Lisboa, minha avó e David Bowie

Marcos Fernandes
Medium Brasil
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8 min readJan 16, 2016

Três acontecimentos recentes me fizeram perceber que estou envelhecendo. Quero dizer, eu observo cotidianamente, como qualquer pessoa normal, dados naturais que constituem um relógio capaz de contar a passagem do tempo de maneira própria: o fato de que falta pouco para os 25 anos (um quarto de um centenário), de que meu companheiro tem 40 (fase supostamente cheia de crises peculiares), de que eu não uso 80% do vocabulário dos jovens dessa geração ou de que faz quase 20 anos que o primeiro Harry Potter foi publicado. Básico.

Mas o tempo é essa coisa estranha, meio sólida e meio elástica, que faz com que contar calendários seja uma atividade cheia de boas intenções, porém com fins um pouco duvidosos. Se dependêssemos somente da retrospectiva jornalística de todos os anos ou de fogos de artifícios colorindo o céu para nos darmos conta de que a ampulheta da vida está contra nós, envelheceríamos todos inconscientes do que aconteceu.

É por isso que, vez ou outra, fazemos com que existir seja um espetáculo que deixa registros e cuja marca possa ser percebida mesmo a anos de distância, como casamentos, formaturas, batismos. Às vezes nem precisamos nos esforçar: somos surpreendidos por coisas que jamais sairão da nossa memória e que serão como uma ilha distante quando, do navio descobridor de nossa mente, tentarmos avistar a bela terra longínqua do passado.

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Em 2013, fiz um intercâmbio de seis meses em Lisboa, através de um programa da UFMG destinado a seus estudantes de graduação. Era minha primeira vez fora do país e a primeira experiência morando só, tendo que fazer as contas do mês e economizar o suficiente para poder beber os litros de cerveja exigidos por semana, me alimentar de maneira minimamente saudável e viajar em voos low-cost pelas destinações turísticas da Europa. Eu vivi o clichê de qualquer jovem que faz parte de seus estudos fora do país — passei por uma experiência pessoal enormemente transformadora e conheci pessoas e lugares que se tornaram extremamente importantes para mim.

Muro no Bairro Alto, Erasmus Corner, Lisboa — Marcos Fernandes @mmarcoslf

Essa fase da minha vida foi colocada dentro de um relicário sagrado no qual eu só tocava quando queria tentar reviver, utilizando a nostalgia como canal de acesso, aqueles momentos tão especiais. Esse baú de vidro asséptico onde eu guardava minhas memórias foi quebrado em uma visita à Lisboa na passagem de ano de 2015 para 2016. O que eu encontrei, quase três anos depois, me mostrou que não há nada que possamos fazer contra a irreversibilidade do passado. Nada nunca vai ser como antes. Nenhuma época da nossa vida voltará com todas as cores e tonalidades que tinha.

Não somente o cenário mudou, com várias lojas que fecharam e novas que foram abertas, como eu não sou mais o Marcos de antes. Dentro de mim diversos estabelecimentos também perderam e ganharam vida nesse meio tempo. Rever Lisboa serviu para desmistificar o imaginário que eu tinha da cidade e deu forma ao pretérito. O maior problema do passado é que ele não tem corpo; nossos mortos nós podemos enterrar, mas nossas memórias não. Elas não são físicas e, portanto, temos a impressão de que são mágicas, imortais, vivas. Andamos com a sensação de que elas nos acompanham, dias após dia, enquanto os defuntos estão quietinhos em seus túmulos.

Houve um momento em que, enquanto observávamos o pôr-do-sol com o quadro da ponte 25 de Abril diante de nós (um espetáculo que vale a pena ser visto), eu tentei desesperadamente fazer uma boa foto. A cena era gratuitamente bela, eu não precisaria de esforço algum e, entretanto, eu tinha a impressão de falhar em cada clique. Precisei que alguém me chamasse atenção ao fato de que eu estava deixando de aproveitar o momento para me dar conta da falta de nexo do que eu fazia. A verdade é que eu queria de tal forma registrar essa viagem de retorno a um país que se tornou tão especial para mim — talvez porque eu estivesse zangado com a destruição de meu antigo relicário — que me desesperei no ato de fotografar.

Menino no Pôr-do-Sol, Tapada das Necessidades, Lisboa — Marcos Fernandes @mmarcoslf

Às vezes sonhamos de que seria suficiente ir a determinados lugares, rever certas pessoas ou fazer inúmeras atividades para ativar um poder sobrenatural e invocar o passado de volta. Mas esquecemos que os dias são feitos de ingredientes únicos que perdem a validade após serem usados. É como tentar fazer a mesma sopa de quarta-feira passada, quando sabemos que aquelas batatas, cebolas, alhos, cenouras e tomates já foram digeridos em nosso estômago e devem estar se decompondo em algum ralo no subterrâneo. Podemos repetir a receita, claro, basta colocar elementos novos e desconhecidos. E, como descobrimos ao envelhecer, não tem nada de mal nisso.

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Alguns dias depois de aterrissar em Paris, eu preparava uma apresentação para um seminário do Mestrado quando recebi uma mensagem da minha tia no WhatsApp. Era um recado de condolência. Minha avó havia sido internada semanas antes por conta de uma pneumonia, então eu não tardei a ligar os pontos, ainda que um cantinho da minha mente implorasse para que aquilo não fosse verdade. Em vão.

Imediatamente enviei um e-mail às professoras justificando minha futura ausência e recebi delas uma mensagem pungente e tão, tão real.

“Nós compartilhamos a sua pena. É particularmente doloroso perder um ente querido quando estamos longe de casa.”

Elas acertaram em cheio. Não doía, apenas. Era mais que isso. Era particularmente doloroso. A semana que se seguiu foi um vendaval de sensações e sentimentos estranhos misturados com choros ocasionais de madrugada. Mas o que mais me marcou foi essa impressão nítida de que… o tempo passou. Avôs e avós são o tipo de pessoa que a gente, desde criança, vê como “velhos”. Nossos pais são “adultos”, é diferente. E quando uma pessoa atinge o estágio de “idoso”, colamos nela um adesivo de pode-acontecer-a-qualquer-momento, esperando, assim, nos prepararmos para quando a tragédia vier. Mas de nada adianta, na verdade. Todo esforço é em vão porque, como disse Clarice Lispector, a morte é o momento de estrela de cada um. É um evento único e, portanto, de importância estratosférica. E quando acontece, assusta do mesmo jeito. Entristece do mesmo jeito. Morre do mesmo jeito.

Logo no início de 2016 — uma época em que queremos experimentar o novo, o belo, o que há por vir — eu estava ali, levando pela segunda vez um soco do tempo e sendo lembrado da minha mortalidade e dos outros. Mas ainda não tinha acabado.

***

Uma semana depois, enquanto eu, ainda machucado, me recuperava da salsa de dores dos últimos dias, decidi dar uma lida nas notícias antes de ir para a faculdade. Naquele momento teria início um dia estranho e cheio de emoções bizarras — eu descobriria, junto com milhões de outras pessoas, que David Bowie, o camaleão do rock, ídolo de várias gerações e fonte inesgotável de inspiração, havia morrido.

A perda de Bowie foi um choque porque ela representa um rasgo para diversas esferas da nossa sociedade: a musical sendo a mais óbvia, seguida pelo cinema, a moda e mesmo a política, uma vez que tudo o que ele construiu em torno de sua imagem não foi resultado de escolhas aleatórias, mas refletia sobretudo um cuidado com o discurso de flexibilidade de gênero e liberdade sexual.

Bowie foi um artista extremamente consciente do que se passava ao seu redor e continuou assim até o fim de seus dias. Somente alguém corajoso o suficiente para encarar a realidade de frente teria feito um clipe como Lazarus no estado em que estava. Somente alguém audacioso o suficiente para ser Bowie se despediria com um álbum recheado de talento como Black Star.

Perdê-lo, uma semana após ter enterrado minha avó à distância, significou muito para mim. Foi um luto diferente, claro, porque eu mantinha relações com essas duas pessoas que não poderiam jamais ser colocadas no mesmo patamar.

Mas me fez pensar em como esse mundo precisa de indivíduos como Bowie.

Minha avó me acompanhou desde a infância e eu sempre me recordarei dela fazendo café ou cozinhando uma galinha caipira no fogão à lenha de sua casa em Serra do Cipó. Pequenos detalhes que a fizeram única para mim nesse planeta. Da mesma forma, ninguém poderia me confortar mais que Bowie com suas canções, sua irreverência e seu talento em ser naturalmente diferente. Minha avó nunca soube que eu era gay porque, por uma decisão pessoal, achei melhor não compartilhar esse dado com ela, que viveu a vida toda no meio rural e dentro de uma lógica bastante diferente da minha. Por outro lado eu tive artistas como Bowie, que me fizeram evoluir e aprender a gostar de mim mesmo. Minha avó, com sua simplicidade, me ensinou que para amar não é preciso se esforçar muito. Bowie, com sua extravagância, me mostrou que aceitar minhas diferenças era o primeiro passo para que o amor fizesse parte de meu cotidiano.

Pessoas como Bowie nos ajudam a complementar os espaços em branco que ficam no meio de nossas relações pessoais. Às vezes uma canção de seu artista favorito tem o mesmo efeito que um abraço amigo. Às vezes essa mesma canção é tudo o que você tem, porque esse mesmo amigo está longe demais para ser tocado.

Perder minha avó estando em outro continente foi um pouco como perder Bowie porque foi uma morte sem funeral, sem velório nem enterro. Uma morte produzida por palavras que chegaram até mim através do telefone… Uma morte que, longínqua, tomou a forma de uma notícia no G1. Sem o auxílio da visão do corpo, eu, tal como o discípulo Tomás, acreditei querendo desacreditar. Eu tive que produzir por mim mesmo a imagem da tragédia. Até hoje me sinto meio amortecido, meio disperso, e não sei se o que criei foi o suficiente para atravessar o processo do luto.

Ao contrário de Lisboa, que se mostrou fisicamente diferente e me obrigou a engolir a realidade da mudança, da irreversibilidade dos acontecimentos e da passagem do tempo, a ideia da morte de minha avó — como a de Bowie — teve que ser ficcionalizada por mim. Eu utilizei os signos a mim oferecidos em forma de frases e exclamações e constituí em minha mente uma teoria, que lentamente se transmutou em hipótese quase provada até se tornar uma certeza.

A certeza de que tive a sorte de compartilhar meu tempo de vida com duas pessoas incríveis e inspiradoras, que me ensinaram muito sobre o tempo. De que após anos usufruindo de suas presenças, esse mundo perdeu duas peças insubstituíveis de seu jogo. E de que morrer, afinal, não deveria nos assustar tanto. Se eles o fizeram, não deve ser esse horror todo.

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Originally published at palavrasdepijama.wordpress.com on January 16, 2016.

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Marcos Fernandes
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jornalista, sociólogo, escritor e tentativa de fotógrafo.