NÖEL16

Caio Araújo
Medium Brasil
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5 min readDec 29, 2017

Uma mão com luvas brancas usa um cartão magnético para abrir a porta. A passos lentos, ele caminha com seu saco de tecido vermelho como o de suas roupas. Sua pele sofreu sérias queimaduras, causadas pelo Sol escaldante dos países tropicais, e também pela neve de lugares como Sibéria, Alasca e Groenlândia. Todavia, ele não podia reclamar. Seu trabalho estava cumprido naquele ano e ele teria duas semanas de férias para iniciar o planejamento, avaliação de crianças e produção de presentes para o próximo ano. Era uma missão bastante árdua, de fato. E cabia àquele senhor relativamente acima do peso cumpri-la.

Entretanto, não era hora para isso. Ele se despiu e mergulhou em uma banheira de hidromassagem com água nem fria nem quente demais. Respirou fundo e sentiu como se o peso do cansaço fosse retirado com as mãos de sua cabeça. Ficou ali até cair no sono.

O cheiro de rena assada pelos duendes o despertou. Quase se esqueceu do quão faminto estava. Enrolou-se em uma toalha branca, vestiu suas pantufas e se apressou para evitar que os ajudantes acabassem com todas as costelas da pequena manada que o transportou ao redor do mundo nesse ano. Felizmente, uma peça inteira tinha acabado se ser colocada na churrasqueira.

Enquanto esperava, o velhinho lia o relatório de inserções de marketing. Os números eram divergentes. Apesar de receber cava vez mais royalties por aparições na mídia, o número de crianças que acreditavam nele diminuía progressivamente. Isso fazia seus cabelos brancos caírem mais a cada dia.

A unidade de trabalho chamada NÖEL16 se assemelha muito a uma fábrica convencional. Tem uma linha de produção, refeitório e áreas administrativas. Tudo estéril e sem personalidade. Há, também, uma pequena área de lazer, com videogame, sinuca, pebolim e fliperama, construída para proporcionar o bem-estar dos funcionários durante a jornada de doze horas de trabalho.

Calma. Pode ficar tranquilo. Eles têm direito a uma pausa de meia hora para um lanche e jogar a última versão de GTA, Assassin’s Creed ou PES. Eu diria que se trata de uma estrutura candidata a um prêmio Great Place To Work nos próximos anos. Ah, e além disso, tem churrasco de rena todo ano.

Sofia não liga muito para montar a árvore e outros rituais natalinos. Apesar disso, nesse ano ela fez um pedido. Queria conhecer (se é que existe) a Fábrica do “Bom Velhinho”. Uns dizem que fica na Lapônia, outros no Polo Norte. Aquelas roupas grossas e cheias de frufrus só mostravam que alguém ali não entendia o funcionamento do clima de um país equatorial como o nosso.

Esta, certamente, era uma questão de extrema relevância. Porém, Sofia gostaria de desenvolver, com o Homem de Vermelho, outra conversa. Tem mais a ver com os relatórios que aquele senhor com sobrepeso estava lendo.

Se você procurar nas rotas do Google, o caminho da casa da Sofia até a Fábrica não é nada fácil. Ela precisaria de muitas caronas de avião, de navio e de cães preparados para atravessar desertos gelados. Seria um percurso perigosíssimo, turbulento e o pior: não conseguiria chegar em casa para o jantar. Seus pais ficariam preocupados e aí… castigo… um mês sem brincar no bosque da rua de trás…

Apesar do caminho tomado ser igualmente turbulento, Sofia não precisou atravessar oceanos ou desertos de neve. Ela pegou um atalho e só precisou entrar no elevador certo e apertar o botão para o 25º andar.

Aí você se pergunta. Mas qual o elevador certo? Oras, isso é óbvio. Pare e pense um minutinho. Você sabe qual é o elevador certo. Se lembrou?

Ótimo!

Enquanto se delicia com uma suculenta costela de rena, o velhinho de cabelos brancos observa o elevador. No fim do relatório, havia uma nota. Na verdade, uma carta. Uma menininha iria visitá-lo.

Ele franziu a testa e pegou o rádio comunicador.

– Ruprest, quem é essa menina que está vindo aqui? Eu já mandei ignorar todas as cartinhas que pedem para visitar a Fábrica. É para taguear como “não se comportou” e bloquear a criança.
– (shhhh) Mas senhor… (shhh) não identificamos o… (shhhhh)
– Não interessa! Ative o acesso ao subsolo.
– (shhhhh) Sim, senh… (shhhh)
– Vai ser mais uma complicação lá em cima. E é você quem vai providenciar o relatório de compactação depois do expediente. E sem banco de horas!
– (shhh) Mas senhor… (clic).

Uma luz verde no painel de LED acima do elevador se acendeu. Instantes depois, a porta metálica abriu. No interior, uma pessoa pequena, pouco maior que um duende. Usava um vestido vermelho que combinava com seus sapatinhos. Pé ante pé, ela caminhou, olhando diretamente nos olhos do senhor de barbas brancas e sobrepeso. Agora ele não vestia mais uma toalha e pantufas. Trajava um terno perfeitamente costurado. Sua gravata era vermelha com detalhes em verde. Ele se levantou olhou-a de cima a baixo e sorriu com os olhos, já que sua boca era praticamente toda coberta pela barba branca.

– Ho ho ho, Sofia. Como vai você, pequenina?

Sofia moveu os lábios. Provavelmente retribuiria o sorriso cortês. Mas lhe faltou chão sob os pés.

Literalmente.

– Ahhhhhhhhhhhhhhhhh. — um grito ecoou pelo corredor e foi silenciado assim que o alçapão se fechou, retornando à posição original e ficando praticamente imperceptível a qualquer um que desconhecesse sua existência.

O Homem de Terno se sentou à mesa, pegou mais uma costela e continuou a comer.

O chão branquinho e bonito sobre o qual Sofia pisara momentos antes em nada se parecia com a água suja que encharcou seus sapatinhos vermelhos. Ela foi jogada em uma espécie de depósito de lixo. Um sofá velho, chifres de um cervo ou animal semelhante, quinquilharias e restos de comida quase fizeram Sofia vomitar. Antes disso, contudo, a adrenalina a impediu de vomitar. O som de um mecanismo rangendo pôde ser ouvido por toda a Fábrica. Mais alto e de forma estridente no cubículo hermético onde a menina estava presa.

O espaço começou a diminuir…

A grade de ventilação de abriu.

– Rápido, Sofia. Venha!

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