Minha filha é LINDA, tá?
À minha frente, a bancada dos pimentões. O mercado cheio, aquele movimento típico de sábado. Fim de tarde. Pimentões mais bonitos que o de costume, o que me fazia pensar em levar alguns a mais para rechear com carne moída. Olho para o lado, vejo uma criaturinha de no máximo três anos de idade. Atrás dela, outra criaturinha de cinco, no máximo seis. Muitíssimo parecidas, irmãs certamente. Faziam uma arruaça correndo entre as gôndolas do mercado. Já tinha ouvido a barulheira à distância em outro momento das compras, mas não tinha prestado atenção nem ligado o som às autoras, as pequenas meliantes que agora passavam como ratinhos entre as pernas das pessoas. Reparei que a menor se apresentava de maneira pouco usual. Calça de pijama bem suja, um cabelo completamente caótico, que parecia algo entre cachinhos de anjo e uma samambaia selvagem e frondosa. A boca, completamente borrocada de um batom rosado, algo que a tornava semelhante a uma versão bebê do Coringa (a versão de Heath Ledger), arquiinimigo do Batman. Ambas com camisetas genéricas parecidas, cabelos da mesma cor castanho claro, peles bem branquinhas e iguais. A irmã maior não se encontrava tão borrocada e tinha um semblante um pouco menos selvagem. Ainda assim, parecia uma cúmplice fiel da pequena líder. Numa outra volta das duas pelos corredores era possível perceber que não só o rosto da menor estava borrocado pelo batom: os pés e as mãos também.
Descobri a mãe alguns metros à frente no mesmo corredor dos legumes, em frente às batatas. Uma mulher já não tão jovem, com ar de garçonete de saloon de filme de western. Aparentava a idade que combinaria bem mais com uma mãe de adolescentes ou jovens adultos do que daquele par de bichinhos com cabelo de moita. Nem rica nem pobre, nem feia nem bonita. O olhar de um lutador que pisa no ringue por pura obrigação protocolar, já certo de uma derrota. Uma aparência geral que na minha infância, ouvi tantas vezes minha avó dizer naquela expressão antiga: “uma pessoa desmazelada”. Tal a força da impressão, que era como se emitisse um campo de força de desmazelo. Tão forte, que alcançava as crianças também.
Ela chamou algumas vezes a menor pra junto de si, sem nenhuma convicção na voz de que isso funcionaria. Nessa hora, descobri que seu marido estava no mercado, exato no outro lado das bancadas de legumes. Escolhia algumas frutas. A menorzinha, nesse momento já estava correndo entre dois caixas (e as pernas de algumas pessoas) lá na frente da loja. A maior a perseguia, quase derrubara uma velhinha no trajeto. Me chamou a atenção o som emitido pela menor em meio às correrias, algo semelhante ao rosnado de um Diabo-da-Tasmânia. E me refiro ao animal real, não ao personagem da Turma do Pernalonga. Recomendo a pesquisa a quem não conhece. Explica perfeitamente porque o nome popular do animal é esse. Talvez fosse a altura dos rosnados, ou quem sabe até uma precoce personalidade forte, mas creio que nunca tinha visto uma criança tão pequena ser tão capaz de ignorar de maneira tão solene as censuras e chamados de uma mãe.
A mãe reclama com o marido em tom de profundamente injustiçada, algo como:
— Vamos acabar essas compras logo, que já tive que ouvir um “que crianças mal-educadas!”
O marido, bem mais pra feio que pra bonito, nem alto nem baixo, mais pra gordo que pra magro, um rosto e expressão de capanga de filme de máfia, levanta o pescoço como um galo prestes a cantar:
— Quem foi, quem foi?
— Ah, uma PERUA lá na frente, já foi embora. — responde a mãe, seguida de um bufo e do desarme do pescoço do marido, que retorna à análise cuidadosa de um maracujá. A mãe tinha aquela interessante habilidade tipicamente barraqueira de destacar uma palavra no meio de uma frase, como se tivesse uma tecla Caps Lock vocal.
Na seqüência das compras percebi a família se dirigindo a um caixa próximo enquanto já estava na fila esperando minha vez. A mãe tagarelava naquele tom justificativo-geral, de quem se dirige à moça do caixa, mas “serve pra todo mundo que está em volta ouvir”. Generalidades como “criança é agitada mesmo”, “qual é o problema”, “olha, tá vendo filha, a moça ali te achou LINDA”. As compras deles passaram mais rápido que as minhas, visto que o pai já estava na fila, guardando lugar. Enquanto finalmente passava as minhas compras, assisti o pai e a filha maior se dirigindo ao carro, estacionado logo em frente ao pequeno mercado, enquanto a mãe tentava arrastar (literalmente) a pequena em direção ao veículo. Em uma última olhada, percebi nos olhos e semblante daquela mãe o brilho da fé de toda uma geração de pessoas que acredita firmemente que tudo que uma criança precisa para ter garantida sua felicidade e sucesso como ser humano é que alguém a ache “LINDA”. Então tá, né?
P.S.: Antes de entrar no carro, a menor se agitou tanto tentando escapar do arrasto da mãe, que deixou um dos chinelos caírem, indo o pequeno calçado parar embaixo do carro ao lado. Acho que ninguém percebeu, tamanha a sensação de sossego e alívio pela partida das criaturas. Eu mesmo só fui me lembrar quando já estava em casa.