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MAGIA DE MÃE

Da vidência ao carinho.

Gabriel Schincariol Cavalcante
Medium Brasil
Published in
5 min readOct 6, 2016

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Era um garoto miúdo e tímido, já novo se notava que não tinha lá grande desenvoltura social. A escola era um sofrimento e ele custava a sair da cama, mas a mãe, dona do poder, mandava e ele obedecia, relutando. Tinha um amigo, e um só, que tinha mais amigos, o que era um problema, porque se esse único amigo estivesse com seus próprios amigos, ele ficaria sozinho, e ele ficava bastante sozinho. Isso, por si só, não é muita coisa diferente de uma infância normal.

Um dia na aula ele ficou impressionado com o que a professora mostrava: um pote de vidro cheio de terra e pedrinhas e mato e outras pedrinhas e era tão curioso e bonito, parecendo sujeira, mas de uma maneira especial. Escola nessa idade não tem biologia ou ciências ou coisa do tipo: é uma sequência de tudo. Ele ficou impressionado com o pote e não ouviu o que a professora dizia. Mais tarde se descobriria que ele tinha déficit de atenção e não era, enfim, apenas ‘desligadinho’. Soubessem disso antes, ele teria prestado atenção e ouvido que se tratava de uma simulação do solo e de como a água escorre por essas camadas de terra e pedra e grama, até chegar na raiz da árvore, que se hidrata e cresce, cresce, até ser cortada. Não prestou, mas achou bonita a imagem.

Já no fim dessa aula, uma coisa ele escutou: que eles deveriam reproduzir isso em casa e trazer na outra semana. Cada um teria a chance de fazer sua própria simulação da natureza e ver no que é que dava. Ele achou legal a ideia, ficou animado e foi para casa pensando nisso. No carro, a mãe perguntou como havia sido o dia e ele disse que tudo tinha sido normal, mas não tinha. Aquele pote era diferente. Não falou nada. Queria guardar aquilo só para ele, por um pouquinho, e montar seu próprio pedaço de natureza. O único problema é que nas próximas horas daquele dia ele esqueceu completamente de tudo isso.

***

No final de semana ficava com o pai. Não acordava cedo, brincava, corria, nem parecendo o menino tímido que era. Na presença do pai, era outra pessoa. Ou era ele, mesmo, como poderia ser só na presença da segurança. Não sabia dos problemas do pai com a mãe ou com outras coisas, como mulheres ou jogo — mas essas são coisas de adulto, que menino na idade dele não tem (ou não teria) que lidar. Ali era só o pai, grande, forte, bonito, sorridente, com a barba que pinicava ao beijar. O homem cheio de defeitos não existia aos olhos do menino, que defeito é coisa de adulto e ele não precisava se importar — ainda.

Sexta à noite foi assim, vendo tevê até tarde deitado na sala ao lado do pai que roncava. Sábado almoçaram fora, pescaram e dormiram antes das nove. Domingo de manhã foram à feira e comeram pastel. De tarde, deitado no colo do pai, esticado no sofá, ouviu da boca paterna a pergunta que deixou tudo tão difícil: como estão as coisas na escola, filho? E ele lembrou. Lembrou do pote de vidro transparente com natureza dentro. E lembrou que era domingo e que, conforme havia aprendido não sabia quando, depois era segunda. E na segunda era para levar o pote pronto, o pote de cada. Não respondeu e o pai notou algo estranho. Que foi, filho?, ele perguntou. Havia algo errado. Ele explicou ao pai, que ficou com cara de dúvida. O pai esboçou um sorriso, mas o filho repreendeu: não tem graça! Gente adulta não entende a gravidade das coisas simples. Ou entende demais. Não, não tem, filho, disse o pai, desculpando-se.

Não havia tempo para lamúrias: eles precisavam resolver aquilo logo. Ele disse para o pai que precisava de um pote, e lá foi o homem revirar os armários de solteiro. Não tinha um pote. Mas tinha uma vasilha de vidro que era quase um pote cilíndrico, como o da professora, tão bonito e colorido de terra e grama e pedra e água e vida. Era uma vasilha quadrada, mas era a única. Precisava de uma tampa, e a vasilha não tinha tampa. O pai foi começando a ficar nervoso com o nervosismo do filho, mas ele sabia que não podia deixar o menino perceber. Pegou o pote sem tampa e disse que não tinha problema. O menino não gostou, mas não tinha outra opção senão aceitar, como aceitava quando a mãe o mandava sair da cama.

Foram até a frente da casa e cavocaram o pé de uma árvore de calçada, chafurdando na terra com uma colher de sopa. O pai ia enchendo o pote e colocando uns pedregulhos, com uns tufos de grama. Parecia entulho. Olhou para a própria obra com certo desgosto. Acho que não era exatamente isso. Arrumou melhor a terra no pote, até ficar razoavelmente organizado. Uma camada de terra. Uma camada de pedra. Um pouco de grama. Até que está bom. Mostrou para o filho e o menino faltou cair no choro de tristeza. Aquilo não era em nada parecido com a obra da professora. Ele ia levar isso para a escola e todo mundo ia rir. Ele não sabia criar seu próprio potinho de natureza.

***

Ficou o resto do domingo emburrado. Fez o pai, coitado, sentir-se culpado por uma culpa que não tinha, mas que, na posição de pai, assumia. Ficaram os dois cabisbaixos, criador e criatura, olhando p’raquele pote de terra feio e esquisito no meio da sala. Eles iam rir tanto da cara dele.

Segunda de manhã o pai levou o menino de volta para a mãe, antes da aula. Ele não havia levado o uniforme que a mãe separou. Desligadinho, todo mundo dizia. Era o déficit de atenção. Chegou às sete na porta de casa e deu um beijo no rosto que pinicava do pai. A mãe abriu a porta e cumprimentou o pai: bom dia, Marcelo, foi tudo bem? E o pai sorriu de maneira educada, meio triste. Explicou o que havia acontecido e mostrou o pote de terra que haviam feito. A mãe primeiro deu um sorrisinho, mas logo se estendeu em uma larga risada.

Ela virou as costas para os dois e entrou na casa. Voltou uns segundos depois, o menino e o pai sem entender. Veio trazendo nas mãos um pote de vidro transparente, cilíndrico, grande, com terra, com grama, com pedrinhas, todas as camadas bem divididas e aquele era o pote mais bonito que os olhos desatentos do menino já tinham visto. O pai deixou os ombros caírem, meio que chateado por não ter feito um trabalho tão bom, meio que contente pela solução do problema. O menino radiava. Pegou o pote na mão e nem deu tchau para o pai, entrou em casa admirando a própria obra que não era dele — era da mãe, o que era, no fim das contas, também dele.

***

Naquele dia ninguém riu do menino na escola. A professora elogiou o trabalho e disse que estava muito, muito bonito. Ele segurava o pote orgulhoso. Quando ouviu da professora: sua mãe te ajudou?, ficou mudo. Daí que pensou: como é que a minha mãe sabia? E até hoje não tem resposta, quando se pergunta. Só sabe que isso só podia ser mesmo coisa de mãe. E, em casa, a mãe continuava a fazer sua mágica.

Essa história é ficcional. Se você gostou, deixa seu ❤. Tem mais assim pelo meu perfil! :}

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