Mãe, quero ser o Homem-Aranha
sobre a representatividade negra no universo dos super-heróis
Eu nunca fui um leitor religioso de quadrinhos da Marvel ou DC. Na verdade eu nunca tive a chance de ser. Por algum motivo — que pode ter alguma ligação com o fato de eu ser da Baixada Fluminense e não ter grana — as HQs americanas publicadas pela Abril não chegavam em minhas mãos. Durante toda minha infância tudo que li sobre quadrinhos estava relacionado à Turma da Mônica e algumas revistas Tex que era parte da “herança involuntária” do meu falecido tio.
Os anos 2000 marcaram o começo da minha adolescência e o inicio de uma nova era dos quadrinhos no cinema. A gente cresceu vendo o desenho do “Xisméin” e agora Hollywood nos brindava com o sensacional “X-Men: O Filme”. Não dava nem pra acreditar naquilo.
Aos 13 anos um desses filmes me marcou de forma irreversível. O “Homem-Aranha”, um sucesso nos cinemas — e nas locadoras— foi o principal responsável pela minha entrada no universo das HQs americanas.
Tem uma cena que não sai da minha cabeça, era 2003, eu e um amigo de infância de pé em frente a locadora do bairro esperando o infeliz que alugou o “Homem-Aranha” devolver antes das 21h, horário de fechamento da loja. A loja fechou e nada do cara. Isso durou mais três dias.
Encontrei uma banca/sebo que vendia o famoso “formatinho” da Abril a preço de pinga. Nunca li tanto gibi na minha vida.
A Picada Radioativa
Durante todo esse período eu não li nenhuma revista que tivesse um personagem negro como protagonista. NENHUMA. Olha, eu não li pouca coisa. Até aquele lixo do Superboy no Havaí passou por minhas mãos, e mesmo assim não consigo lembrar de um personagem negro sequer que tenha sido marcante pra mim nessa época.
Haviam heróis negros, mas não foram mainstream o suficiente pra eu saber da existência deles naquele período. Da pra acreditar que eu vi o Superman se transformar em dois num gibi sofrível, mas não sabia da existência do funcking Pantera Negra?
A Identidade Secreta
Como a maior parte das crianças de fenótipo negro, nunca tive motivo pra me orgulhar do meu cabelo, nariz, boca etc.
Na TV, os negros eram representados quase sempre na condição de subordinação, como sidekicks, empregados etc. Quando não, exercia função cômica, sempre de forma estereotipada e grosseira.
Ser negro não inspirava heroísmo. Sempre foi motivo de chacota.
Heróis negros, de personalidade forte e senhoras de seu destino como a Ororo (aka. Tempestade), Luke Cage, Cyborg estavam longe do nosso radar. Crescemos sem referências negras no mundo heroico.
O Plot Twist
Nos últimos tempos estamos vendo uma crescente mudança no que diz respeito à visibilidade negra nos cinemas e quadrinhos. O sucesso de “X-men: O Filme” lá no inicio dos anos 2000 abriu a porteira para mais produções do tipo. A Marvel Studios, que havia vendido os direitos cinematográficos de seus personagens mais rentáveis, teve de se reinventar trazendo das sombras seus personagens menos famosos para estrelar seus filmes. E a coisa deu muito certo e hoje ela já tem universo bem consolidado nos cinemas e na TV.
Seguindo essa lógica de mercado, a Marvel e outros estúdios estão resgatado do underground personagens negros e os colocando na linha de frente de suas produções.
O novo Quarteto Fantástico contou com um Tocha Humana negro; Will Smith será o anti-herói Pistoleiro, exercendo um importante papel no aguardado “Esquadrão Suicida”; E pros próximos anos teremos uma série do Luke Cage no Netflix e filmes do Pantera Negra e Cyborg
Além disso, tivemos mudanças significativas no universo dos quadrinhos. Miles Morales, que até então figurava como o “Novo Homem-Aranha” no universo Ultimate, passou a ser apenas “Homem-Aranha” e foi incorporado no universo regular da Marvel. Falcão, companheiro de tropa de Steve Rogers, é o novo Capitão América desde o ano passado e deve ser um dos protagonistas de “Civil War 2”. Pantera Negra ganhou um roteirista de peso para sua nova fase. Ta-Nehisi Coates, colunista do The Atlantic, conhecido por sua escrita crítica, promete dar um ar mais político aos próximos números da revista do rei de Wakanda.
A representação dos negros ainda está muito aquém do impacto que a cultura negra exerce nos EUA, mas já é muito mais do que minha geração sequer imaginou ter.
A história de Whoopi Goldberg nos ajuda a dar dimensão do quão significativo é para crianças ter pessoas heroicas que se pareçam com elas. Com certeza elas não vão passar pela infância e adolescência imunes às representações estereotipadas e degradantes de pessoas negras. Mas ao menos serão capazes de sentirem orgulho de serem parecidas com a Tempestade, o Tocha ou o Capitão América e poder sonhar sem amarras na possibilidade de ser o Homem-Aranha, assim como Miles Morales.