Aquelas coisas que me lembram você

Ásbel
Medium Brasil
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5 min readSep 13, 2015

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Naquele tempo, tudo que eu sabia sobre mim mesmo é que era fotógrafo. Trabalhava em casamentos, festas de debutantes e eventos de engravatados, registrando o que acontecia além da mesa de canapés. Vez ou outra trabalhei com publicidade, mas a lamúria pelo preço sempre menor me cansava. Lágrimas não pagam minhas contas.

Mas fotografia era mais que meu emprego. Eu viajava pro interior do estado nos fins de semana, registrando paisagens. Era um daqueles famosos desconhecidos do Instagram, cheio de seguidores vendo e curtindo minhas fotos de lugares alegres e rostos sofridos.

Em um domingo, numa praça antiga, eu tentava captar a imagem do chafariz abandonado por um ângulo diferente quando toquei sem querer no botão de foco automático. Ao invés de se ajustar pro que estava a poucos centímetros, a lente focou em algo a vinte metros: uma roda de garotas rindo e ignorando qualquer realidade em volta delas.

Sem pensar, apertei o botão e roubei aquele momento, guardando seus rostos na memória da minha máquina. Quando ergui os olhos, uma delas estava na minha frente. Sorrido. Pediu para ver a fotografia. Deslizei sem querer para as fotos da fonte. Ela me falou sobre o chafariz, que foi construído há uns 100 anos. Que originalmente não era daquela cor. Que tinha uma inscrição em latim já apagada.

Saímos algumas vezes. Ela gostava do que eu fotografava. Eu gostava das suas histórias. Ela contava com sentimento. Quase revivia os fatos ali, na minha frente. Para mim, eram mais reais que o mundo ao meu redor. Talvez fosse aquilo que chamam de amor.

Em abril, estávamos namorando. Em julho, ela se mudou para o meu apartamento. No começo, sempre jantávamos bebendo uma taça de vinho envelhecido. O mesmo tempo que fez bem para o vinho não fez o mesmo para nós dois.

Um dia brigamos feio por causa de alguma besteira que nem me lembro mais e ela foi dormir na casa de uma amiga. Disse que queria me esquecer. Passou a noite bebendo uma garrafa de vodca inteira. Eu acordei três dias depois, cansado.

Na época não entendi muito bem o que estava acontecendo, mas isso se repetiu. Sempre que ela bebia demais, eu dormia um dia inteiro. Não me lembro de nada que fiz no mês em que terminamos e ela viajou para a casa dos pais. Era como se eu não tivesse vivido naquele tempo.

Quando ela voltou, estava de caso com um cara. Eu era feito de ciúmes. Queria me sentir bem por ela, queria ficar feliz por ela seguir em frente e me contentar com a sua felicidade. Mas era complicado.

Ela me ligou quando brigaram feio pela primeira vez. De uma maneira infantil, achei que poderia acontecer algo em nome dos velhos tempos. Entretanto, ela só queria um amigo pra desabafar. Depois de tudo, eu era só o cara do outro lado da linha para quem ela ligava para falar dos problemas. Quase um terapeuta, só que sem o bloquinho e com algumas fantasias a mais.

Quando ela estava bem, me esquecia. Na verdade, até eu mesmo me esquecia. Foi aí que as coisas começaram a fazer sentido. Quando me dava por mim, estava andando em uma rua qualquer ou no corredor de um prédio desconhecido. Sabia para onde estava indo, mas não tinha certeza do motivo que me fazia passar por ali. Só que nesses momentos eu sempre a via de relance. E ela sempre olhava para mim, através de um espelho, sobre um ombro, por uma fresta na porta.

Eu era só uma lembrança. Não existia mais. Talvez nunca tivesse existido. Talvez fosse um sonho dela, o desejo de encontrar um cara legal na praça, alguém para ouvir o que ela tinha para dizer e falar o que ela gostaria de ouvir. Talvez eu seja um vulto inconsciente, formado ao longo de décadas. Talvez tenha sido só um devaneio de quatro minuto. Ou um suspiro.

E se tiver um fotógrafo lá fora por quem ela se apaixonou? Eu poderia ser apenas um reflexo dele. O momento capturado das impressões dela sobre alguém. Alguém que ela pode ter amado, pode ter conhecido, pode ter apenas flertado um dia na rua, ou na praça, ao lado de um velho chafariz.

Hoje eu vivo nos becos, fugindo das ruas principais, temendo encontrá-la. Seria constrangedor. Volta e meia vou em festas da memória dela, onde ela foi há anos, quando ainda era uma adolescente tímida. Ela não me reconhece. A festa de formatura da prima é um lugar onde sempre tenho entrada livre. Mas meu local preferido é sua festa de três anos. Seu pai, que nunca conheci enquanto namorávamos, me cumprimenta e me convida pra entrar. Ela está radiante, com um vestido verde e uma tiara de unicórnio na cabeça. A criança mais alegre do mundo. Daquele mundo.

Ainda tiro fotos, mas não me deixo enganar pelas imagens gravadas. Deleto a maioria. Não confio em meu cartão de memória. Não confio em minha própria memória. Não confio sequer nas cores que vejo. Hoje o céu está vermelho e me parece que sempre foi. Mas talvez amanhã seja verde e eu esteja convicto de que nunca foi diferente. Sou apenas uma ideia vagando no lado escuro da lua. Não posso ter certeza de nada.

Mesmo assim, continuo vivendo. Leio jornais, os quais estampam só o que a interessa. Vou a bares onde ela deve ter ido algum dia e em cafeterias que ela viu no Pinterest ou nas fotos de uma revista, em uma matéria sobre Paris. Converso com seus antigos amigos de colégio, hoje apenas fantasmas do que ela acha que se tornaram na vida adulta.

Atualmente estou saindo com a lembrança de sua professora de inglês. Devo admitir que é uma pessoa que se irrita com facilidade, mas me pergunto se ela é isso mesmo ou é só uma característica acentuada pelas memórias de minha ex. No fundo, é uma mulher divertida. E adora uma taça de vinho no jantar enquanto me escuta falar de viagens, fotos e da velha história de um chafariz esquecido.

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Ásbel
Medium Brasil

Havia um peixe nadando no universo, descobrindo coisas novas e vendo tudo que há de incrível por aí. Mas esse não era eu; nessa hora eu estava no supermercado.