Manobra

respeito, Copa e seu fim

Maggie Louise
Medium Brasil

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“A senhora me faz favor de perdoar, mas esses moleque daí não querem saber de trabalhar como gente séria. São mais de 15 anos de meu nome por aqui, não posso manchar ele pelas mão de outros. Benção, Joaquim”.

Sem manchas, sem dúvida Joaquim era o melhor funcionário da Parking SP. Lá desde o seu início na cidade grande, já havia chegado ao topo da carreira: era o manobrista de confiança da empresa de vallet. Sem atrasos, as únicas faltas que cobria eram dos outros, esses que, segundo Joaquim, não sabem o que é dar duro.

Fácil não foi comprar uma casa para a família, nem pagar o inglês da filha mais nova desde o ano passado. A mulher anda feliz da vida com a máquina de lavar, “tanquinho, nunca mais” ela escreveu serelepe para as irmãs. Esse ano, prometeu que iriam viajar.

- Já respondi pra mãe que não deu pra arranja serviço pro primo. Chegou atrasado no 3o dia e puxou o banco do motorista pra frente pra alcança as pernas curta — Joaquim atualiza a esposa.
Decidiu no mesmo dia não receber mais nenhum parente em São Paulo. Um funcionário perfeito não pode falhar e sem falhas tudo dá certo na vida.

O manobrista de respeito atravessa 3 bairros da cidade em um ónibus para, pontualmente, estacionar carros de clientes de um movimentado bar da Vila Madalena. Cada vez mais cheia, paga-se na região até 40 reais para ter o carro estacionado por Joaquim ou algum de seus colegas. Marcio é um deles. O mais jovem da turma, com seus 23 anos e inseparável celular. Depois da assinatura de um plano de minutos grátis não pára de falar, nem mesmo entre as balizas pelas ladeiras do bairro. O aparelho virou motivo da descrença de Joaquim, que não entende como alguém consegue trabalhar ouvindo funk a noite inteira.

O fim de tarde está quente, nem parece junho. Talvez a estreia do Brasil na Copa ajudou a esquentar cidade e a movimentação de carros é demais para o grupo de manobristas. 5a feira é a folga de Joaquim mas ele chegou cedo, tamanha a frota que se desprende de todos os bairros em direção ao mais bohemio deles. A excitação pode ser sentida no ar, numa mistura de cerveja, gritos e passos apressados daqueles que ficaram presos no trânsito.

- Márcio, por amor de Deus, vai mais rápido atende quem chega e mais devagar estacionando — Joaquim fala ao colega, fazendo o sinal da cruz.

Uma BMW X5 passa e Marcio perde a concentração. Deixa uma chave cair e, pedindo desculpas ao dono, acompanha o ronco do rei dos carros dos seus sonhos. Foi dado início à partida mais esperada dos últimos 4 anos. O clássico bolão dos manobristas da Parking SP foi feito há 3 semanas, com premiação alta. A grande maioria apostava na vitória tímida da nossa seleção sobre a Croácia. Joaquim, ao contrário, estava otimista e apostou alto — 5×0 para o verde-amarelo. Sabia que diferenciação era estratégia e tinha certeza de que o Brasil como um todo é uma marca que só melhorava a cada dia.Tudo estava dando certo e ele, como homem correto, só poderia esperar o melhor.

O motorista da X5 joga as chaves para Joaquim, que acena com a cabeça e garante que encontrará um lugar pertinho para um carro tão bonito. Com uma fila de 5 carros e a promessa de uma boa vaga, ele corre. Ao entrar, escuta mais um apito, parece que vai ser falta para a Croácia. Joaquim não quer perder o foco, mas não pode perder. Prometeu sair de férias com a família em 2 meses. O dinheiro do bolão já tinha cheiro de maresia.

As buzinas aumentam, mais 4 carros chegam, interrompendo a via e deixando o ar pesado como os metais que cospem. — Que calor é esse? — murmura suando, preocupado com sua aposta e com o banco de couro. Um medo de não encontrar nenhuma vaga corta sua mente. Anda todo o quarteirão sem sucesso, mas tem confiança. Confiança de encontrar, de ver a goleada do Brasil, confiança de que, nesse país, trabalhador é que se dá bem no final.

Mas e se não for bem assim? O apavorante pensamento surge. Será mesmo que quem é bom do bom vai viver?

- Eu dei certo, sou um vencedor. Ninguém nem acredita lá em casa, o tal do Joaquim chegou longe — com um sorriso dividido e suando ainda mais. Já se passaram 3 esquinas e nenhuma vaga. Ele segue em frente.

Sua cabeça começa a latejar. Seria fome ou irritação com a aposta arriscada? Mas ele segue em frente.

- Ah, já sei quem vai ganhar, é o Marcio. Nunca vi, não faz nada direito, mas sempre leva a melhor. Não vai pra frente na vida como eu, mas sempre dá uma de espertinho. Não vai consegui criar uma familia assim como a minha, logo logo vai cansa dessa vida e sei lá, quem sabe até pro caminho errado ele vá.

E segue em frente.

A X5 parece não ter espaço naquele bairro. Se sentindo culpado, pede perdão pelas calúnias ao colega, faz o movimento da cruz e tenta voltar ao foco. Tá cada vez mais difícil esse trabalho, e cada minuto mais quente. Não quero usar o ar condicionado, nunca mexi no carro alheio, ele pensa. E segue em frente.

O telão de um bar já mostra, 1×0 pra a Croácia, Joaquim ensaia como vai contar para a esposa que perdeu a chance de ganhar R$600,00. E segue em frente. O bairro já é outro, com poucos bares e o transito fluindo. Parece que todos ficaram pra trás.

Segue em frente.

O ritmo das ruas é outro, os poucos carros andam rápido, algumas árvores balançam com uma brisa que começa a chegar. A estrada é tão lisa que Joaquim esquece estar dirigindo, nunca esteve no volante em uma rodovia. As luzes, até poucos minutos presentes em faróis, piscas-alerta e bares agora são raras. O som não existe. Um vazio que Joaquim não se lembrava mais.

Uma rodovia sem apostas, carros à manobrar, nem prestações de uma maquina de lavar. Respira forte mas devagar. Sente o ar limpo e fresco, como se fosse um gole d’ água gelada em dia de verão. Com os vidros aberto ele chora, sabe que tudo está perdido. E segue em frente, até chegar ao mar.

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Maggie Louise
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Content Marketing @ Facebook. From south of Brazil. Passionate about ideas. Trying to become a writer