Memórias de um rosto inesquecível

Rodrigo Cerqueira
Medium Brasil
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4 min readJan 12, 2016

Beatriz, aqui estou eu te escrevendo uma carta. Sim, escrevendo, como pode perceber. Não estou digitando-a e nem a ditando a alguém. Sou apenas eu, este papel branco pautado, um lápis velho e a vontade de te escrever. Sei que sempre me furtei da escrita. Digo, escrever com as próprias mãos. Mas a causa é nobre.

Beatriz, não sabe o quanto eu sinto sua falta. Não sei se você sente falta de mim. Na verdade, acho até que não sente, pelo menos não das minhas manias. O trágico desta história é que sei muito bem que minhas manias a desagradam, mas bem, são manias. Manias são como vícios. É difícil parar de tê-las.

Mas veja bem, não as tenho por mal. Não é por mal que organizo por cores as minhas roupas nos cabides do armário. Sempre das mais escuras às mais claras, da esquerda para a direita. Ou que preservo os objetos na cômoda sempre da mesma forma. Centralizados, com mais ou menos dois centímetros de distância entre um e outro, de forma que as chaves da casa (organizadas por tamanho e ordem de utilização — primeiro a chave do portão da rua, depois a da porta da casa, seguida pelas da porta do quarto, do armário e das gavetas) estejam sempre do lado esquerdo do controle remoto da TV e do lado direito da carteira com os documentos. Também não é por mal que organizo com rigor militar, na primeira gaveta da cozinha, os talheres. Os garfos ficam sempre à esquerda e em ordem crescente — garfinhos de sobremesa à esquerda dos garfos maiores, de refeição — as facas no meio e as colheres na direita, também em ordem crescente. Aproveito aqui para confessar que era por isto que eu sempre me prontificava a lavar a louça. Me dava uma aflição sem tamanho quando você as lavava e jogava os talheres de qualquer maneira na gaveta. Ahh Beatriz, aquilo me deixava querendo arrancar os esparsos fios de cabelo dessa minha cansada cabeça. Nunca te falei isto, mas sempre que você lavava os pratos, eu acordava de madrugada para arrumar os talheres da gaveta. Veja Beatriz, nada disso era por mal, só fiz pensando no futuro.

Sei que estas pequenas manias te desagradavam muito, Beatriz. Lembro de como você certa vez gritou comigo, me chamou de louco e paranoico e disse que eu deveria procurar ajuda. Lembro também de quando você, em um dos ataques de fúria, mudou toda a minha coleção de discos de ordem. Colocou Revolver, dos Beatles ao lado de Every Man Has A Woman, da Yoko Ono. Um completo disparate, mas a perdoei pois entendi que tinha sido involuntário. Levei uns três dias para rearrumar a coleção inteira e mais dois dias para catalogá-la em suas posições definitivas (deixei espaço na letra N, da categoria Blues para o The Great Show Live in Paris, da Nina Simone que levou com você). Aliás, cataloguei a casa inteira. Todos os objetos, detalhes, posições. Fiz um mapa da casa, de modo que qualquer um poderia rearrumá-la de forma fácil, até mesmo “alguém que não liga para nada disso”, como você se classificava. Levei um mês, aproximadamente, fazendo este mapa da casa, mas acho que o resultado ficou muito bom. Acho que você gostaria. Sempre gostava de como eu me dedicava ferrenhamente a alguma coisa e me parabenizava quando eu conseguia alcançar algum objetivo.

Hoje foi o primeiro dia de trabalho da Maria, aquela diarista que você contratou. Tive quase uma hora de conversa com ela, a respeito das coisas e seus respectivos lugares. Entreguei uma cópia do mapa da casa que eu fiz. Acontece que agora a pouco, quando cheguei do escritório, mantive a rotina de sempre: tirei a roupa; a dobrei, mantendo sempre a calça, a cueca e a camisa empilhadas nesta ordem; pus meus óculos e meu relógio em cima da pia do banheiro e fui tomar banho. Para minha desagradável surpresa os frascos do xampu e do condicionador estavam trocados de lugar. Fiquei irritado, mas desfiz a confusão e continuei o meu banho. Após sair do banho percebi que meus chinelos não estavam ao lado da cama, como deveriam estar! Passei pouco mais de meia hora procurando-os. Quando finalmente os encontrei me deu um misto de raiva e profunda tristeza. Com raiva pensei em demitir a Maria, mesmo sendo apenas seu primeiro dia de trabalho, mas achei que você não gostaria. Você sempre dizia que as pessoas mereciam uma segunda chance. Aí me bateu uma profunda tristeza. Lembrei de você. Lembrei de nós dois. Por mais que você odiasse as minhas manias, você nunca foi capaz de tirar os meus chinelos do lugar. Ahh Beatriz, sinto tanto a sua falta.

É por isso que te escrevo. Preciso te ver, mesmo que seja a última vez. Sei que você pode não querer mais me ver, mas quero te ver, justamente porque não te verei nunca mais. Quero tocar seu rosto e gravar em minha memória as curvas dos seus lábios; as rugas que brotam a cada sorriso seu (que você odeia, mas que eu adoro); o jeito que você franze a testa quando fica brava com alguma coisa. Quero te ver para não esquecer o seu rosto. Seria duro demais para mim ter de completar com minha pobre imaginação, as partes do seu rosto que eu venha a esquecer. A imaginação nunca é tão boa quanto a memória. Aliás minha memória é ótima. Venho treinando-a desde de pequeno, esperando por este momento. Treinei-a para que eu pudesse guardar por mais tempo a imagem e o local das coisas. E o seu rosto.

Então é isso, Beatriz. Preciso encerrar esta carta. Já está ficando difícil de escrever. Minhas vistas estão escurecendo, assim como aconteceu com meu pai e meu avô, antes de mim. Torço para que aindadê tempo de ver seu rosto uma última vez.

Com amor.

Do sempre seu, M. R. Borges

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Rodrigo Cerqueira
Medium Brasil

Economista brasileiro. Degustador de bebidas escocesas e charutos cubanos. Admirador de filósofos alemães e escritores russos e apreciador de comida italiana.