foto por: Tom Eversley

Mil pequenezas

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil
Published in
4 min readNov 11, 2015

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Eu sou aquela pessoa que nunca precisou fazer uma tatuagem só pra sentir dor. Ou pra se sentir diferente. Ou por inquietação, ou pra imitar algum ídolo, ou por falta (ou excesso) de alguma coisa. Sou aquela pessoa cujas tatuagens estão todas por dentro da pele, esculpidas na carne. Aquela pessoa que sentiu uma dor indescritível e compulsória na feitura de cada uma dessas tatuagens. Uma dor daquelas que não há agulha no mundo capaz de transmitir, tampouco tinta capaz de expressar.

Sou aquela pessoa que não sente necessidade de entrar na hamburgueria ou cafeteria da moda. Não conseguiria fingir aquele ar blasé. Também não aprendi a técnica de parecer naturalmente afetado. Tampouco consigo entrar num bar rock’n roll fazendo cara de cool, meio como um primata desgarrado imitando primatas ao se aproximar do novo bando, na tentativa de ser bem aceito. Também sou aquela pessoa que se recusou a usar uma roupa que ficaria escrotíssima em mim só porque está na moda. E por consequência lógica, eu também não sou aquela pessoa que mente descarada(mente) e desonesta(mente) quando diz que ‘comprou a tal roupa (escrota) porque gostou’ e não porque está na moda.

Eu sou aquela pessoa que não sentiu aquela necessidadezinha babaca de fumar na adolescência pra parecer mais adulto ou mais fodão, ou se enturmar, ou o qualquer outra desculpa que se use. Eu sou aquela pessoa que perdeu o pai bem cedo na vida pra uma doença causada pelo cigarro, e que entendeu bem cedo também que fumar é uma escolha escrota que vira um vício escroto. E que argumento de viciado é tão viciado quanto seu amor pelo vício. Sou aquela pessoa que tatuou internamente o cigarro que matou um pai. Uma caveira fumando, numa pose estilo James Bond. Comer é necessário, beber é necessário. Cigarro é desnecessário. Ninguém morre se ficar sem respirar a fumaça liberada pela queima de substâncias químicas (que preencheriam uma lista mais comprida que meu braço) enroladas num papel. O contrário acontece. Com bastante frequência.

Eu sou aquela pessoa que não precisa ficar a todo momento repetindo o mantra ‘foda-se, quem sabe da minha vida sou eu’. Simplesmente porque eu descobri em algum momento que não preciso reafirmar de 5 em 5 minutos as minhas escolhas. Eu sou a pessoa que aprendeu a pensar antes de fazer, e que foi ensinada que escolhas refletidas são infinitamente menos passíveis de arrependimento (e de justificativas) que aquelas nascidas do famoso “fogo no cu”. Eu sou aquela pessoa que aprendeu que o estímulo brutal à impulsividade irrefletida e ao culto à paixão só serve pra transformar as pessoas em consumidores mais compulsivos, pessoas emocionalmente analfabetas e cidadãos (e eleitores) bem mais manipuláveis e muito menos conscientes.

Eu sou aquela pessoa que aprendeu a assimilar porradas dadas pela vida antes destes tempos em que o drama parece ter se tornado o prato do dia. Onde o simulacro de drama faz sucesso, onde se tornou cool se fingir de deprimido mesmo quando não se é. Se você for ver bem, só glamouriza e acha ‘bonito’ pagar de deprimido quem é idiota o suficiente para não entender o quanto séria é a dor de quem tem uma condição como essa, na real. Mas ainda assim tem muita gente que prefere esquecer esse fato de lado e seguir transformando posers da depressão em formadores de opinião.

Eu sou aquela pessoa que aprendeu a escolher amizades. Sim. Escolher. Quando criança, fui ensinado a escolher as amizades. Andar com gente que eu ia percebendo ser boa. Observar o comportamento de todo mundo com quem eu convivia. Seguir os bons exemplos e evitar quem fosse merdeiro. Não ser o ‘amigo de todo mundo’. Procurar andar com quem pudesse acrescentar qualidade à minha existência, não quantidade. Ser amigo de quem fosse se mostrando correto. Me afastar de quem fosse se mostrando errado.

E eis que ao invés de restringir, esse conceito me libertou. Ao trocar a quantidade pela qualidade, passei a ter uma encantadora coleção de amigos. Pequena, mas democrática. Já que eu tinha que escolher pela qualidade, não importava se eram amigos ou amigas, não importava se suas famílias tinham mais ou menos dinheiro que a minha. Não importava se moravam em mansões ou casinhas. Não importava se eram pretos ou loiros, se tinham cabelos assim ou assado. Não importavam se tinham pais “importantes” ou “desconhecidos”. O que importava era a qualidade de cada uma daquelas amizades. E o que aprendi com elas?

Aprendi a ser alguém que procura valor ao invés de preço. Aprendi a preferir o ser do que o parecer ser. Aprendi que nada ruim que nos sujeitamos a fazer para agradar ou só para ficar bem com um grupo vale a pena ser feito. E no fim, aprendi com meus poucos e bons amigos, e com a vida que vivi ao lado deles, que temos que assumir a responsabilidade pelo que fazemos. Principalmente pelas eventuais más escolhas que são inevitáveis na caminhada aqui nessa vida. Aprendi que a culpa do meu dia ser ruim não é de ser segunda-feira, nem de estar chovendo, nem de não ter tomado café logo quando acordei. Se sou humano e se nada do que é humano me é estranho, aprendi a abraçar a ruindade do meu dia. Aprendi a assumir a responsa que me era devida e seguir em frente, estando bem ou não naquele dia. Todos vamos ter dias bons ou ruins, isso é inevitável. Mas criar dentro de nós a capacidade de seguir num sentido positivo independente do que o que nos é externo impor, é algo possível e que compete só a nós.

Quando isso acontece, você percebe que o cinza do céu refletido nas poças de chuva fica mais bonito. É quando você pode olhar pra vida livre do peso torturante daquelas mil pequenezas acumuladas, que vamos com o passar do tempo permitindo que o mundo pendure em nós.

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Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil

Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.