parede, procuravam se afastar de uma chuvinha fina mas persistente, que começara há pouco. Dividiam um pacote de biscoitos cinzentos enquanto esperavam. O guarda com um olhar confuso, olhava uma folha presa à prancheta e afirmava que os nomes dos técnicos não constavam no manifesto do dia. Otávio presumiu a causa da negativa de acesso: alguma informação não tinha sido passada em algum momento na semana anterior para a central do DICAS (Departamento de Inteligência, Controle de Acessos e Segurança), responsável pelos manifestos de autorização de acesso. Era comum que os Comissários responsáveis pela área onde serviçais vindos de fora fossem executar seu trabalho esquecessem de pedir os nomes e registros às controladorias de cada despachante de serviçais. No caso dos técnicos de painel, a responsável por autorizar a liberação de entrada era a Comissária Selina, Subchefe-Adjunta da (CoAP-CoCoIET) Controladoria de Avisos, Pôsteres e Comunicação Corporativa, Intra, Extra, e Transinstitucional. Otávio se lembrava da dificuldade que teve em guardar na memória o título de Selina, do qual ela fazia questão de sempre ser mencionado por completo. Certamente ela não estaria presente naquele dia. Perguntou ao guarda quem era o oficial de plantão no Departamento de Segurança naquele dia. Por sorte, era Micélio, um Comissário atipicamente gentil, com quem Otávio tinha um relacionamento cordial pelo telefone e por comunicados oficiais de texto, embora nunca tenham se visto pessoalmente. Pediu ao guarda para fazer uma ligação pelo terminal da guarita da portaria para o Departamento de Segurança. Micélio atendeu e ouviu atentamente a explicação. Otávio soube frisar que a não-liberação dos instaladores daquele serviço iria causar um impacto negativo, pois os painéis precisavam estar em ordem para o público poder vê-los durante o fim de semana, e já saberem do evento a estrear na segunda-feira. Ao dar ênfase no dano à imagem da instituição caso os painéis não estivessem visíveis, e no fato de Selina não estar presente para oficializar o pedido de entrada por conta do feriado, Otávio conseguiu despertar em Micélio o sentimento de zelo pela instituição e o orgulho de reparar uma falha cometida por uma companheira Comissária. Otávio sabia que Micélio era visto pelos Comissários do 16° andar como um inferior. Embora hierarquicamente seus cargos fossem semelhantes, a área do Departamento de Segurança na qual Micélio atuava, no penúltimo andar, em um local do edifício dividido com o barulho de caldeiras e equipes de manutenção era visto como um canto de serviçais e não de semelhantes. Micélio, por mais que não demonstrasse através de sua cordialidade e calma superficiais, não gostava de perder qualquer oportunidade de se demonstrar mais correto ou mais competente que os arrogantes colegas ocupantes das áreas mais “nobres” do edifício, como no caso o “pessoal do 16º andar”- e especialmente uma “esnobezinha da CoAP-CoCoIET que só alcançou o cargo por puxar (e em alguns casos alisar) sacos de superiores” como Micélio considerava Selina.

A liberação foi autorizada diretamente por Micélio, pelo telefone. Os técnicos passaram pela cancela da guarita ao serem chamados, entraram no prédio e acompanharam Otávio até a sala técnica no 3° andar, onde ficavam os controles de rolagem e exibição dos painéis externos, enormes estruturas mecânico-luminosas que ocupavam a fachada dos primeiros 10 andares do edifício. Nesses painéis eram exibidas em fotogramas cambiantes via projeção em ultraluz as atrações em exibição e os eventos a estrearem em breve. Uma das funções de Otávio era responsabilizar-se pelo acesso à sala técnica e orientar a troca dos painéis pelos técnicos externos, que traziam os rolos de fibra elástica contendo gabaritos da arte que apareceria nos painéis luminosos. Cada rolo era instalado em um receptáculo específico em algum lugar entre o 5° e o 6° andares, de acordo com o painel externo em que fosse ser exibida a arte do gabarito que continha. Os instaladores precisavam encarapitar-se no meio de um labirinto de cordas lambuzadas de graxa, roldanas e maquinário mecânico, em um espaço ora acessível por estreitas escadas, ora por plataformas das quais se passava de uma para a outra, como degraus espaçados. Os técnicos, normalmente um povo falante e simpático, tagarelavam algo sobre a chuva e os biscoitos no dialeto dos humanéns. Otávio conseguia entender cerca de metade da conversa, enquanto a outra metade se perdia nos gracejos, “uhns” e “ahns” que ele não conseguia traduzir para o português comum. Às vezes fazia algum comentário elogioso ou afirmativo aos técnicos, a título de simpatia. Mas tentava na verdade disfarçar a vontade de que aquela tarefa terminasse logo. Sua perna ainda doía da pancada e o sistema de ar-condicionado do edifício derrubava a temperatura sempre que chovia. Lembrou-se de que não havia trazido um agasalho na pasta, e respirou fundo — não pela última vez naquele dia.

Os dois técnicos de instalação espremeram-se pela pequena porta que Otávio segurava aberta, e com a costumeira agilidade subiram bem rápido pelo vão estreito e não muito bem iluminado entre as telas de projeção de feixes de ultraluz e o labirinto de cordas, escadas e roldanas. Em uma destra sequência e escaladas, pequenos saltos e trocas de lado, em pouco tempo sumiram da vista no escuro das telas desligadas e chegaram à altura dos receptáculos. Logo gritavam lá de cima códigos de letras e números correspondentes à posição de cada receptáculo, e de memória, Otávio gritava de volta as letras e números dos nichos onde os rolos deveriam ser trocados e os que não deveriam ser alterados naquela vez. O processo todo durava cerca de meia hora se fosse uma troca simples, mas poderia levar até uma hora no caso de uma troca múltipla (ou de um técnico novato ou pouco hábil). Embora fossem ágeis, os técnicos desse dia eram bem ruins com os códigos. Erraram a posição algumas vezes e precisaram retirar e recolocar os gabaritos, fazendo a troca levar quase cinquenta minutos. Assim que finalmente desceram, Otávio segurou a porta com um certo afastamento porque já sabia que a dupla desceria bastante suja de graxa. Assim que os dois terminaram a descida, Otávio verificou no mostrador ao lado da porta a posição correta pelos números indicados em cada nicho instalado. Caso houvesse algum erro, eles precisariam subir novamente. A instalação estava correta, e ele acionou a alavanca do temporizador de religação da iluminação assim que avisou aos dois que a instalação estava concluída e podiam sair. Fez algum chiste espirituoso, que levou um dos técnicos a cair na gargalhada e dar uns tapas no seu braço, o que deixou a manga de sua camisa com indisfarçáveis marcas de dedos com graxa. Otávio sorriu sem graça e desceu as escadas de volta à guarita para assinar a liberação dos pequenos hominídeos. Os dois desceram agilmente as escadas à sua frente, tagarelando algo a respeito do jogo que seria transmitido pelo rádio naquela noite. Respirou fundo (não pela última vez naquele dia), já sentindo mais frio do que quando subira.

Após a liberação, dirigiu-se ao elevador, que já não exibia mais a tabuleta de “transportando material”. Embora não a exibisse, teve que se espremer contra a parede acolchoada de lona empoeirada, pois quase todo o elevador era ocupado por uma carga de armários velhos acompanhada por dois carregadores. Haviam embarcado no 7° andar e desceram até o térreo para aproveitar a viagem e iriam descarregar no 15° na volta. Um andar abaixo do seu, descarregaram e ele pôde relaxar a perna direita dolorida pela pancada de mais cedo, que estava numa posição incômoda. E se afastar do canto empoeirado do elevador. Desceu no 16°, dirigiu-se entre arrepios de frio à sua sala e percebeu que mais gente tinha chegado em seu setor enquanto estava acompanhando a troca dos painéis. No lado de lá, ninguém dos Comissários ainda. Perguntou a Tiffany se ela por acaso teria um curativo adesivo e por sorte, ela tinha. Perguntou, a título de brincadeira para a jovem: “Já são 19 horas?” e a resposta que recebeu foi “Quem era, hoje parece um daqueles dias em que vão chegar as 22 horas mas não as 19!” Enquanto Tiffany puxava um casaco de sua bolsa, ele tentou não tirar muita casquinha do ferimento junto com o papel. Aplicou o curativo adesivo respirando fundo, não pela última vez naquele dia.

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Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil

Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.