Natasha e o amanhã inexistente

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil
Published in
12 min readSep 26, 2023

--

um

Estranho pensar essas coisas justo agora. Uma garota qualquer de dezessete anos não deveria estar preocupada com isso. Ou deveria? De onde vem essa inquietação? Essa angústia encapsulada em costume, como um remédio de uso contínuo que alguém toma por uma vida inteira? Qual a origem dessa coisa que insiste em fazê-la lembrar — quase que diariamente e mais ou menos no mesmo horário, com a regularidade de uma oração de avó — que sua memória mais antiga é a de que tudo vai acabar? É estranho pensar nisso agora, mas as coisas são como são. À medida que a hora vai chegando, a certeza é inexorável: elas de fato são como são. Seis e meia da manhã, a claridade lá fora começa a aumentar, junto com a ansiedade que já acelera os batimentos do seu coração.

Ana se lembra de mesmo quando ainda era muito criança, às vezes se surpreender com essa sensação de que tudo que existia (tudo, tudo mesmo, a vida, o universo, e tudo mais) ia acabar. Óbvio que a Aninha de dois anos e pouco, três talvez, não sabia disso conscientemente. Entretanto, a sensação estava lá. Só que com o que ela sabe hoje, reconhece perfeitamente no sentimento que vem agora a mesma coisa de quinze anos atrás. Olhando bem, era o mesmo, nunca mudou. De diferenças, só que a Aninha de 2 anos — aquela coisa fofinha de bracinhos e perninhas gordas e vestidinho com um bordado de coelho na frente — não tinha como explicar aquela angústia que a envolvia, só conseguia sentir. E olha, sentia bem e claramente. Tão bem e claro quanto sente hoje.

dois

Quando Aninha cresceu e foi caminhando em sua vidinha, a angústia aparecia pra visitar quase todo dia em certo horário — tal como uma tia chata, mas com a qual você se acostuma. Isso não a impediu de se transformar em uma criança alegre, brincalhona e cheia de amigos na escola. Sabe uma verruga que a gente tem num lugar não muito evidente, e vemos que as outras crianças não tem, mas com a qual acabamos nos acostumando? A sensação passou a ser algo que não machucava, que ela só achava estranho. E era ainda menos chato que uma verruga, porque ao menos a sensação ninguém conseguia ver. Imagina uma verruga grande e feia, no meio da cara, igual à da Dona Marlene, a diretora da escola? Uma vez só, um dia que a angústia bateu um pouco forte demais, Aninha comentou (muito séria) com a mãe, “eu às vezes imagino que o mundo vai sumir mãe, que tudo vai acabar, eu vou ficar sozinha flutuando, no meio do universo sem nada…” No máximo ouviu um “que besteira Ana Paula criança não tem que ficar pensando nessas coisas não”. Lembra vagamente de uma vez ir com a mãe ao orientador da escola, numa sala que não era nem a direção nem a sala dos professores. Uma salinha pequena onde não tinha entrado nunca. Só lembra que a sala era diferente. E que o orientador era um professor que dava aula pros meninos das séries mais acima, e só. Outra memória meio vaga era a de ir ao ambulatório da clínica perto da prefeitura. Uma sala com cara de consultório de médico, com uns brinquedos feios que nunca chamaram sua atenção. Não o suficiente a ponto de querer ir lá pegar algum pra brincar. A sala tinha janela de basculante com aqueles vidros que lembram uma colmeia de abelha. Não sabe porque, mas detestava aqueles vidros. A moça que atendia no consultório e conversava com ela também era uma memória apagada um rosto embaçado, e ela tem a sensação de que a mãe a levou lá poucas vezes. Muito pouco além disso lhe vem na memória.

três

Aninha cresceu mesclada com a criançada da vizinhança. Normal que só. Pirralha padrão. Programa de televisão. Joelho ralado. Bicicleta, chiclete, álbum de figurinhas. Papel de carta, sacolé, patins. Aula de dança. Bambolê. Excursão da escola. Música, CD, walkman, videoclipe. Teve um tempo nessa época em que a presença do velho pensamento de mundo acabando chegou a ser quase esquecida. Era tanto estímulo, tanta vida, tanta descoberta, tanta coisa nova, tanto sentimento explodindo, que a verruga psíquica ficava encolhidinha, passando quase despercebida. Só que tinha um porém. O mundo exterior, nem família, nem amigos, nem ninguém — ninguém mesmo — tinha contato com essa verruga, que ficava lá, como um monolito, bem no centro do mundo interior de Ana. Ela tinha essa sensação de que esse mundo interior, o que sabia do seu sentimento diário, era algo que ela não queria mostrar pra ninguém. Não era medo, não era vergonha, não era nada disso. Era uma certeza que ela tinha, um sentimento imóvel, monumental, que começou ali pelos onze, doze anos. Era um propósito sólido, que estabelecia que a Ana de dentro, a Ana que SABIA, era uma pessoa diferente da Ana de fora, a Ana que todo mundo conhecia. Era pra ser assim, e acabou. Claro que se (por hipótese) tivesse que explicar, ela não conseguiria colocar em palavras claras naquele tempo — e talvez nem agora — mas a certeza era tão forte, e a forma como se sentia tão clara, que uma semente de inspiração começou a crescer dentro dela.

quatro

Ana ficou moça cedo. Baixinha ainda, mas muito feminina. Corpinho de mulher já perfeitinho. Quando colocava um salto, resplandecia. Aos treze já era toda mulherzinha. Com catorze pra quinze começou a namorar com Julinho, um menino de duas ruas pro lado. Os pais dos dois eram amigos, colegas de seção na fábrica, famílias próximas em tudo. Namoro de cidade pequena. A mãe não se preocupava. Já tinham conversado de sexo. Ana passava pra mãe uma impressão tão grande de saber o que estava fazendo que antes dela pensar em dar esporro, Ana já contou que tinha transado, que antes tinha pedido pílula na médica e que não queria correr o risco de engravidar se Julinho não tivesse camisinha. Só não contou pra mãe que não foi com Julinho que transou.

Nessa época a vida de Ana já estava dividida entre a turma da rua, a maioria da escola onde estudava, (inclusive Julinho) e o curso de informática. Três vezes por semana, ia de ônibus direto da escola pro outro lado da cidade, bem perto do centro e almoçava na casa da tia, dali direto pro curso. No mesmo andar do prédio onde ficava o curso, tinha a loja de CDs. Na loja de CDs tinha a turma do Pingo. Pingo era primo do Gaspar, o Gaspa, dono da loja. Às vezes Pingo ajudava a atender, tipo quando raramente a loja enchia — o que significava mais de três pessoas naquela sala abarrotada de CDs, camisas de bandas, pins, e outras quinquilharias relacionadas com música— quando estava só ele e o Gaspa na loja. Na maioria das vezes, a turma dele ficava lá de farra mesmo, entrando e saindo, rindo, zoando. Praticamente compunham o cenário da loja.

O espaço de um suspiro, um sussuro, ou um susto. É a distância entre o dia em que Ana entrou na loja — com cara de adolescente suburbana sem noção — pra procurar um CD, e o dia em que passou a andar com a turma do Pingo e foi apelidada de Natasha, pra efeito de associação com a pequena facção criminosa que eram os amigos do seu primeiro homem. Ana era habilidosa o suficiente para conseguir uma metamorfose completa com uma mochila, um saco de acessórios e algumas peças de roupa escolhidas com maestria. Maquiagem, umas braçadeiras, um par de cintos, um sapato de salto bem alto e vários tipos de meias-calças, arrastões e afins. Era quase como uma transformação de super-heroína. Ou no caso, supervilã, porque a galera do Pingo era bem chegada ao lado negro da força. E cá entre nós, Natasha também. Descobriram na garota um talento pra pequenos furtos em lojas. Disfarçava como ninguém, enganava segurança, enganava até policial. Servia de distração, jogava charme pra cima de lojistas enquanto os meninos da turma pegavam alguma coisa fora da vista. E dependendo da situação, conseguia se disfarçar tanto de menina boazinha quanto de roqueirinha, de clubber, de e-girl rebelde, tudo com a ajuda de sua mochila mágica.

cinco

A vida de Ana começou de modo muito peculiar a fazer mais sentido. Quando aprendeu com Pingo — que não à toa era filho de um chaveiro, exímio arrombador e “puxador” de carros — a abrir travas de porta, e descobriu um talento quase inexplicável pra achar e identificar fiação exposta, desativar alarmes, fazer ligação direta com muito pouca instrução da parte de seu “mestre”. Achava graça que com fechaduras de porta, não conseguiu aprender muito, por mais que Pingo tenha tentado ensinar. Conseguiu aprender a abrir algumas da mais simples com um pouco de esforço, demorando um pouco mais que o normal. Já com as mais difíceis, que Pingo abria como em passes de mágica, ela nunca conseguiu se entender. Não pegava o jeito da tranca, quando acertava o desarme do segredo demorava muito tempo, e quando fazia rápido costumava quebrar o ferrinho de abrir, algo péssimo na arte do arrombamento. Já com os carros, era outra história. Virou diversão em certa altura, de tão bem que aprendeu o “ofício”. Com sua habilidade natural pra disfarçar, aliada a uma rapidez fenomenal, até os garotos da turma ficavam impressionados com o pouco tempo que levou até que aprendesse a destravar portas, identificar e cortar fiações, lembrar as diferenças de localização e detalhes de marcas e modelos diferentes e desativar a maioria dos tipos de alarmes e a entrar e sair como um fantasma de estacionamentos. E pra fechar (ou seria arrombar?) com chave de ouro, aprendeu a dirigir maravilhosamente bem. Tinha o sangue frio e a habilidade nata de um piloto de fugas.

Com seu lado Natasha ficando cada vez mais livre, essa etapa da vida de Ana coincidiu com a ida de Julinho pra faculdade. Aos dezessete, veio a aprovação do namorado no vestibular. Ele passou a ficar mais tempo na cidade vizinha (onde ficava a faculdade) do que em casa. E vendo Ana bem menos que antes, a dinâmica do relacionamento obviamente mudou. Secretamente, Ana sentia um certo alívio. Já Natasha, não via a hora de se livrar dele. Aos poucos, o namoro de cerca de quatro anos, que sempre foi morno e desapaixonado — não para Julinho, que achava tudo completamente normal — entrou num ritmo desacelerado que dava a Ana mais tempo para ser seu outro eu. Só Júlio parecia não perceber nada. Em casa, os pais sentiam alguma diferença, mas não o suficiente pra incomodar tanto a ponto deles tomarem alguma atitude. Por mais que ela disfarçasse — e SE disfarçasse — tentando manter uma ilusão de que a vida tinha seguido o rumo esperado, os pais aparentemente intuíam o que acontecia. Ana parecia ter se tornado apenas uma casca, enquanto algo que eles não sabiam o que era (a própria Natasha) começava a crescer por baixo daquela pele, uma mera aparência exterior que ia ficando cada vez mais fina, transparente. Para eles, tudo que viam (um misto de confusão e uma tristeza lenta) era que a filha parecia deixar de ser quem era até pouco tempo atrás. Apegaram-se a uma esperança frágil de que se tratasse de alguma etapa da juventude, mas pra uma garota tão precoce quanto ela, esse tipo de mudança não era natural quando já se caminha para os dezoito anos. Mas para Julinho, estava tudo razoavelmente normal. Um pouco diferente por conta da mudança de faculdade, mas nada que o fizesse sequer desconfiar da existência de uma certa Natasha ocupando o mesmo corpo que sua Ana Paula.

seis

Claro que com o tempo, Ana arrumou um “cursinho pré-vestibular” na cidade vizinha, da mesma forma que tinha um bico de fachada em um escritório fictício, que funcionaria no mesmo prédio da loja do primo de Gaspar. Os pais confiaram. Acreditavam no cursinho, no escritório e nas noites estudando na casa de uma amiga que na verdade eram as baladas eletrônicas, as festinhas alternativas e os buracos em que a turma de Pingo se metia. Desde criança, a seriedade de Ana Paula, sempre sintonizada alguns anos à frente de sua idade, fizera com que os pais desenvolvessem uma pouco saudável complacência e uma vigilância extremamente baixa para com os julgamentos da filha. E desde muito cedo também, ela aprendera a tirar proveito dessa capacidade de inspirar confiança nos pais. E ela também soubera, desde muito cedo, que o único motivo dessa habilidade existir era não ser incomodada por eles quando queria fazer algo que sabia que não gostariam. Não lembrava em que época percebeu o quão facilmente podia manipulá-los, mas sabia que era bem cedo. E que sentia um prazer sardônico cada vez que sua manipulação funcionava tão bem. “O melhor golpe é aquele onde a vítima sequer sabe que sofreu um golpe.” Certa vez, já na adolescência, viu alguém em um filme falando isso e começou a rir com gosto. Ninguém entendeu nada, então. Mas era Natasha que ria dentro de Ana. E ria de gargalhar.

A velocidade da vida começava a cobrar um preço a Ana. Amava Pingo. Com loucura. Não sabia se pingo a amava de volta, ela achava que sim. Enquanto o mundo rodava como se ela estivesse bêbada (às vezes estava) ou numa onda de bala, a sua mente e sua alma se sentiam tão bem como nunca haviam se sentido antes. Quando estava com a turma, nas baladas, ou acelerando um carro pela madrugada, a música no último volume, ela sentia como se tivesse finalmente curado aquela voz interior que falava do fim de tudo. Quanto mais Aninha murchava, mais Natasha assumia o volante daquela vida. E ela sentia a reafirmação de uma calma interior, uma paz nunca sentida antes. Por mais que por fora, a vida que Natasha levava fosse de puro caos aos olhos do mundo familiar de Ana, o conforto que sentia quando se lembrava do quanto morta aquela maldita voz interior andava, tudo que Natasha queria era pisar no acelerador daquela nova loucura, tão melhor e mais sã que a velha.

sete

Natasha roubou um carro. O azar. O carro tinha sido roubado dias antes, por um traficante, coisa de facção, ninguém sabia. Parada pesadíssima. Tinha gente atrás do BO, viram, pararam e ela rodou. Na mala do carro, um corpo, um crime, um rolo monstruoso. Pingo tinha ficha, não podia aparecer. A única coisa que conseguiram foi arranjar um jeito dela escapar da delegacia, antes da transferência para o presídio. Depoimento de que não sabia de nada, tentar sair só como roubo de carro mesmo, daí contar uma história na audiência de custódia. Não escapou de levar umas porradas na delegacia, uma policial não foi com a cara dela, deu uma castigada no rosto. Quebrou um dente, até. O pessoal da turma do Pingo conseguiu organizar com uns chegados, armaram uma confusão perto do fórum, no dia da audiência e Natasha meteu o pé.

Naquele dia, Natasha condenou Ana Paula à morte. Fichada na cidade vizinha, em breve a notícia ia chegar na casa dos pais. No pai e na mãe de quem já não sentia saudades. Na vida que já queria deixar pra trás, como uma roupa velha que não cabe mais. No namorado de quem queria esquecer. Agora, a metamorfose iria se completar. Marcou uma mexida no rosto num cirurgião plástico. No nariz. O cabelo, cortou bem curto de um lado pra aparecer bem a tatuagem nova, a do pescoço. O outro lado deixou pela metade e pintou. Era verde dessa vez. Já tinha agitado documentação falsa também, mesmo antes dessa confusão toda, já devia poder ir buscar. Enquanto se recuperava da cirurgia, um dia Pingo saiu e demorou a voltar. Veio um amigo dele dizendo que gente da facção tinha descoberto, que ele tinha rodado, sumiram com ele e não dava pra saber nem se tava vivo ou morto. Era pra ela sumir. Não precisava nem dizer.

Agora era São Paulo capital. Se perder na multidão. Tinha passado antes na casa dos pais, pra pegar algumas poucas coisas, numa hora que sabia que tinha pouca gente na rua. Vigiou de dentro de um carro até que nem o pai nem a mãe estivessem em casa. Entrou, pegou o pouco que queria, saiu, parou no portão por alguns segundos. Achou que não derramaria uma lágrima, mas derramou. Mais saudade da casa e da Ana Paula que morria ali, do que de qualquer outra coisa. Uma lágrima só. Comprida, meio amarga, meio salgada, com gosto mezzo mágoa, mezzo indiferença.

Em Sampa já chegou se jogando na noite, se misturando pra tentar desaparecer. Sabia que se Pingo tinha rodado, os caras poderiam vir atrás dela também. Na brisa da droga e do álcool e da batida da música, sentiu aquela coisa desagradável que há muito não sentia, aquela voz dizendo que o mundo ia acabar, o mundo ia acabar, o mundo ia acabar, um calor absurdo na barriga, em vários lugares, no ombro, no peito, o coração batendo forte, o mundo girando, de repente o chão, alguma coisa pegajosa, uns gritos longe, o mundo ia acabar, uns pés correndo, gente gritando mais, e ela entendendo muito lentamente o que estava acontecendo ao mesmo tempo em que a consciência se esvaía, e Natasha só tinha tempo pra um último pensamento enquanto sentia tudo adormecendo e o mundo sumindo em volta de si: “mas eu só quero dançar”…

--

--

Odemilson Louzada Junior
Medium Brasil

Desde 1974 driblando a lei de Murphy. Conseguindo na maioria das vezes.