Foto: Mapio

Medo e Delírio em Vila da Serra

Rafael Barbosa
Medium Brasil
Published in
7 min readJul 27, 2018

--

Às vezes me pergunto se não teria sido melhor cursar jornalismo. Pelo menos teria um pouco mais de facilidade para contar histórias. Aí esbarro na questão de que, atualmente, eu não me meto em nenhuma aventura inconsequente pra fazer um relato ao melhor estilo Hunter S. Thompson.

Preciso admitir que adoraria escrever como ele, no estilo que ficou conhecido como jornalismo gonzo ou literário, me tornando um personagem importante dentro da história.

Seria o estilo ideal para narrar o que me aconteceu na última semana.

Naquela terça-feira de julho, eu estava prestes a viver mais um dia comum.

Quem olha pra mim vê a definição exata da expressão “eu estou vivendo ou apenas existindo”?

Ombros curvados, cabeça baixa, os pés meio tortos, os cabelos brancos que não condizem com a minha idade e o olhar de completa falta de esperança.

Tudo consequência de uma dieta que extirpou os carboidratos da minha vida.

Sigo para a corredor e aperto o botão com uma seta para baixo.

No painel digital acima da porta, em um vermelho berrante, pisca o número 9. Vejo a aproximação do elevador através de uma contagem regressiva.

Nove, oito, sete, seis, cinco, quatro… os andares são como segundos.

A campainha toca, as portas se abrem e uma voz feminina fala com um tom extremamente formal: “Terceiro andar. Desce”.

Entro no elevador pensando se a vontade que estou sentindo é de comer um pão de queijo ou biscoito calipso. Tenho alguns minutos para me decidir.

Aperto o botão “PO” e a porta automática se fecha à minha frente. Olho para o painel e o aviso de “Capacidade máxima 10 pessoas ou 700kg” interrompe meus pensamentos. É um aviso constante de que estou acima do meu peso.

É muito triste saber que, sozinho, eu ocupo mais de 15% da carga total. Ou seja, quando estou no elevador, a capacidade passa automaticamente a ser de, no máximo, oito pessoas e meia.

Espero que essa meia pessoa seja uma criança ou um anão. Deve ser muito triste ser uma pessoa apenas com metade do corpo.

Passados alguns segundos, a mesma voz feminina sussurra “Portaria”.

O sol reflete nos vidros temperados da fachada do prédio. Apesar de ser inverno, o dia está lindo. É o prenúncio de uma tarde repleta de aventuras.

O vento frio bate em meu rosto e me animo com as infinitas possibilidades à minha frente.

Estufo o peito, respiro fundo e parto em busca do meu lanche da tarde.

Nesse trajeto é possível contar nos dedos de duas ou mais mãos a quantidade de fiscais da prefeitura circulando pelas ruas. Ao contrário do condado rural de Belo Horizonte, no bairro Vila da Serra, que pertence ao município de Nova Lima, o estacionamento rotativo é controlado por parquímetros eletrônicos.

São tantos fiscais circulando pelas ruas da Nova York mineira que corro o risco constante de esbarrar em um deles. Ao que parece, o trabalhador belo-horizontino não está acostumado com tamanha tecnologia e precisa de um exército de funcionários da prefeitura explicando aos leigos como funciona a máquina verde que registra os horários em que você deixou o carro estacionado.

Enquanto uma parte explica como funciona, a outra parte está multando aqueles que não se adaptaram à era da tecnologia.

Entre um fiscal e outro, consigo driblá-los rumo ao lanche da tarde.

Sentado em uma bancada em frente a padaria fica um senhor que pede moedas todos os dias. Ele já deve ter percebido que a minha situação não é das melhores, já que depois do terceiro dia me pedindo umas moedinhas — sem sucesso — ele simplesmente aceitou que ali tem alguém mais quebrado que ele.

Não é a primeira vez que penso em falar com esse senhor que naquela parte do bairro só tem proletariado. Se quiser ter algum sucesso, tem que ir para a parte rica.

O bairro Vila da Serra é dividido da seguinte maneira: da MG-30 até o hospital Vila da Serra ficam os prédios comerciais. Do hospital em diante, os condomínios de luxo.

Luxo do tipo ter sete piscinas gigantescas e cada apartamento custar a verba para educação de um pequeno município no interior de Minas Gerais.

Não estamos no Egito, mas nada traduz melhor a pirâmide social do que esse bairro. Quem trabalha do lado comercial do bairro dificilmente terá condições de morar em qualquer apartamento do lado rico.

Lá pra frente, no final da avenida, existe o comércio para as pessoas ricas. A desigualdade social é tão grande, que em frente aos prédios o estacionamento deixa de ser rotativo e passa a ser liberado. Afinal, quem é rico não precisa pagar para estacionar o carro, certo?

Mas o que mais chama a atenção nessa parte do bairro é o fenômeno de ter uma loja de vestidos de luxo ao lado de uma padaria e uma drogaria Araújo.

Ricos tem gostos estranhos e eu jamais entenderia. Mas posso garantir que as esmolas de lá devem ser boas.

Após passar por esse senhor, sou obrigado a parar no pedágio imposto pela gangue de pombos que domina aquela área.

Pode parecer exagerado, mas é verdade. Existe uma gangue de pombos que não deixa você passar se não jogar uma migalha ou correr atrás deles balançando os braços e fazendo “prruuu” com a boca.

Se você dá a migalha, a passagem é garantida sem nenhum problema. Se você escolhe abrir caminho à força, a chance de ser recebido por uma chuva de cocô da próxima vez é enorme.

É quase como a família Soprano de penas.

Pago o pedágio correndo e abanando os braços gritando pruu e finalmente chego ao meu destino. E sempre que encaro a padaria me bate uma sensação de nostalgia.

Essa padaria passou por uma mudança nos últimos meses.

O que antes era um espaço grande, aconchegante e com muitas opções de lanche, agora é, nas palavras dos donos, a primeira padaria “express” da região.

A padaria agora não deve ocupar mais que 30m². É menor que o meu apartamento, que já é incrivelmente pequeno.

Dividiram o espaço em dois corredores. No meio colocaram uma prateleira que serve como divisória. Nesse espaço não cabem duas pessoas lado a lado.

Do lado direito desse corredor temos toda a parte de bebidas congeladas e laticínios. Ao fundo, colocaram a parte dos pães.

Ainda é um mistério se eles são assados nesse próprio lugar ou se já vem prontos de alguma outra padaria, porque não consigo imaginar onde coube um forno naquele espaço.

Do lado esquerdo, após uma curve bem fechada, faço o caminho de volta onde fica a estufa de salgados e os caixas para o pagamento. Em um dia movimentado, não deve caber cinco pessoas lá dentro. Mas se o dono falou que é um conceito inovador, quem somos nós para discordar?

Mas se você quer saber a minha opinião, e a partir desse ponto estou apenas especulando, os donos não estavam mais aguentando pagar a taxa para a gangue dos pombos.

Quanto mais pessoas, mais dinheiro e maior a taxa pra não ter tudo cagado. Resolveram que seria melhor reduzir os custos e, assim, diminuir o imposto anti-pombo.

Em frente à estufa de salgados a frustração é visível em meu rosto. Não havia biscoito Calipso e os pães de queijo são da fornada da manhã.

Meu subconsciente comemora por mais um dia dentro da dieta, mas a minha parte consciente fica triste por não poder descontar a ansiedade em comida.

Passo pelo caixa com pesar.

Um barulho de asas soa próximo da minha cabeça. Os pombos não se esqueceram de mim e essa é só mais uma das técnicas de intimidação da gangue de penas.

O senhor sentado e sem moedas olha pra mim enquanto morde um pedaço do seu pão de queijo.

A volta para o trabalho é quase sempre sem nenhuma surpresa. Vez ou outra sou surpreendido pelos motoristas saindo dos estacionamentos que tem nesse trajeto. Até hoje não sei se existe ou não um hospital de olhos por ali, já que esse pessoal insiste em não ver os pedestres que andam na calçada.

Quando chego novamente ao prédio onde trabalho, tenho que enfrentar o temperamento do elevador.

Maldito o dia em que resolveram tornar essas máquinas seres inteligentes. Além de ter prejudicado a categoria dos ascensoristas, nos colocaram à mercê do humor e da boa vontade dessas caixas de metal.

Para descer ele não causa nenhum problema, mas pra subir ele segue um código de conduta próprio.

Se ele está na Garagem 1 e eu estou no andar da portaria, que fica logo acima, é certo que ele vai passar direto por mim e vai seguir até o último andar do prédio.

Depois vai descer parando andar por andar até o G3, dois andares abaixo da portaria. Só então, depois de transportar todo mundo do prédio que estava nos andares superiores para os andares abaixo, é que ele vai me dar uma chance de voltar ao meu posto de trabalho.

A voz feminina agora fala “Sobe”. Em meus pensamentos, o temor de que um dia essa frase seja seguida de “Impossível subir. Limite de peso atingido”. A frase que escuto, interrompendo o meu devaneio, é “Terceiro Andar”. Não foi dessa vez.

É o ponto final da minha jornada épica em busca do café da tarde. E apenas mais uma terça-feira comum para o resto do mundo.

--

--

Rafael Barbosa
Medium Brasil

Eu escrevo. Às vezes sai algo legal. Insta: @rafabarbosa