Não foram os deuses

Gabriel Schincariol Cavalcante
Medium Brasil
Published in
27 min readJan 2, 2016

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por Gabriel Schincariol Cavalcante., em algum dia de 2014.
Ilustrações de Marina De Nadai.

Gaza, 2015

O calor é praticamente insuportável. O suor escorre pelo pescoço e empapa a camiseta. Olhando a distância, tudo fica distorcido pelas ondas quentes. O céu, no entanto, continua lindo: quase nenhuma nuvem, o azul destacado, o Sol como um monstro gigantesco e imbatível. E a Estrela de Davi. A Estrela de Davi está sempre lá em cima, brilhando. E soltando bombas. Toneladas de bombas.

No chão, ele avança como parte da patrulha. A patrulha com o estandarte da Estrela de Davi. Ao redor do pescoço, um escapulário: ele, judeu, usando um escapulário cristão. E, ao redor do escapulário, a bandoleira do fuzil automático que ele empunha. É parte de seu trabalho estar atento durante as patrulhas a pé, e ele está. Mas também pensa em assuntos muito menos belicosos, como a noiva. Saudades. O capacete incomoda e parece martelar no topo do crânio. Os ombros estão cansados — não com o peso de Cristo, mas da arma. O suor escorre até a ponta do nariz adunco, e ali se acumula. Ele expira com a boca e faz voar as gotículas salgadas. Já caminham há quase duas horas e nada fora do normal aconteceu — se é que existe normal aqui. Um pouco mais e acaba o seu serviço. Os dedos dos pés lutam por espaço dentro da bota. Ele pensa menos na missão e mais em casa. Foge para dentro da sua mente. A noiva de vestido rendado com estampa florida. Os pés descalços e as coxas descobertas, o cabelo molhado com água doce do riacho e o sorriso enquanto descansa deitada na grama. Ela se aproxima dele engatinhando, sorrindo. Suas pernas sobre as dele. Beija-lhe. Desabotoa a camisa, sorrindo, As alças do vestido caem do ombro. As mãos dele correm da cintura para os… Alto!

Arrancaram-lhe as suas memórias. Ele nem mais sentia o capacete e o suor, mas foi chamado de volta à realidade. Estava sorrindo para o nada e ficou parado com cara de tacho. Alto! Estão em frente ao que foi uma escola. A Estrela de Davi dos céus cometeu mais um equívoco. Era uma escola, disseram ser um quartel general terrorista. Erro honesto. Efeito colateral. A patrulha está encarando os escombros. Pararam porque uma multidão está aglomerada em volta dos pequenos corpos retirados do edifício. Gritam. Choram. Acusam. Mas foi só um erro honesto! Ele sabe que isso nunca é bom. Ele olha para cima e vê as estrelas passarem. Sente um calafrio. Ele sabe que tantos erros honestos são fruto de desonestidade. Descaso. Sente um arrepio olhando os pequenos corpos. Mas ele tem uma missão. Aperta a mão no fuzil; sente medo. Nada de bom pode sair dali. Corre a mão livre para o peito e encontra o escapulário. Segura com força: dê-me força, Pai. Não vê nada. Um clarão. Zumbido insuportável no ouvido. Os pés saem do chão. Tudo se apaga: explodiram os homens de Davi.

Gaza, 2015

Ele está acostumado com o calor. Usa seu saiote malaio e um manto na parte de cima do corpo — um luxo que indica sua origem. Levanta a cabeça e olha para o horizonte decadente: acabou a oração. Mas parece que Alá não está ouvindo as preces. Ouve o som dos infiéis com seus aviões lá em cima. Ouve o som dos fiéis chorando com seus filhos aqui embaixo. Os filhos de Gaza. Os mortos de Gaza.

Saiu de casa depois de orar e foi direto ao som dos gritos. Chegou à fachada da Escola e viu o que sobrou das explosões: concreto por cima de concreto por cima de humanos. Restos humanos. Mortos, mais uma vez. Cada vez mais mortais, em nome de imortais. As mães choram e os homens rezam. Chega da parte sul homens de chinelo e fuzil. Culpam o Estado Judeu. Culpam o Ocidente. Clamam por vingança! Mas ele sabe: eles não querem justiça. Querem poder. Querem sangue. E se não fosse por essa sede irracional de sangue e poder nenhuma bomba cairia sobre as casas do povo de Maomé. A guerra não era o caminho, e isso era tão óbvio que ele não conseguia entender como o povo, com seus filhos sem vida nos braços, podia endossar o coro por mais destruição, o coro de ódio. Alá nunca foi ódio. Alá é amor — ódio vem do coração humano. Ele reza em silêncio pela razão. Pela razão dos homens de Davi. Pela razão dos homens do Corão. Pela razão dos homens. Jamais pegaria em armas: como poderia? As crianças ali, mortas. Não foram os deuses que mataram. Foram os homens. Os homens, suas armas e o seu ódio. Ele se lembra do passado e das historias dos dias em que uma mão sem religião se estendeu para uma mão muçulmana e para uma mão judaica. Só por que era outra mão humana. Pensou no dia em que poderia viver fora da Faixa. De Gaza. De medo. Pensou na família, no filho. Em casa, doente por causa de uma gripe; não pôde ir à escola. Se fosse, não estaria mais doente. Cerrou os punhos enquanto o arrepio corria por sua coluna. Pensou no… Alto! Ouviu o som das vozes em hebraico. Eles chegaram. Tarde, como sempre. Os homens de chinelo e fuzil correram para a parte de trás do muro do outro lado da rua. Agora os homens de verde, botas e fuzis apareceram. Conversavam entre si, olhando para a destruição. Pareciam indiferentes; menos um deles, que tinha no olhar um resquício de dor. Ele sabia que nada de bom acontecia quando os homens da Estrela de Davi chegavam depois de suas bombas. Afastou-se, ele nada poderia fazer ali. A paz não tinha chance. O ódio era o combustível que alimentava a guerra, a luta e a bomba que dizimou a escola. Afastou-se, triste. Já tinha se virado e caminhava para longe, quando ouviu os gritos. Entendeu as palavras. Era uma oração. Era uma oração de adoração, em árabe, gritada como ódio. Ele sabia o que aconteceria, e se jogou no chão. O mundo tremeu, e por cima dele voaram pedras, terra e sangue. O homem de Maomé acabara de se explodir.

Telavive, 2010

Como todos os dias, o calor castigava. Mas a piscina e o álcool tornavam mais fácil de suportar. Benjamin Ben Tamir não entrou na água; ficou só com as pernas submersas, sentado na borda. Gostava de observar a família. Só observar. Observava a mãe com as comidas e as bebidas; parecia um passe de mágica como ela mantinha tudo sobre controle. Observava a irmã, uma criança ainda, nadar de um lado para o outro embaixo d’água, gritando sempre: “Ben! 40 segundos!”, afundando em seguida com o a o indicador e o polegar fechando o nariz. Observava a noiva no seu biquíni: não havia no mundo beleza maior. O cabelo curto no pescoço, a pele morena de sol fazendo brilhar as gotas de água que corriam do cabelo para o pescoço e encontravam refúgio entre os seios. Refúgio. Ele sorria diante de tanta beleza, sorria diante dos olhos negros que pareciam, paradoxalmente, criar luz. A luz nascida da escuridão. Ela era toda luz. Ele agradecia a todo o momento por ela ter visto nele alguma coisa. Só parou de observar quando seu pai sentou ao seu lado. Com seu corpanzil avantajado, olhou para Benjamin com seu rosto redondo e vermelho, sua barba cheia e branca e seu cabelo inexistente. Um rosto pura bondade. Encarou o filho com seus olhos azuis que pareciam cansados depois de tanto tempo brilhando. Uma estrela que se apaga. Tamir já passava dos 60, mas sempre fora um homenzarrão saudável. Benjamin encarava o pai enquanto ele olhava para o filho com um meio sorriso. Benjamin conhecia aquela expressão: ele estava preocupado. E Benjamin sabia o porquê.

- Benjamin… — disse, por fim.

- Sim, Dada? — respondeu o filho, sabendo exatamente o que viria a seguir.

- Já faz três anos. Você já pode sair do Exército. Estudar, viajar. Você sabe. Com suas condecorações, o Tzahal bancará seus estudos superiores onde você quiser. E se não bancarem, nós temos condições.

- Eu sei, Dada. Mas eu ainda não decidi para onde ir — ele já havia decidido, sim.

- Filho, em três dias você tem que apresentar seu pedido de dispensa ou reincorporação. Você já fez muito por nosso povo. Sua mãe se preocupa tanto. E sua irmã, meu filho. Você não tem mais obrigações. Viva sua vida!

Tamir serviu seu tempo, lutou sua guerra, conhecia a vida da caserna: Guerra dos Seis Dias, ele servia em uma das bases aéreas como mecânico de aeronaves. Benjamin podia deixar a farda de lado. Tinha servido seu tempo e cumprido — cumprido bem — sua missão. Mas ele sentia que ainda faltava algo. Ele tinha que encontrar sentido em meio a tanta loucura.

- Dada, — disse para o pai — eu vou me decidir. Não se preocupe, nem você nem a mamãe. Eu sei me cuidar. Eu sempre volto para casa, não volto?

- Ah, Benjamin… — suspirou Tamir. — Só me prometa uma coisa: use sempre o escapulário do seu avô. E lembre-se todos os dias o que ele significa. Não deixa essa guerra te cegar. Nem seus olhos, nem seu coração.

- Sim, Dada. Eu prometo.

E apertou forte o escapulário no peito.

Paris, 2010

A música já tocava sem ninguém para ouvir. O salão de festas da Universidade de Paris já estava quase vazio; em nada parecia o salão que horas antes estava apinhado com mais de 5000 pessoas: formandos, familiares dos formandos, amigos dos formandos, amigos dos amigos e os amigos de ninguém. Na mesa 01 — a mesa do convidado de honra — a família Noah continuava conversando. Esta era a mesa de Gerard Noah, ex-ministro da saúde francês e titular na cátedra da Universidade. O Dr. Noah é um dos maiores nomes da medicina devido a sua pesquisa que viabilizou a vacina contra o Ebola, que assolou parte do Oriente Médio. Ele estava sentado com sua mulher, com sua nora — Mayah Assaf -, e seu filho único Jeromé Noah. Jeromé estava com a gravata frouxa, o primeiro botão da camisa aberto e as mangas dobradas, expondo um antebraço com veias grossas e músculos definidos — lembrança de um tempo que há muito tinha deixado para trás. O frio de Paris não se fazia sentir dentro do salão. Era a noite em que se formava o Doutor Jeromé Noah, traumatologista. Ele e o pai conversavam, mas o assunto proibido continuava pairando por ali como uma alma penada que se recusa a ir embora. Até que chegou o momento em que Gerard enfiou o dedo com muito gosto na ferida.

- Então, Mayah, já decidiu em que bairro vocês irão morar? Com o Jeromé formado, tenho muitas recomendações de lugares aqui por perto precisando de um consultório — disse, sabendo exatamente o que estava fazendo.

- Não — disse Mayah, sem parar de sorrir. — O senhor bem sabe que não escolheremos bairro nenhum. Não aqui.

- Vocês continuam com essa loucura? Quando vão deixar esses planos infantis para viverem no mundo real? — falou Gerard, subindo o tom.

- Planos infantis que vão salvar vidas.

- Planos infantis que vão salvar vidas? — já gritava — Planos infantis de um casal inconsequente. Primeiro meu filho vem com essa baboseira de islamismo, e agora essa presepada. O deus de vocês é muito engraçado, mesmo.

- Pai! — interveio Jeromé, claramente incomodado.

- O quê? Eu estou mentindo? Que deus é esse que manda seus filhos amarrarem bombas no corpo e irem se explodir no meio de crianças? Que deus é esse que prega a destruição de outros povos por meio da guerra? Que deus é esse que apedreja suas mulheres, estupra suas filhas? O deus de vocês é uma maldita máquina mortífera.

Mayah continuava sorrindo. Ela nasceu na França, com condições de vida muito melhores que a maioria das pessoas. Estudou Psicologia e se formou com honras. Mas nunca negou sua origem, sua fé. Seus avós vieram fugidos do Líbano em meio às tensões de Israel e seus vizinhos, desde a Crise de Suez. Vieram ajudados pelas mãos de um homem: Renoir Noah. Uma mão que um dia fora cristã, mas foi nos seus últimos dias uma mão sem religião, a simples mão de um homem velho, cheia de calos.

Ela respirou e respondeu, com toda a calma do mundo:

- Dr. Noah, eu irei ignorar os comentários do senhor sobre a minha religião. O senhor salvou milhares de vidas do meu povo com sua pesquisa, e a isso sempre serei grata. O que o pai do senhor fez por minha família não pode ser mesurado; é uma dívida que nunca quitaremos. Mas este deveria ser o maior exemplo de amor ao próximo que o senhor poderia ter. O senhor deveria saber melhor do que ninguém que são os homens, não os deuses, que se matam. Foi a sua Igreja, e não cristo, quem ateou fogo em mulheres, torturou cientistas. Cientistas, pesquisadores, como o senhor! São os homens, Dr. Noah. Alá e Javé são apenas bodes expiatórios.

Um silêncio pesado se instaurou. Uma camada indissolúvel de amargura. Quem rompeu a teia foi a voz grave e baixa de Jeromé:

- Nós vamos, pai. O que o senhor fez com sua pesquisa, eu quero fazer com as minhas mãos. Nós vamos para Gaza. Mas será daqui a seis meses. Mayah está grávida.

Não se sabe se foi a memória do pai, se foi o álcool ou se foi o choque da realidade da nora, do filho e do neto; seja como for, naquela noite a família viu — mas nunca confessou — Gerard Noah, o grande doutor, enxugar os olhos.

Sachsenhausen, 1943

Jesse não sentia mais os pés. Tanto tempo encolhido na mesma posição deixou todos os seus membros anestesiados. Os ossos se tocavam — era só uma fina camada de pele. Acordou. Na verdade, continuava naquele estado de letargia, meio morto, meio vivo. Ouviu a voz do Doutor.

- Jesse? Jesse?

Era Renoir. Aquele certamente era o único campo com um médico das fileiras nazistas que realmente cuidava dos aprisionados. Mas Jesse sabia que o Doutor não era em nada parecido com os homens do III Reich.

- Jesse? Acorde, meu filho.

Eles tinham basicamente a mesma idade, mas Renoir tinha um ar paternal que tornava impossível não vê-lo como um homem mais velho. Jesse despertou da sua prostração, e logo se tomou pelo terror:

- Doutor! Doutor! Onde está Ali? Doutor, onde ela está? — sua voz era um grito esganiçado.

Ali era a esposa de Jesse, grávida de quatro meses. Não havia notícias de famílias que permaneceram juntas por tanto tempo — famílias judaicas — depois de triadas e mandadas para os campos. Mas Jesse e Ali não foram, miraculosamente, separados. Sabiam, no entanto, que o milagre tinha nome e sobre nome. E não era de nenhuma divindade.

- Acalme-se, Jesse. Ela está bem. Você vai encontra-la logo, logo. Tome, tome essas vitaminas. Você está muito fraco… isso, beba tudo. Aguente firme, meu filho. Logo alguém virá te buscar. Descanse, por enquanto. E não tenha medo.

Jesse não conseguiu responder. Seu corpo castigado não deixava. Apagou.

Não tinha como saber quanto tempo dormiu. Foi acordado com pontapés do guarda. Era Eric Kopp. O demônio. Kopp sorriu diabolicamente e disse, entre um chute e outro:

- Levante-se, rato judeu! Chegou sua hora. Você vai virar experimento. O Bom Doutor finalmente vai fazer algo de útil com esse seu rabo magricela. Seu nome é o primeiro da lista, ratinho de laboratório. Vamos, vamos morrer, seu imundo.

Jesse se sentiu confuso. Sabia o que “experimentos” significava. Todo judeu conhecia o Anjo da Morte. Mas o Doutor nunca faria uma coisa dessas… ou faria? Não, não o Doutor. Onde estaria Ali? Não conseguia deixar de pensar nela. Sonhou com os dois na Loja de Roupas Sina, nos dias em que ninguém destruiria suas janelas ou picharia seu muro com os dizeres de “Ratos!” porque eles eram judeus. Sentiu o peito apertar insuportavelmente. Aqueles dias estavam mortos — como os milhões de judeus. Então foi levantado com força por Kopp, sendo socado nas costelas e guiado na base das pancadas pelo corredor. Foi largado na carroceria de um carro cinza. Apagou com uma porrada na nuca.

Acordou num quarto de hospital improvisado. As paredes estavam sujas de sangue, de terra, de morte. O laboratório. Estava deitado numa maca com roupas limpas. Olhou em volta e sentiu uma dor excruciante na cabeça: a pancada de Kopp. Gemeu. Ouviu a voz de Renoir ao fundo e chamou baixinho:

- Doutor… Doutor…

Renoir parou de falar e abriu a porta do laboratório. Estava com a barba por fazer e o rosto demonstrava o cansaço acumulado.

- Olá, Jesse. Como se sente?

- Minha cabeça dói, Doutor. Onde está Ali? Onde estamos? — respondeu fechando os olhos devido à dor.

- Ela está no quarto ao lado. Fique calmo, você a verá em breve.

- E o nosso filho, Doutor?

- Está tudo bem, Jesse. Tome esses remédios. São para a sua cabeça. — e na sua voz havia tensão.

Jesse engoliu os comprimidos e não tardou a apagar, de novo. Apagou por muito tempo. Acordou tonto, perdido. Estava dentro de um vagão de carga. A sua volta, camadas de couro desidratado. E ali, deitada no seu colo, Ali. Dormia tranquila no peito do marido. O trem estava parado, e as portas se abriram. A luz cegou Jesse. Homens apareceram com cara de medo. Foi só quando Jesse cobriu o sol com as mãos que viu amarrado no seu pulso o escapulário. O escapulário que o doutor Renoir sempre usava no pescoço. Os homens fora do vagão exclamaram:

- Judeu!

Então ele temeu. Mas os homens sorriram e tiraram ele e a mulher, ainda desacordada, do vagão. Eles estavam em segurança. Aqueles eram refugiados, morando na Suíça. Não sabia como, mas o Doutor dera um jeito de coloca-los num trem que chegara até lá. Ele estava livre. Ele e Ali, livres. Olhou para o escapulário e deixou correr pelo rosto lágrimas de emoção, enquanto pensava no filho ainda não nascido. No pequeno Tamir.

Líbano, 1961

As tensões entre Israel e seus vizinhos refletiam em toda região. Desde a Crise de Suez, o Líbano efervescia em crises internas e externas. Seu povo estava ameaçado. Samir Assaf, casado com Yara Assaf, era um respeitado engenheiro químico. Mas caiu em desgraça quando se negou a contribuir com as pesquisas bélicas visando à destruição do vizinho judeu. Estava farto de viver em guerra. Acabou exilado em seu próprio país. Ele e a mulher viviam sob constante ameaça. Quando a primeira bomba israelense explodiu sobre o solo egípcio, os dois se tornaram os alvos preferidos dos extremistas, chamados pejorativamente de “amigos dos judeus”. Eles corriam sério risco.

Por essa época a ONU mandou para o país uma missão encabeçada pelo doutor Renoir Noah, tido como responsável por salvar a vida de centenas de judeus durante o regime nazista. A missão tinha como objetivo fornecer apoio básico de saúde ao povo libanês, assolado por pestes e por traficantes que impediam a livre circulação de medicamentos vindos do apoio internacional. A mortalidade infantil era de um para três nessa época.

Samir estava em casa, com as janelas fechadas e as portas trancadas — como sempre. Escrevia cartas desesperadas para os jornais — cartas que nunca seriam publicadas. Não tinha mais forças para continuar aguentando a pressão de todo um país e mais de uma vez pensou em colocar um fim no seu tormento. Mas logo se arrependia: “Não é esse o plano de Alá. Não pode ser.” Pensava na mulher e se sentia envergonhado pela ideia. Enquanto descansava a pena sobre o papel, ouviu Yara gritar. Correu para o quarto e a viu se contorcer na cama com a mão direita no abdome.

- Samir! Eu não consigo… Ah, me ajude! Samir! — gritava as palavras entre um berro de dor e outro.

Ele não sabia o que fazer. Aproximou-se da mulher e viu a origem da dor: o lado direito de sua barriga estava inchado e a mulher estava ardendo em febre. Samir não era médico, mas já tinha visto os sintomas durante palestras farmacêuticas durante a faculdade. Sem ajuda, ela morreria ali mesmo, se já estivesse em estado avançado. Ela precisava de ajuda, e ele faria o que fosse necessário — mesmo que isso significasse sair de casa, o que era praticamente uma sentença de morte. Correu para sala e pegou a chave do carro há tanto tempo escondido na garagem. Carregou a mulher nos braços, enquanto ela gemia de dor a cada movimento, e a deitou no banco de trás. Ele não fazia ideia para onde ir. Mas iria até o inferno por Yara. Iria até Israel.

Arrancou pela garagem e seguiu pela estrada de terra. O cerco que se formava em volta de sua casa se eriçou e começou a gritar palavras nada gentis contra Samir. Ele acelerou contra os protestantes e, em meio ao medo, nem notou quando um disparo de arma de fogo atingiu a lataria do seu carro. Continuou até o asfalto e seguiu por 10 minutos antes de se ver frente a frente com um comboio.

Sentiu suas mãos gelarem. Parecia um comboio militar e, se assim fosse, era seu fim. Ninguém moveria um músculo se não fosse para dar cabo ao inimigo público número um. Parou o carro e rezou em silêncio. No banco de trás a mulher não gritava mais; respirava pesadamente, apagada. Do carro que liderava o comboio, sem nada escrito e numa cor azul escuro, desceu um homem. Cabelo branco e cacheado, com um círculo pelado no topo da cabeça. A barba era grisalha e falhada. A pele era muito branca apesar do sol intenso, usava calça jeans com camisa azul claro de manga dobrada. Ele não era militar e não era libanês. Samir ainda tinha medo, mas suas mãos recuperaram o calor. Ele tinha uma chance.

Renoir foi até a janela de Samir e disse num árabe com sotaque, porém perfeito:

- Esse não é um lugar muito bom para… — e se calou quando viu a mulher no banco de trás, aliado aos olhos cheios de medo de Samir.

- O que aconteceu com ela? Me ajude a tirá-la do carro. Eu sou médico, me diga o que aconteceu.

Samir não tinha opção: não podia negar um médico e deixar a mulher morrer ali. Abriu a porta e carregou Yara para fora. Com a ajuda de Renoir, deitou-a no chão.

- Ela gritou de dor, no abdome. No lado direito. Está inchado. Já vi os sintomas, parece apendicite. — disse Samir, num tom baixo de quem está cansado e aterrorizado.

- Você é médico? — perguntou Renoir.

- Não, engenheiro químico. Mas vi muitos estudos de caso em palestras.

- Certo. Você tem um bom olho clínico. — falou Renoir, pressionando levemente a área do abdome.

- Não posso ter certeza assim, sem examinar melhor. Mas é o que parece mesmo. Ela precisa de ajuda imediata. Nós vamos leva-la ao hospital de campanha e lá ela terá uma chance.

- Não! — gritou Samir.

- Como não? Ela precisa de ajuda, meu filho. E nós podemos ajudar.

- Não podemos, doutor. Há autoridades libanesas no hospital?

- Sim, há.

- Então não podemos ir para lá. Somos odiados neste país.

- E qual o motivo desta honra? — disse Renoir levantando as sobrancelhas.

- Não é engraçado, doutor. — Samir abaixou os olhos.

- Eu sei que não. Qual o motivo?

- Eu me neguei a construir armas para que meu país continuasse se matando. — Sua voz era cansada e sincera.

- Esse é sempre um ótimo motivo para se odiar alguém.

- Você não sabe o que diz!

- Calma, meu filho. Acho que minha ironia funciona melhor em francês. — Renoir sorria.

- O senhor é francês? — levantou os olhos de novo.

- Fui, há muito tempo atrás. Mas vamos ao seu interesse: sua mulher precisa de ajuda. Eu posso ajudar.

- Não aqui, doutor. Ninguém vai ajudá-la.

- Qual seu nome?

- Samir. Samir Assaf. — havia um misto de orgulho e vergonha nas palavras.

- Ok, Samir. Sou Renoir Noah. Entendo algo de perseguição. Mas se sua mulher for tratada aqui, em nossa ambulância que é na verdade uma viatura improvisada, duvido que ela aguente. Posso fazer uma intervenção para retardar a infecção, mas precisamos de medicamentos e apoio. Para isso, você vai ter que confiar em mim.

- O que você fará, doutor?

- Amanhã pela manhã veremos. — terminou tocando o ombro de Samir e acenando de leve com a cabeça.

Naquele fim de tarde o comboio permaneceu na beira da estrada. O Doutor realizou sua mágica com o bisturi. Terminou o trabalho com luz de velas porque o sol foi embora. O apêndice continuava dentro dela, mas Renoir conteve o avanço da infecção e a dopou de antibióticos para evitar o pior. Sob a luz da lua, foi até o chefe das comunicações. Pediu o telefone via satélite de uso exclusivo das forças internacionais de emergência — e o chefe concedeu sem maiores perguntas; o Doutor tinha o prestígio que o precedia. Enquanto a noite se aprofundava, o homem do outro lado da linha não estava nem um pouco satisfeito com os pedidos, mas ele sabia que não cumpri-los não era uma opção. Estava contrariado quando desligou — e contrariado foi mover meio mundo para resolver o que o Doutor demandara.

***

Yara permanecia desacordada e Samir achou que não seria capaz de pregar os olhos; ele não sabia que o medo pesa mais que o cansaço. Enquanto pensava na mulher, sentiu o golpe da exaustão. Apagou dentro de si, num sono sem descanso. Quando abriu os olhos, reconheceu a voz da mulher.

- Yara! Pela graça do Senhor, você acordou! Como você está?

Quando ela respondeu, estava obviamente cansada, mas aparentemente bem.

- Samir… eu estava conversando com o doutor. Estou bem, meio zonza. Ele disse que não posso me levantar, mas eu preciso! Precisamos voltar para casa!

Renoir interveio:

- Não têm, não, minha filha — disse sorrindo. — Seu marido disse que vocês são os alvos preferidos do povo; fiquei sabendo que no estande de tiro é a foto de vocês que aparece com os judeus. Não fiz tudo isso para te salvar e você acabar fuzilada. Seria um desperdício inestimável de tempo.

Yara esboçou um sorriso. Sempre apreciou bom humor, mesmo que de completo mau gosto. Samir, não.

- Doutor, isso não é piada. Temos que ir para algum lugar.

- Sim, vocês têm. E vão. Aí vem o passaporte de vocês — apontando para a estrada.

De lá vinha um carro sem teto com um homem de turbante em pé, apoiado no para-brisa, empunhando o fuzil ao lado do motorista. Samir se desesperou: era um dos extremistas.

- Você nos entregou! Você não tinha o direito, você não podia…

- Calma, meu filho — interrompeu Renoir. — Guarde seu fôlego, você vai precisar.

O carro parou ao lado deles e o homem de turbante desceu sem nem ao menos dirigir um olhar para Samir e Yara. Entregou uma caixa de whisky ao Doutor e balbuciou algumas palavras em francês, virando-se e sumindo junto com o carro, deixando só a poeira libanesa para trás.

Renoir abriu a caixa, tirou uns papéis, conferiu e gritou: Ai está!, sorrindo abertamente.

Olhou para Samir, para Yara, e disse:

- Meus caros, é hora de se lavarem e trocarem de roupa.

Entregou a cada um:

Um passaporte;

Um documento de registro de pessoas.

- Vamos para casa, primos. Vamos para Paris, Mon Ramis Noah e Marié Noah! — desatando numa gargalhada.

Samir olhou o documento: era sua foto. Seus dados. Mas numa versão francesa. Não sabia nem quem era nem como foi capaz daquilo aquele homem, mas esta era a chance dele e da mulher recomeçarem. A chance que ele tanto implorara a Ala. O Doutor estava certo: ele ia precisar de fôlego.

Subúrbio de Paris, 1940

O Hospital Universitário de Paris era um formigueiro humano. Com a guerra sorrindo para França, o povo criou uma nervosa hipocondria que impossibilitava qualquer bom trabalho médico. E, no meio do caos, estava o há pouco formado doutor Renoir Noah, clínico geral, chefe da residência. Com mais de 200 atendimentos por turno e 23 garotos de jaleco na sua aba, seguindo e perguntando sem parar, o Dr. Noah era a imagem da exaustão física e mental.

Havia 36 horas que ele estava acordado, atendendo. Parou por cinco minutos, duas vezes, em que tomou 300 ml de café e mordeu um pão seco de ontem. Suas mãos tremiam e a visão estava turva — porém, os pacientes não paravam de chegar. A enfermeira-chefe, uma mulher de 50 anos com um cabelo prata e um rosto vincado e cansado que um dia foi belíssimo, se desdobrava para triar todos e acompanhar o doutor: ela só trabalhava com ele. Depois de atenderem um caso de ingestão acidental de água sanitária, uma unha encravada, um pelo inflamado na axila, um amendoim preso no canal do reto de um homem junto com uma explicação duvidosa, o doutor decidiu que era hora de parar. Ele precisava de um descanso. Mandou chamar um estudante para analisar os casos menos graves e encaminhar para os cirurgiões convidados os que fossem mais complexos. Puxou a enfermeira num canto e falou em voz baixa:

- Jeanne, precisamos dormir. Vá para o dormitório, tire um cochilo. Daqui a duas horas eu te encontro na clínica. Isso está um inferno de loucuras, e nós merecemos um descanso.

Ela fez que sim com a cabeça, mas sabia que não iria descansar. Ela tinha muita gente para cuidar, então decidiu que em uma hora descansaria por uma outra — não disse nada ao doutor, no entanto. Ele merecia, mesmo, um descanso. Ela era macaca-velha e poderia suportar o tranco.

Renoir foi para o vestiário e se olhou no espelho: um trapo. O rosto era a representação da decadência, com os lábios rachados e os olhos vermelhos. Abriu o armário, pegou o cantil de whisky, abriu e tomou tudo no gargalo. Desceu sem obstáculos e logo ele sentiu na cabeça o torpor embriagado. Relaxou, colocou o cantil de volta no armário e deitou ali mesmo, no chão de avental verde. Dormiu, cansado e bêbado.

***

Passaram-se duas horas e vinte, mas para ele pareceram cinco minutos. Foi acordado pela voz da enfermeira Jeanne. Um caso sério e nenhum médico estava disponível. Ele resmungou alguma coisa, quase caiu ao se levantar e sentiu a cabeça latejar. Notou que ela olhava para o cantil e certamente tinha sentido o cheiro do seu hálito. Jeanne não disse uma palavra sobre aquilo, nem na hora nem depois, mas se culpava pelo que viria a acontecer. Existiam, sim, outros médicos disponíveis. Mas ela sabia que só o dr. Noah daria a atenção necessária ao caso.

Renoir saiu do vestiário e pediu para ela explicar o caso enquanto andavam.

- Uma menina, seis anos. Negra, sem histórico de doenças hereditárias, pressão 9 por 6, acordou com erupções em todo o tórax e está com dificuldade para respirar.

- Febre?

- 39,4 ºC.

O doutor acelerou o passo. Chegou ao quarto 212 e viu a menina com olhos assustados sentada na cama com a mão comprimindo um escapulário de madeira contra o peito e a outra segurando a mão da mãe que tentava parecer tranquila. Renoir não disse uma palavra. Examinou as pústulas, o couro cabeludo. Verificou a garganta. Auscultou o coração e os pulmões. Deu um sorriso.

- Ela está com catapora, o que explica o tórax e o couro cabeludo com feridas. E amigdalite, o que explica a febre e a dificuldade em respirar. Tem bastante pus, mas não é nada grave.

Nesse momento, um estudante desesperado apareceu na porta gritando por ajuda por causa de um paciente de 1,90m e 100kg que tinha medo de agulha. Renoir sorriu para Jeanne, e ela foi ajudar o garoto. Ele, então, prescreveu anti-inflamatórios, anti-histamínicos e um antibiótico, amoxicilina. Fez a primeira aplicação por meio de injeção para acelerar a recuperação. Depois, acariciou a cabeça da menina e disse que já, já uma enfermeira viria liberá-las. Quando ia saindo, ouviu a voz da menina chamando por ele. Virou-se, e ela estava com a mão estendida segurando o escapulário.

- Obrigado, senhor…

Ele sorriu e aceitou o presente. Faria bem para ele e para a menina. Voltou, então, para o vestiário. Um outro médico havia chegado para substitui-lo. Colocou seu jeans de sempre e um casaco de couro. Guardou na valise o cantil para encher de novo. Colocou no bolso o escapulário e ia se dirigindo para a saída, indo para casa. Foi quando deu de frente com Jeanne. Ela estava pálida — algo de errado estava acontecendo. Perguntou o que havia de errado e ela respondeu num tom de voz alto demais para duas pessoas a um metro de distância:

- A garota, doutor! Ela entrou em choque, teve uma parada cardíaca e não conseguimos reanima-la… ela foi declarada morta.

A cabeça de Renoir girou e a dor voltou com força.

- Como?! Eu acabei de medicá-la, e ela estava bem, não era nada demais!

- Ela teve um ataque anafilático. Reação alérgica a amoxicilina, doutor. — Jeanne havia voltado ao seu tom normal, mas entristecido.

- Não é possível, eu… — então o doutor parou de falar.

As têmporas explodiram em agonia. Ele havia entrado no quarto com a visão ainda borrada pelo álcool. Não leu o prontuário em que o primeiro item era:

“Alergias: amoxicilina”

Como Jeanne saíra do quarto, não pôde alertá-lo. Além de que era a obrigação dele ler o prontuário dos pacientes. Não leu. Ignorou a alergia. Nem sequer tomou conhecimento do nome da garota. Com a mão no bolso, apertou o escapulário até feriar sua mão. Seria sua lembrança do que o descaso causa.

Neste momento, Paris sucumbia ao poderio nazista. Estas mesmas tropas que, dias mais tarde, obrigariam Renoir Noah a clinicar nas fileiras alemãs.

Gaza, 2015

Benjamin estava no chão, envolto em poeira e sangue. Do seu rosto, o sangramento corria na altura em que um estilhaço o atingiu. Sua perna esquerda estava com dezenas de ferimentos, queimando e latejando. Ele havia batido a cabeça ao cair e sentia a dor como uma pontada infernal entrando pela parte de trás do crânio e explodindo no centro da cabeça; a dor era tão intensa que abrir os olhos era uma tortura. Quando finalmente criou coragem de abri-los, desejou não tê-lo feito: jazia ao seu lado, a menos de 2 metros, o comandante da patrulha, com os olhos abertos e a boca congelada num meio grito de dor; do seu peito restaram apenas fiapos do uniforme e o horroroso carnaval de vísceras expostas. Benjamin fechou novamente os olhos, sentiu a cabeça sendo esmagada e o suor correr pelas feridas, fazendo arder suas chagas. Lembrou-se do pai. Da noiva. Não passou um filme por sua cabeça: estava mais para uma fotografia triste.

Jeromé se levantou depois de alguns segundos; alguns segundos de perplexidade. Olhou com um misto de terror e tristeza a cena que se enunciava: famílias correndo com seus cadáveres nos braços — os pequenos cadáveres, homens de verde caídos no chão, boiando em seus próprios sangues judaicos e no sangue dos pequenos muçulmanos. E os homens de chinelo e fuzil se aproximando, querendo encontrar um filho de Davi vivo — não para resgatarem, mas para matarem de uma forma mais demorada. O médico viu que um deles, um dos homens de verde, estava se mexendo. O homem de chinelo e fuzil, também. Não teve tempo de pensar: simplesmente disparou na direção do soldado ferido, não se sabe o que o fez agir. O homem de chinelo e fuzil também correu. Jeromé era médico, mas seu porte físico impressionava: 1,89m e 95kg. Mantinha-se em forma na adolescência praticando jiu-jitsu com o amigo filho de um diplomata brasileiro que estudava com ele. Abandonou a luta quando se converteu. Mas agora Ala precisaria da sua força. O homem de chinelo e fuzil era alto, mas magricela; chegou antes até o judeu. Estava apontando a arma e gritando para o soldado, enquanto os outros homens de chinelo e fuzil com poder de decisão não chegavam — ele próprio não passava de um peão num jogo sangrento e excepcional onde os dois lados sempre saiam perdedores. Esperava e ameaçava, o que deu tempo a Jeromé. O francês agarrou o homem de chinelo e fuzil pela cintura e, aproveitando-se do embalo, rolou com ele pelo chão. O homem não soltou o fuzil, e Jeromé se sentiu em risco. Por medo ou força moral, não deixou que o homem se firmasse por cima. Com o joelho em sua virilha, usou a outra perna para jogá-lo para o lado e deixa-lo de costas para o chão, montando sobre ele. A mão com o fuzil tentou se mover, mas Jeromé segurou o pulso com força e girou, até o homem urrar de dor. Com o braço livre, encheu o rosto do homem de chinelo e fuzil de cotoveladas, colocando o peso do seu tórax em cada golpe. Logo o nariz moreno entortou e o sangue empapou a barba, formando-se um emaranhado de pelos ensanguentados. Ele tentava usar a mão solta para socar Jeromé, mas o peso sobre suas costelas o sufocava. O homem começou a perder os sentidos, mas Jeromé não parou de bater. Bateu, bateu, bateu. E quando deu por si, estava desfigurando um defunto. Sentiu terror pelo que havia acabado de fazer. Matara um muçulmano por um judeu. Mas aquele homem não era um real muçulmano! Era um terrorista usando Ala como fachada. Ouviu as vozes dos outros homens que se aproximavam e saiu do seu estado de choque. Pegou a arma no chão e se levantou. Virou-se para o judeu, que tinha os olhos vidrados como quem não acredita no que vê.

Do chão, definhando de dor, Benjamin viu um homem branco, de trajes islâmicos, lutar com outro moreno também de trajes islâmicos que lhe ameaçava. Viu ainda o homem branco matar o moreno de tanta pancada. Quando o homem branco se levantou, sentiu um estranho alívio. Não sabia de onde, mas conhecia aquele rosto. Ele nunca saberia, mas reconheceu as semelhanças com o rosto das fotografias de Renoir Noah, que ele tanto vira e ouvira falar. Renoir Noah, que salvara seu avô e avó há 70 anos. Então Jeromé começou falar num hebraico difícil de entender por causa do sotaque:

- Vamos, levante-se! Vamos! Agora! — gritava para se fazer ouvir por cima dos berros dos homens que já despontavam na rua.

Segurou o fuzil com a mão esquerda, que ficou apontado para Benjamin, e a direita estendeu para o judeu caído.

- Vamos, vou te tirar daqui. — falava num tom de urgência, enquanto os homens se aproximavam gritando em árabe. Talvez só não tenham atirado porque de costas, Jeromé parecia um deles, ameaçando o soldado.

Benjamin saiu do transe de dor, segurando a mão de Jeromé. No momento em que o francês o puxou para cima, fazendo doer cada milímetro de músculo do seu corpo, ele viu o mundo ficar vermelho.

Por um instante, os olhos de Jeromé pareciam ter sido desligados do corpo. Eram só globos brancos. Seu rosto claro e barbudo ficou quase transparente, não fosse pelo sangue. Uma bala acabara de entrar pela têmpora direita e sair pela esquerda. Saiu levando a vida junto com ela. Jeromé tombou sobre Benjamin, que recuou desesperado. Olhou para os lados e viu a sua esquerda um colega, da patrulha, em pé, apoiado com dificuldade a uns 15 metros, segurando uma pistola. Ele sorriu para Benjamin, certo de que havia acabado de salvar o colega de um ameaçador terrorista. Talvez recebesse uma medalha! E recebeu, mesmo. Mas póstuma, pois foi fuzilado neste mesmo momento pelos homens que chegaram, de chinelo e fuzil. Benjamin não sorriu de volta. Olhou para o céu. Pensou no pai. Na mãe. Na noiva. Na irmã. Pensou em Renoir Noah e no avô. Sentiu o sangue de Jeromé empapar seu peito. Sangue muçulmano escorrendo em peito judeu, afogando a imagem de cristo. O retrato perfeito da condição humana. E o ato de bondade finalmente encontrou sua recompensa, 70 anos depois. Os jornais divulgariam posteriormente que mais uma vez a guerra santa causava vitimas. Benjamin pensou, olhando para o céu, que aquela guerra era tudo, menos santa. Era a mais humana das guerras. E a última coisa que ele viu, lá em cima, foi a Estrela de Davi de metal, antes de receber sua bala de misericórdia na testa. Em silêncio, agradeceu.

Fim.

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